sexta-feira, dezembro 28, 2007

2008 versus 2007

2008 vai ser um ano em tudo semelhante ao de 2007, excepto numa coisa: na poluição tabágica. A partir de 1 de Janeiro do ano que se aproxima a passos largos, com a entrada em vigor da lei anti-tabágica, os portugueses vão respirar melhor, vão poder usufruir de uma atmosfera mais limpa, menos opressiva. Tudo isto mercê de uma vontade política que muitos saúdam apesar de lamentarem a demora. Alguns, os fundamentalistas da sanidade pública, enaltecem a medida legislativa e encaram a “guetização” dos fumadores como o merecido castigo. Os rios vão continuar a ser objecto de descargas poluentes, clandestinas ou semi-clandestinas. Os automóveis vão poder circular livremente nas cidades e a lançar para a atmosfera toneladas de dióxido de carbono. O “fast food” vai continuar a engordar as nossas crianças e adolescentes. A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica vai porfiar na sua caça ao croquete e à bolinha de berlim. A televisão vai persistir na intoxicação diária de milhões de telespectadores. O Natal vai permanecer a festa consumista e contribuir para o endividamento das famílias. O governo vai redefinir estratégias de combate ao défice e de perseguição dos fugitivos ao fisco, ao mesmo tempo que inaugura o ano zero da retoma económica e da prosperidade dos portugueses. A liberdade vai continuar a passar por aí, cada vez mais disfarçada com a cosmética das restrições necessárias para o bem da comunidade.

segunda-feira, dezembro 17, 2007

A realidade quotidiana das escolas portuguesas é o exemplo típico de um tema que anda nas bocas do mundo. Toda a gente presta depoimento, manifesta pronta opinião. Maioritariamente negativa. Algumas vezes, com acerto. Outras, nem por isso. Os alunos não aprendem, os professores não ensinam, os pais não cumprem com as suas responsabilidades. A tutela, por seu lado, decidiu travar o seu quixotesco combate. Armou-se do elmo, da armadura, da lança e da espada, montou o seu rocinante de crina eriçada e – sem ouvir as prudentes palavras do seu gordo escudeiro – partiu ao encontro do infame. Este tem um nome e um rosto: chama-se professor e anda pelas ruas da amargura. No decurso de dois anos viu-se transformado num bandalho. Dasautorizado, vilipendiado, sucessivamente objecto de múltiplas agressões (as mais graves sob a forma de decretos-lei e portarias que ao diabo não lembraria) vai rodopiando ao sabor das rajadas que de todo o lado sopram a sua fúria. A par do funcionário público, que ele também é, transformou-se num ápice, nos dias de hoje, o judas que nenhum cristão ama, o judeu que nenhum nazi preza, o bode expiatório da nossa menoridade cívica e política. De longe, o prudente escudeiro observa o seu amo e exclama: “Triste figura, eram só moinhos de vento!”

segunda-feira, dezembro 10, 2007

por trilhos de Monsanto

Nos últimos meses, o parque de Monsanto tem sido para mim uma caixinha surpresas. Comecei a frequentá-lo semanalmente, por necessidade. Não minha, mas do meu cão. O seu ethos obriga a passeios longos e musculados. Pelo menos quatro a cinco quilómetros (contabilizados no meu pedómetro) e uma hora de marcha. O cão, esse, percorre o triplo. Corre, salta, embrenha-se pelos arbustos dentro, desaparece e volta a aparecer, com a felicidade canina estampada no focinho de cachorro travesso. De uma vitalidade inesgotável, não pára quieto um segundo. São incontáveis as vezes que alça a pata e marca território em cima de pedras ou no tronco das árvores. Persegue à tonta o trinado e a sombra inquieta dos pássaros. E eu aproveito para oxigenar os pulmões e desentorpecer as pernas.
A minha descoberta do Monsanto tem sido paulatina e decorre ao sabor do acaso humano e da referida necessidade canina. Vou ensaiando percursos, experimentando trilhos novos, umas vezes próximo da mata de São Domingos, outras junto a Montes Claros, outras ainda perto do Alvito. A surpresa assoma a cada vislumbre de uma clareira, de um bosque frondoso e atapetado de folhas mortas. O inesperado espera-me a cada bifurcação de caminhos.
O meu último passeio, no Domingo passado, conduziu-me por carreiros esconsos e enviesados, por subidas suadas e descidas íngremes e vertiginosas. No coração da mata deparei amiúde com troncos caídos, lenha e mais lenha num torvelinho a que nenhuma mão humana acode e cuida. Perguntei a mim mesmo ou ao meu cão, já não recordo com nitidez. Por que ninguém limpa o pulmão de Lisboa? Não seria rentável pegar numa equipa de meia dúzia de homens e entregar-lhes a urgente tarefa de cuidar do parque de Monsanto? Não era possível vender as toneladas e toneladas de madeira para consumo das lareiras que a classe média paga a preços exorbitantes nos supermercados de Lisboa e nas lojas especializadas da periferia? O meu cão, é claro, não me respondeu. Continuou a farejar pedras e tufos de erva. E a alçar a pata para marcar um território que ele julga ser apenas nosso, dele o do seu dono.

sábado, dezembro 01, 2007

Mais uma vez, ontem, o país viveu o cenário de uma greve geral da administração Pública. O cenário do Portugal dos pequeninos na sua versão corrente. Repetiu-se a guerra dos números. Do lado do Governo, contas feitas e refeitas, a fasquia chegou perto dos 22%. Do lado dos Sindicatos, contas arredondadas, a fasquia quase atingiu os 80%. Curiosamente, esta disparidade de contas é mais ou menos idêntica às que no passado recente foram apresentadas. De cada um dos lados da barricada cantou-se vitória. A opinião pública dividiu-se no juízo que fez da pertinência da greve. Nenhum argumento aduzido constitui novidade. Uns aproveitam para despejar a bílis em cima do funcionário público: o bode expiatório de todos os achaques económicos que não param de nos acometer, a causa do opróbrio e da pobreza que nos envergonha e que empurra uma fatia cada vez maior da população para a miséria ou para a indigência não assumida. Outros responsabilizam o Governo pelas maldades a aquele que tem sido sujeito e mostram a sua indignação pelo desprezo com que tem sido (mau)olhado.
E não saímos disto. Nenhuma das partes em conflito parece mostrar coragem suficiente para ousar causar danos reais no inimigo. Nesta guerra, como em todas, só a coragem permite vencer. Bastaria ao Governo exibi-la mediante a apresentação de medidas mais drásticas, que contribuíssem com a redução efectiva do contingente da Administração Pública. Não o fazem porque as eleições estão à porta. Aos funcionários públicos, bastaria mandar às malvas o ordenado parco mas certo, o futuro cinzento mas assegurado, e fazer uma greve indeterminada ou até ameaçarem demitir-se em bloco. Não ousam fazê-lo em nome de uma tibieza de vontade ou de uma capacidade de acomodação que só o niilismo dos tempos actuais justifica. E assim continua esta luta de forças (melhor diria, de fraquezas) que nem alento e imaginação têm para o óbvio: inventar o futuro. É que não há verdade mais evidente - o futuro só existe na condição de ser inventado e enfrentado com coragem. E adiá-lo é perdê-lo. Como diz o ditado: "ontem já era tarde".

terça-feira, novembro 27, 2007

da inveja lusa

Do ponto de vista ético, a inveja é uma deficiência de carácter, no sentido em que neste existe uma ausência ou a falta de uma virtude. A virtude em falta é o amor. A inveja é o vício que se opõe ao amor, é o seu buraco negro. Ser invejoso corresponde portanto a uma falta de carácter. Uma pessoa invejosa é, eticamente, alguém sem carácter.
Enquanto sentimento, a inveja está associada à tristeza que tem origem na cobiça pelo bem alheio, do mesmo modo que o amor se associa à alegria causada pela ideia do bem que o outro vive.
“Transforma-se o amador na coisa amada”, afirmou Camões. O amor é um sentimento que nos põe em sintonia com o outro. O “ser-com” que estrutura a dinâmica de amar define o outro como próximo. Esta proximidade está bem patente na ideia de “com-paixão”.
Outro poeta recorre à fábula para expressar o sentimento de inveja. Trata-se de Esopo e d’A fábula da raposa e das uvas. Para quem a sabe ler, a inveja resulta de uma impotência que se traduz em ressentimento. Este surge como reacção a um bem pretendido que, por inacessível, o invejoso tende a diminuir, a adulterar e inverter o seu valor. O bom transforma-se em mau, por nivelamento por baixo ou rebaixamento.

Se sob o prisma da ética a inveja traduz uma falta de carácter que tem por consequência o sentimento de apoucamento das virtudes alheias, como deverá ela ser interpretada em termos do social e do político? E que tem ela que ver com o nosso “modus vivendi”? Será a tão propalada tristeza portuguesa, o nosso pessimismo endémico, apenas a outra face da moeda de uma inveja estrutural com que conjuntamente nos vamos consumindo? Será ela a principal causa da anemia nacional de que quotidianamente nos queixamos?

José Gil, no seu pequeno ensaio “Portugal, Hoje – O Medo de Existir”, publicado há três anos, faz um diagnóstico da psique nacional, o qual, fenomenologicamente, nos revela um traço estrutural do “ethos” luso marcado pela experiência salazariata, mas que persiste nos hábitos e na mentalidade do português actual. Este traço estrutural consiste na incapacidade de “inscrição”, de que o sentimento de inveja ou o “sistema de invejas” são um dos conceitos-chave, porquanto entram “perfeitamente na lógica da não-inscrição”.
Para José Gil, a inveja faz parte de um conjunto de factores “que entrevam o movimento e a dinâmica da sociedade portuguesa (…), retiram energia e forças aos indivíduos e grupos sociais.” Mesmo que não seja exclusiva do nosso código genético, ela “tem, em Portugal um terreno de eleição”, o que se traduz no “facto de esta sair de um regime de desvalorização, humilhação e mutilação das forças de vida do indivíduo”, constituindo-se “como um traço da identidade lusitana.” O binómio inveja-ressentimento ressalta de um contexto de forças poderosas de auto-aniquilamento do sujeito colectivo da nação. “Forças poderosas de ressentimento resultantes do esmagamento das forças da vida e da sua transformação em forças de morte. (…) É dentro de um banho de ressentimento que melhor se desenvolve a inveja. É no queixume implícito de se achar a si mesmo pequeno que se inveja alguém que pretende ser maior.” Enquanto potência de ressentimento, a inveja faz parte de uma estratégia que está nos antípodas de confronto directo, assumidamente crítico. Ela assume-se de modo enviesado, como “um meio indirecto de influenciar”, cujos “mecanismos são, no nosso país, duplamente, dissimulados, confundindo-se facilmente com um comportamento normalmente valorizado e aceite.” A sua generalização “é tão vasta que, tal como o medo, constitui um sistema.” Que sistema? Um sistema social em que a intriga, por um lado, e o compadrio, por outro, se sobrepõem ao confronto franco de ideias, à responsabilização da mediocridade e do mérito. Um sistema político em que a democracia só formalmente tem direitos de cidadania, encobrindo com o nevoeiro denso da retórica as fragilidades e o oportunismo de uma acção sem horizonte ético. “Que força ética resta àqueles que não param de se queixar, achando-se vítimas da sociedade e dos outros, da infância e da má sorte, e fazem disso o sentido das suas vidas? Habituados pelo ressentimento, permanentemente ressabiados, vivem efectivamente no ciclo mortífero do ressentimento → inveja → vingança indirecta. Quer dizer, julgando lutar para conquistar o pequeníssimo e ridículo poder a quem julgam que o roubou, são apanhados por um movimento obsessivo que os torna efectivamente impotentes.”
É no contexto desta patologia nacional que interpreto o actual aproveitamento político do governo socialista de José Sócrates. Conhecedores das manhas da retórica manipuladora, apetrechados de uma poderosa máquina de propaganda, jogando com o medo e com o sistema de invejas, pretendem nivelar por baixo uma classe média aburguesada, pouco dinâmica e reivindicativa, cada dia que passa menos politizada. A sua estratégia tem tudo para ser eficaz, num país de mentalidades ressentidas, de invejas cristalizadas, que insidiosamente confunde direitos com mordomias, sindicatos com confrarias de malfeitores, e que não perde a oportunidade para arrastar tudo e todos para o lodaçal e a mediocridade de uma vida que tudo justifica pelo fado da eterna pobreza.

domingo, novembro 25, 2007

uma reflexão sobre educação

“ (…) Estaríamos a trair a confiança que o público nos dispensa se, em vez de alargar a capacidade de entendimento dos jovens entregues ao nosso cuidado e em vez de os educar de modo a que no futuro consigam adquirir uma perspectiva própria mais amadurecida, se em vez disso os enganássemos com uma filosofia alegadamente já acabada e cogitada por outras pessoas em seu benefício. Tal pretensão criaria a ilusão de ciência.”
Immanuel Kant

Na opinião pública corrente, muitos são os discursos que referem a importância ou da cultura do esforço ou da cultura do prazer, para levar a bom termo o processo de ensino-aprendizagem. Esta visão dicotómica da realidade pedagógica traduz duas perspectivas, que se pretendem antagónicas na assumpção de convicções/ideologias extremadas, as quais não é invulgar ouvir, amiúde, da boca desses protagonistas responsáveis do processo educativo que são os professores.
Por norma, os defensores da cultura do esforço escarnecem dos seus adversários, recorrendo a lugares-comuns como “aprender não é uma brincadeira” ou “a sala de aula não é um recreio”. Do binómio ensino-aprendizagem entendem que o primeiro dos termos (o professor) deve submeter o segundo (o aluno) a um exercício magistral de um saber, que se transmite e se deve reproduzir ipsis verbis. Os alunos devem sofrer a acção de uma formatação automática, que os testes/exames se encarregarão de avaliar. Sabem de ciência certa que é o objecto (saber/conteúdos/fins) que determina o sujeito (competências/meios).
Também por norma, os defensores da cultura do prazer lamentam as atrocidades a que os alunos estão sujeitos, às mãos dos mestres-escola saudosistas do antigamente. Horrorizados perante “os espaços concentracionários” que são certas escolas, refugiam-se no ideário rousseauniano e sonham com a utopia de uma escola sem normas, em que a criança, qual planta exótica e exuberante, se desenvolve, ao Deus dará, como “indivíduo todo ele sentimento”, livre das amarras de qualquer compromisso linguístico-social. Intuem que o aluno é um sujeito puro, que se constrói de si para si, num solipsismo hedonista que está para lá de qualquer princípio que não seja o do prazer.
Esta caricatura nada mais pretende ser do que um esboço, em jeito de arremedo, de posições pedagógicas que se vão tomando ao sabor de modas e de idiossincrasias, e que configuram dois “estilos de liderança” ou “modelos de professor” opostos e inconciliáveis: o “autocrático” e o “laissez-faire”. Um e outro remetem para ideologias que constituíram as mundividências predominantes com que o português se apetrechou para enfrentar os problemas da educação. Ambos se alicerçam em vivências políticas que se sucederam de um dia para o outro – a do autoritarismo policiário de outrora e a do exercício irresponsável da cidadania com que quotidianamente nos mascaramos para jogar uma democracia de Carnaval.
É o défice do autêntico exercício democrático que nos impede de tomar os problemas da educação na sua real dimensão, e nos não permite vislumbrar possíveis soluções que, havendo coragem de o experimentar de forma participada e directa, não sejam de todo impossíveis de encontrar. Se a escola é o reflexo da vida social e política, a ela que caberá porventura o papel crucial na transformação desse tecido múltiplo e complexo em que todos nós nos movemos. Talvez seja a hora de assumirmos como nossa (da escola) a tarefa de promover uma cultura verdadeiramente democrática que nos falta. Que modelo pedagógico se encaixará nesta exigência de formar para a cidadania participada e directa?
Em tese, destaca-se o modelo protagonizado pelo “Movimento da escola moderna”, o qual dá “especial relevo à construção da formação democrática na escola, através dos subsistemas de circulação dos saberes, de cooperação educativa no trabalho de aprendizagem e de participação democrática na organização social das aprendizagens curriculares.” Deste ponto de vista, a construção da formação democrática pressupõe que a orgânica da educação escolar se faça pela articulação dos subsistemas enumerados.
Dos circuitos de comunicação se exige que sejam livres do policiamento que lhes atrofia a expressão plural. A liberdade de expressão, o livre acesso à informação, a interacção com o outro, o diálogo, e a busca conjunta do saber e do saber-ser, constituem uma dinâmica e um clima capaz de estimular “os alunos a desenvolver formas variadas de representação e a constituírem, em interacção, os conhecimentos sobre o mundo e a vida.”
Das estruturas de cooperação educativa espera-se que cimentem a construção de uma dinâmica intersubjectiva, de comportamentos e processos cooperativos, lançando as bases de uma aprendizagem do que é viver numa comunidade democrática. A aquisição de competências relacionais e cooperativas reforça o sentimento de que a subordinação dos objectivos individuais aos objectivos comuns é o motor do sucesso do grupo, e desvaloriza a competitividade individual como mecanismo de desenvolvimento pessoal e intelectual.
Da participação democrática directa dos alunos, em todos os momentos/decisões da governação do barco educativo, é legítimo esperar que contribua para a formação da plena cidadania, pois só mediante a experiência quotidiana do exercício democrático se adquirem valores e “princípios universais de justiça, reciprocidade, igualdade e respeito pela dignidade dos seres humanos”
A aprendizagem do “ser-com-os-outros”, da cidadania comprometida, é uma ferramenta não apenas mental mas existencial, que cabe à escola ensinar em prol da construção de um amanhã em que se respire e transpire uma cultura democrática. Ensinar e aprender requerem esforço e prazer partilhados. É da partilha da experiência democrática que se constrói a cidadania.

quarta-feira, novembro 21, 2007

um governo panglossano

Em 1759, o cidadão francês François-Marie Arouet publicava, sob o pseudónimo Voltaire, um romance filosófico considerado como um texto paradigmático do iluminismo. O romance intitula-se “Cândido ou o Optimismo” e é muitas vezes lido como uma crítica ao optimismo da época. Este ataque irónico tinha como objecto a crença geral no poder decifrador da razão e, mais especificamente, a filosofia de Leibniz.
O iluminismo foi inequivocamente um período ímpar da história mundial, precursor de muitas conquistas filosóficas e científicas das quais ainda hoje somos herdeiros. Os arautos da autonomia da razão vão protagonizar a defesa de alguns dos princípios que norteiam ainda hoje o modo como nos entendemos a nós próprios e como agimos. As ideias da liberdade, da igualdade e da tolerância consubstanciam o programa ideológico da modernidade. Mas trata-se de uma época paradoxalmente marcada por atrocidades, patologias sociais, injustiças, desastres (Lisboa e o terramoto de 1755), sofrimentos e, qual caixa de Pandora, a esperança. O romance narra as desventuras do jovem Cândido e seus companheiros que, nas suas viagens, são confrontados com os inúmeros signos do mal que povoam o Mundo. São estas experiências do mal que vão contribuir para a contínua erosão da sua crença optimista e cravar um espinho numa razão especulativa e dogmática. É neste contexto que Cândido se vê forçado a reflectir sobre as bases dessa filosofia optimista na qual foi educado pelo seu preceptor Pangloss, protagonista que se apresenta a si próprio como filósofo, discípulo de Leibniz. O filósofo alemão defendia, por um lado, que na Natureza nada sucede sem razão (princípio da razão suficiente), e por outro lado, que vivemos no melhor dos mundos possíveis, regulado previamente por Deus (harmonia preestabelecida), aos olhos do qual o Mal é um instrumento para realizar o Bem.
Respiguei três citações do romance para ilustrar a concepção filosófica que nele está submetida ao espigão da sátira. Na primeira, Pangloss justifica: “Tudo isso era indispensável, e as desgraças particulares fazem o bem geral; de modo que quantas mais desgraças houver, melhor se poderá dizer que tudo está bem.” Na segunda, o preceptor responde a uma objecção do seu discípulo: “E então, meu caro Pangloss – perguntou-lhe Cândido –, quando foi enforcado, dissecado, açoitado e obrigado a remar nas galés pensou sempre que tudo neste Mundo ia o melhor possível? – Eu sou sempre da minha primeira opinião – respondeu Pangloss –, porque, enfim, sou filósofo: não devo desdizer-me, porque Leibniz não podia ter razão, e a harmonia preestabelecida era também a coisa mais bela deste Mundo, assim como o são o horror ao vácuo e a matéria subtil.” Na terceira, deparamos com a conclusão do romance: “– Todos os acontecimentos andam encadeados no melhor dos mundos possíveis; porque, enfim, se o senhor não me tivesse expulso de um belo castelo com uns poucos de pontapés no... por amor da senhora Cunegundes, se não tivesse sido encarcerado pela Inquisição, se não tivesse percorrido a América a pé, se não tivesse dado uma boa estocada no barão, se não tivesse perdido todos os seus carneiros do bom país do Eldorado não estaria aqui a comer compota de cidra e outros doces – Tudo isso é muito bem dito – respondeu Cândido –, mas vamos a cultivar o nosso jardim.”
O que mais me impressiona neste romance é a possível leitura que dele podemos fazer para interpretar a actualidade política do Portugal hodierno. O governo socialista, com o seu timoneiro José Sócrates, secundado pelo imediato Fernando Teixeira dos Santos e pelos demais marinheiros que tripulam a Nau Catrineta do nosso descontentamento, parece uma encarnação do optimismo panglossano. É capaz de justificar o empobrecimento crescente dos portugueses pela necessidade de cumprir o défice, e ainda assim pretender fazer-nos acreditar que vivemos no melhor dos mundos possíveis.
O melhor que os portugueses têm a fazer é seguir o conselho final de Cândido e tratar do jardim comum. E já agora cuidar de limpar as ervas daninhas.

falácias de um discurso político

As mais recentes declarações mediáticas da Ministra da Educação, senhora Maria de Lurdes Rodrigues de seu nome, são um exemplo claro do que é uma peça de retórica política. Em resposta à questão de hipoteticamente constituírem as medidas tomadas pela sua tutela um ataque aos professores, ou, numa linguagem mais coloquial, se o seu ministério está contra os docentes, ela respondeu com um não rotundo. O que seria de esperar, de seguida, uma vez que estamos em presença de uma “ex-prof” do ensino universitário, doutorada em Sociologia, o expectável era que ela se servisse de uma conjunto de argumentos sólidos e fortes, inatacáveis do ponto de vista lógico, capazes de sustentar a sua tese. Em suma, que proferisse um discurso consistente. Mas, o que não é de espantar, quem deu voz ao discurso foi o político (o género para o caso não interessa). E como político, usou de uma estratégia tipicamente retórica. Não respondeu directamente à questão. Limitou-se a vestir a sua visão maniqueísta da política educativa com a roupagem de argumentos persuasivos no pior sentido do termo, isto é, preocupou-se em manipular o auditório. Ora, a persuasão manipuladora visa não esclarecer e elevar intelectualmente o auditório, mas apenas fazê-lo aderir às suas teses, cativando-o pela via mais imediatista – a emotiva. Como diria um dos teóricos da argumentação, Chaïm Perelman, não cuidou de convencer mas de persuadir, que é como quem diz, não expôs razões, mas procurou dispor emoções.
Aristóteles, o primeiro grande teórico da retórica, afirmaria a pés juntos que o discurso da Ministra da Educação é um exemplo clássico de um discurso que usa um tipo específico de prova – o “pathos”. Servindo-me livremente de uma semelhança fonética, eu diria que o seu discurso foi patético, no sentido em que só os patetas de deixam persuadir por manipulação das suas emoções, que não por razões. Mas mais ainda nos ajuda o filósofo que fundou o Liceu em Atenas, no longínquo século IV a.C. Disse que os argumentos típicos do discurso retórico eram o exemplo e o entimema (argumento que não é possível avaliar em termos de validade porque contém uma ou mais premissas omitidas). Foi precisamente de argumentos desta categoria que a Ministra de educação se serviu para (não)justificar o que imperioso seria que justificasse. Para ilustrar a sua pseudo-resposta, ela exemplificou e “entimemou”, para além de “maniquear”. O seu raciocínio é de uma linearidade assustadoramente perversa. Como se realidade educativa do Portugal presente foi uma realidade a preto e branco, em que as alternativas fossem apenas um mero sim ou sopas (falácia que dá pelo nome de falso dilema). Os sindicatos (que estão contra as actuais políticas educativas que são boas) defendem os interesses dos professores. Os responsáveis pela boa política educativa deste governo (aulas de substituição, rigor, etc.) defendem os interesses dos alunos e dos encarregados de educação. Deixou, como estratégia retórica, que fosse o auditório a sacar a conclusão, que, de tão linear, só pode ser esta: os professores que estão com o sindicato são maus, os restantes, que apoiam as medidas do ministério, são bons. E isto a pouco mais de uma semana da greve marcada pelos sindicatos que representam a totalidade do espectro político. Mas não serão as premissas discutíveis? Não representarão os sindicatos, para além dos seus legítimos interesses corporativos, outros interesses? Não deveria o Ministério da sua tutela, Sra. Ministra, defender também os interesses dos professores, para além do mais? Poderão os objectivos da educação ser atingidos apenas respeitando os interesses de alunos e encarregados de educação? E já agora, outra questão: será um discurso falacioso a melhor arma para resolver os problemas graves e profundos em matéria educativa?
Termino com um texto de uma mulher, de seu nome, Hannah Arendt. Não sei se a cidadã Maria de Lurdes Rodrigues já teve oportunidade de reflectir sobre as questões que nele são colocadas:
“Nunca nin­guém duvidou que a verdade e a política sempre estiveram em bastante más relações e, tanto quanto eu saiba, também nunca ninguém incluiu a boa fé na classe das virtudes políticas. As mentiras sempre foram consideradas necessárias e justificáveis, não apenas à profissão do político e do demagogo, como até do próprio estadista. Por que será assim? O que é que isto represen­ta, por um lado, para a natureza e dignidade da esfera política e, por outro, para a natureza e dignidade do domínio da verdade e da boa fé? Será da essência da verdade ser inoperante e da essên­cia do poder ser enganador? Que género de realidade possui a verdade, se não consegue poder no domínio público, o qual, mais do que outra esfera qualquer da vida humana, confere rea­lidade à existência dos homens, que nascem e morrem, ou seja, de seres que sabem que surgiram do não-ser para a ele retoma­rem depois de uma breve passagem? E, no fim de contas, não será tão desprezível a verdade impotente quanto o poder que não se preocupa com a verdade? Estas são questões bem emba­raçosas, mas que não podem deixar de advir necessariamente das nossas convicções correntes sobre a matéria.”

sábado, novembro 17, 2007

verdade e política

Apesar do Orçamento de Estado para 2008 não ter previsto crescimento algum para o Ministério da Educação, o Governo parece apostado em investir forte nos cursos profissionais. A avaliar pelos discursos e manobras de propaganda dos responsáveis governativos, nos últimos meses, com ostensivas e mediáticas entregas de diplomas e de computadores, o ensino profissional parece ser a menina dos olhos quer do Primeiro-Ministro quer da Ministra da Educação.
Hoje mesmo foi noticiado no Público mais uma medida que reforça o referido investimento. O que seria de louvar, se levarmos em linha de conta que, desde o funeral das antigas escolas industriais, o país tem visto crescer, em época de massificação e de democratização do ensino, o número de doutores e engenheiros em áreas que o mercado de trabalho não consegue absorver, atirando-os para uma situação de precariedade laboral ou de desemprego crónico.
Pode ler-se na notícia: “Os alunos que estão inscritos em cursos profissionais, tanto no ensino público como no ensino privado, vão ter direito a um subsídio de transporte e alimentação já a partir de Janeiro (…) O Governo está ainda a estudar outro tipos de auxílios, designadamente durante os estágios curriculares. A medida insere-se na política de apoio à frequência do ensino secundário, que passa ainda pelo alargamento dos limites a partir dos quais os alunos podem candidatar-se à acção social escolar.”
O problema é que, com esta medida se cria uma situação de flagrante injustiça face aos demais alunos do ensino secundário. A dita “política de apoio à frequência do ensino secundário” parece descriminar positivamente apenas um grupo restrito de alunos, penalizando todos os outros, porventura a maior parte. Uns são filhos da mãe, os outros são filhos da outra. Para além do mais, esta medida de profissionalizar a todo o preço, pode conduzir a realidades caricatas, nomeadamente a de premiar a mediocridade e desprezar o mérito. Não deve a política de ensino dar prioridade sobretudo à promoção da excelência e do mérito? Ou está o país em condições de se descartar das virtudes que melhor podem criar riqueza em matéria de recursos humanos? Ou será que esta medida tenta desesperadamente minimizar o deficit de uma política educativa que, para lá da propaganda e visibilidade mediática, poucos efeitos produzirá? Ou, como afirma Hannah Arendt no seu ensaio “Verdade e política”: “será da essência da verdade ser inoperante e da essência do poder ser enganador?”

quarta-feira, outubro 17, 2007

uma pobreza de governo

Mais coisa menos coisa, um quinto da população portuguesa é pobre. Estes são os dados do INE para 2005. Contas feitas, 2 milhões de portugueses, mais coisa menos coisa, vivem em situação de pobreza monetária, o que significa que têm rendimentos mensais por adulto equivalente – o qual é obtido “dividindo o rendimento líquido de cada família pela sua dimensão em número de adultos equivalentes e o seu valor atribuído a cada membro da família” – inferiores a 360 euros.
O mesmo INE, para o mesmo ano, refere que Portugal é o país da Europa a 25 com maior desigualdade de distribuição de rendimentos. O valor do seu coeficiente é de 38%, numa variação de “0 (quando todos os indivíduos têm igual rendimento) e 100 (quando todo o rendimento se concentra num único indivíduo)”.
De 2005 ao presente ano, se porventura houve alterações, não terão sido para melhor. O aumento da taxa de desemprego, do emprego precário, do custo de vida, o endividamento crescente das famílias, o congelamento das carreiras da função pública, não permitem outra conclusão – a generalidade dos portugueses vive pior hoje do que se vivia há dois anos. Para além dos citados 2 milhões de pobres, mais 2 ou 3 milhões estarão próximos ou a caminho de pisar o risco da pobreza.
Entretanto, o Governo propõe um orçamento para 2008 que penaliza os pensionistas e os deficientes (a maior fatia dos pobres), enfim, os mais desprotegidos. Em termos de repartição do bolo por ministério, a saúde e a educação, ficam na mesma, mais coisa menos coisa, o que, comparativamente com outros ministérios, significa um desinvestimento. Lembram-se do refrão da canção de Sérgio Godinho dos anos setenta? Rezava assim: “a paz, o pão, saúde, educação, só há liberdade a sério quando houver…”E é este um governo socialista chefiado por um PM que apregoa as virtudes da nova esquerda! As suas prioridades falam por si. Quais são as prioridades dos portugueses cada vez mais pobres? Não serão certamente as mesmas.

quinta-feira, outubro 04, 2007

Tota o devorador de emoções

Há sete meses e pico que ele está a viver cá em casa. O mínimo que eu posso dizer é que a nossa vida mudou como da noite para o dia, ou vice-versa. Alteraram-se os hábitos e as rotinas, mudaram-se os comportamentos e os humores, o nosso pólo magnético rodou 180 º e as coordenadas da nossa existência viraram-se de tal modo do avesso que ainda hoje pergunto a mim mesmo onde pára o eixo das abcissas. O ele a quem me refiro chama-se Tota, tem dez meses, pertence à espécie canina.
O episódio que agora lembro ocorreu há mais ou menos trinta anos. Lembrá-lo hoje surpreende-me pela nitidez dos pormenores, sobretudo porque inúmeros outros vão permanecer na penumbra do esquecimento. Era ao entardecer de um dia igual a tantos outros. Num repente, ouvi o chiar dos pneus de um carro no atrito do asfalto e, de seguida, o som côncavo de um embate. Corri ao local onde se amontoava um magote de pessoas. Por entre pernas, braços, saias e calças avistei o pequeno Boneco estendido na calçada que ladeava a estrada. Contorcia-se no abraço da morte. Um fio de sangue espesso e escuro escorria-lhe do focinho e tingia o branco do calcário. Uma vizinha surgiu numa ânsia do desastre. “Quem foi atropelado?” – perguntou. “Foi o cão da vizinha Albertina” – respondeu-lhe o filho do sapateiro. “Então não foi ninguém? Foi um cão?” – tornou a interrogar desiludida. “Morreu, fodeu-se.” – Sentenciou ela categoricamente. E eu concordei em silêncio.
Menos cruamente, é certo, com um pouco mais de humanidade, sem dúvida, mas ainda assim foi esse o entendimento em relação aos bichos que me acompanhou pela vida fora. Um degrau acima das coisas, mas muitos abaixo das pessoas humanas.
Tudo mudou, no entanto, no dia em que o Tota entrou cá em casa, começando a contar, desde então, como um membro mais da família. À semelhança de um filho que, ao longo da sua meninice e adolescência, vai mudando sucessivamente o tipo de problemas que nos coloca, desafiando a nossa capacidade inventiva e persistência (e muitas vezes torrando-nos a paciência) no sentido de os resolver e tocar as coisas para a frente, o Tota porfia na invenção de situações problemáticas para as quais nenhum de nós se sentia preparado. A fase do xixi e do cocó, estrategicamente depostos pelos cantos da casa, já passou, felizmente. Aprendeu que tal género de dejectos não só não são comestíveis como têm o seu lugar natural de existência. Aprendeu também, para felicidade nossa, a sentar-se quando lho ordenam, a deitar-se ou a dar a patinha se lho exigem, e mesmo, qual número de circo, a erguer-se nas patas traseiras e tornar-se momentaneamente bípede quando ouve pronunciar a palavra “upa!” No entanto, continua muito longe de se tornar humano. Nos últimos dois meses deu-lhe para destruir os objectos mais singulares: óculos, sapatos, sandálias, chinelos, meias, calculadora, esferográficas, almofadas, a ombreira de uma porta, sofá, duas camas caninas, estantes, cadeirões, papéis e mesmo livros. Tudo lhe serve de objecto de brincadeira, sobretudo quando se apanha sozinho em casa. Esta está a transformar-se rapidamente num cenário de ataque de terrorismo. Este tem sido o nosso 11 de Setembro. E o Tota começa a parecer-se com um dos seguidores mais fiéis do Bin Laden. Democráticos como de facto somos, temos sido tolerantes. Mas a tolerância tem limites, como todos muito bem sabemos. Começamos a ponderar enviá-lo para Guantámano. O dilema está a tornar-se de tal modo agudo que quando venho a caminho de casa já sinto o coração aos sobressaltos. Este dilema formula-se assim: nem o Tota se tornou membro da família, nem nós nos tornámos membros da sua matilha. Por estas e por outras, se tivesse um pouco de fé, juro-vos que rezaria diariamente uma oração à virgem canina. Nestas situações não dá jeito nenhum ser ateu.
Termino estas linhas com o testemunho do jornalista Joaquim Fidalgo. Só tenho pena que o Tota, devorador de livros, jornais, esferográficas e resmas de papel, não o possa ler: “um cão gosta de nós e pronto. Não exige, contenta-se com tão pouquinho, com um mimo ou uma atenção, com uma velha bola de ténis, com um pauzinho apanhado na praia. E gosta de nós sem querer saber se somos ricos ou pobres, brancos ou pretos, conhecidos ou anónimos, do Porto ou do Benfica, altos ou baixos, lindos ou feios…Gosta de nós e pronto. E só quer que gostemos dele. Que não lhe façamos mal. Que o tratemos com carinho. Que lhe façamos festas. Que brinquemos com ele. Que o mimemos. Só isso.”E já agora acrescento: sabes bem, Tota, o quanto gostamos de ti.

quarta-feira, setembro 26, 2007

ao sabor do metro

Andar quotidianamente de metro, em Lisboa, é uma oportunidade única para conhecer a cidade, os seus habitantes e utentes, enfim, a sua fauna antropomórfica e o seu ambiente. Ao fim da primeira semana percebem-se os seus ritmos, a intensidade dos seus fluxos e refluxos, os ciclos das suas marés. Ao cabo da segunda aspira-se a sua atmosfera, reconhece-se a idiossincrasia das linhas (azul, vermelha ou amarela), conhecem-se os diferentes congestionamentos das carruagens. No termo da terceira, começa-se a captar os pormenores e a deliciarmo-nos com os quadros de vida que registamos, guardando-os nos escaninhos mais esconsos da memória como se de tesouros se tratasse.
Nos últimos anos (muitos, mais de uma dezena) fui um utilizador esporádico do metro – passavam-se meses que eu não descia aos túneis, não assomava aos buracos de acesso que regurgitam, de tempos a tempos, gente aos magotes. No início deste ano lectivo, decidi mudar os meus hábitos de mobilidade e dar descanso ao automóvel que, nos últimos quinze anos, me conduzia invariavelmente ao meu destino. Escusado será dizer esta mudança foi accionada por motivações de índole diversa, a começar pela subida crescente dos preços da gasolina, prosseguindo com os benefícios que para a saúde andar acarreta, finalizando pela evocação de razões de ordem ecológica (a ordem é aleatória). Seja como for, estou muitíssimo satisfeito com a mudança e só lamento não ter tomado a decisão mais cedo.
Hoje mesmo deparei com dois dos quadros acima referidos. Passo a relatá-los.
O primeiro tem que ver com a versatilidade dos pedintes que povoam as carruagens do metro. Cada um tem o seu estilo próprio, um maneirismo “sui generis” que o define dos pés à cabeça. Têm em comum a cegueira que lhes circunscreveu o horizonte existencial e o projecto de vida. Distinguem-se pelos adereços e pela lenga-lenga cantada com que apelam à compaixão, à misericórdia e mesmo à recôndita culpabilidade dos restantes, os outros que não têm maleitas visíveis, mesmo tendo outras não imediatamente expostas ao olhar disfarçado de terceiros. Do cego-pedinte que hoje cruzou o meu caminho poderei dizer que me espantou pela criatividade. Deslocava-se percutindo o seu pau com um objecto metálico (uma colher?) e acompanhava a música que dele tirava com um linguarejar ritmado que soava a “rapper”. Da próxima vez que o encontrar vou prestar mais atenção à letra e talvez dar-lhe uma moeda.O segundo prende-se com uma observação que fiz há cerca de três anos, quando estava de visita a Londres. Aí deparei-me com inúmeras pessoas que aproveitavam as viagens no “underground” londrino para ler, para devorar “books” de todas as espécies e feitios e, presumo, que versavam sobre as mais diversas matérias. Lembro-me de ter dito que, pela amostra, e comparativamente, os lisboetas se pareciam com símios há pouco tempo saídos da floresta primitiva, a assumir a posição erecta e a dar os primeiros passos na savana. Qual não foi o meu espanto, meus amados compatriotas, quando fui percebendo nestas três derradeiras semanas de assíduo utente (ainda que só hoje consciencializado o fenómeno), que também por cá se lia nas carruagens do metro alfacinha. E não são apenas revistas cor-de-rosa ou o gratuito jornal de tiragens astronómicas o objecto de leitura (também disso se encontra), mas, pasme-se!, livros autênticos, romances, ensaios, poesia, literatura técnica a exigir estudo aturado, persistente e esforço intenso das meninges. Por que desataram a ler os lisboetas, perguntei aos meus botões da camisa. Não obtive resposta. Mas desconfio que nada tem que ver com programas oficiais de incentivo à leitura. Acredito, talvez ingenuamente, que os portugueses se cansaram de tanta injúria aos seus dotes intelectuais, de tanta difamação às suas competências cognitivas, de tão apregoado atraso cultural, e decidiram que ler é uma das maneiras mais eficazes de construir mundos.

terça-feira, setembro 25, 2007

um ministério de contradições

A ministra da educação não pára de nos surpreender. São tantas e tamanhas as contradições, quer ao nível do discurso quer ao nível das decisões, que a tutela que dirige mais merece o nome de Ministério da Contradição Educativa.
A mais recente das contradições (será mesmo a mais recente?) releva de dois discursos produzidos no intervalo de poucos dias. No primeiro a ministra afirma, a propósito dos professores que não obtiveram colocação no presente ano lectivo, que os mesmos não podem ter como expectativa um emprego (não sendo portanto professores) quando o número de alunos tem vindo a diminuir nos últimos anos, razão que, no seu entender, justifica o facto do seu ministério se ter descartado de milhares de docentes. No segundo, a propósito de uma notícia veiculada pelo Diário de Notícias em que se dizia ter o abandono escolar crescido no último ano lectivo, a senhora ministra veio contestar que não, aproveitando para dizer que este ano, pela primeira vez desde há anos, o universo escolar se alargou. Em que ficamos, senhora ministra da educação? No sim ou no sopas? Não se percebe. Se calhar não é para perceber. Deve tratar-se de uma realidade em si mesma contraditória que só uma dialéctica ministerial consegue compreender.
Para além do mais, o autismo e uma certa crispação autoritária que por ali reinam dão que pensar. Parece que a cultura democrática não faz parte dos seus hábitos. Quem quer que ouse ter opiniões diversas é logo diabolizado e excomungado. Os sindicatos, os professores e, mais recentemente a própria DECO, a quem os doutores da 5 de Outubro não reconhecem competência nem credibilidade para ajuizar em matéria de vestígios de amianto que aqueles dizem existir em cerca de 20 escolas portuguesas. Assim vai o exercício da democracia num dos ministérios que mais deveria pugnar por dar o exemplo de autêntica cultura democrática, a qual, como bem se entende, se quer o máximo participativa e aberta ao diálogo com os seus parceiros.

quarta-feira, setembro 19, 2007

"eduquices" na TV

A ministra da educação esteve na última 2ª feira, no programa televisivo "prós e prós", perdão, "prós e contras".
Apresentado e moderado pela jornalista Fátima Campos Ferreira, o formato do programa pressupunha, quer-me parecer, pelo menos a julgar pelo nome, um espaço dedicado ao debate de ideias, à disputa de pontos de vista, à luta verbal, em suma, um espaço agonístico em que os protagonistas se esforçam por argumentar e contra-argumentar, conjecturando aqui, refutando acolá, sempre e sempre com a finalidade de levar a água das suas convicções ao moinho das ideias bem fundamentadas. No entanto, ao fim de cerca de três horas de programa, a sensação que se colhe é que do pressuposto do nome resulta um enorme engano. Os presumíveis oponentes da contenda ideológica afinam quase todos pelo mesmo diapasão, limitando-se esporadicamente a minúsculas escaramuças opinativas, a breves arremedos de crítica. Por que razão tal acontece? Por não termos gente capaz de afiar os gumes das suas lâminas nos coiros do adversário? Também será por isso. Mas não só. Um programa com este formato requeria mais coragem e decisão na escolha dos contendentes. Que diabo! não haverá por aí gente com arcaboiço intelectual suficiente para, em matéria de política educativa, esgrimir argumentos mais verrumantes, sólidos e demolidores? Onde estão os críticos do "eduquês"? Onde param os profissionais do ensino que, no terreno, não se cansam de destilar fel e censurar a actual política do seu ministério tão mal amado? Ou será que tudo não passa de um arranjinho para passar um bom par de horas a ganhar visibilidade televisiva?
O debate foi mau. A ministra mostrou a arrogância e a insensibilidade do costume. Teve até o desplante de sugerir que os professores não estavam zangados com ela (alguns sim, outros não, afirmou, não podemos generalizar). Os tiques de autoritarismo e de crispação, de rispidez e de agressividade, fazem dela não uma dama de ferro mas um sócrates (não o grego) de saias. Mas para pior, muito pior. A uma intervenção do sindicalista Mário Nogueira (sem dúvida, a mais inteligente), decidiu que não tinha comentários a fazer. Mas viu-se-lhe bem no "rictus" facial e no aço do olhar, que só não o fulminou ali mesmo porque ainda não se mata ninguém à distância de um relance de olhos. Nenhum sentido de humor, ausência total de ironia. Apenas crispação e rudeza disfarçada pela cosmética. Nos momentos em que se sentiu acossada no brio profissional, quase perdeu a compostura. Os cabelos desgrenharam e apareceu a imagem da Maga Patalógica que povoou os meus pesadelos de menino. A apresentadora, mesmo tendo tido oportunidades para tal, teve sempre o cuidado de não a beliscar demasiado. Dos membros do painel, uma pasmaceira a puxar ao bocejo e ao tédio. Não cheguei a ver o final. Entretanto, o sono embalou-me para uma outra realidade bem mais real que a televisiva.

sexta-feira, setembro 14, 2007

O governo está verdadeiramente apostado na educação.
Contradizendo as notícias postas a circular pelo DN, segundo o qual «Portugal falhou as metas de redução do abandono escolar. Taxa de jovens que sai precocemente da escola sem completar o 9.º ano subiu de 38,6 % em 2005 para 39,2 % em 2006» - contradizendo estes dados o governo faz anunciar que "o valor deste indicador para o ano de 2007 (que reflecte os resultados escolares de 2006) comunicado ao Eurostat pelo INE é de 36,3 por cento, o que revela uma recuperação assinalável."
Esta parece a velha disputa que o governo tem travado com os sindicatos de professores a propósito dos números de adesão às greves.
A julgar pelo modo como o governo se tem empenhado em distribuir computadores, num número de circo mediático que marcou ininterruptamente uma semana da pré-temporada escolar, apostaria a alma em como o governo está verdadeiramente apostado na educação. O meu receio não é perdê-la (o diabo que a carregue!), o meu receio é nada mais ter de apostar quando surgirem oportunidades sérias de o fazer.

quinta-feira, setembro 13, 2007

Portugal enlameado

O primeiro-ministro (tal como o presidente da república) recusou-se a receber, num dia, um homem que, do ponto de vista ético e religioso, e na actualidade, é porventura o exemplo mais representativo do que é um ser humano na autêntica acepção da palavra - o Dalai Lama. No outro dia, recebeu Bob Geldof, no contexto da próxima cimeira Europa-África. As motivações da controversa decisão são tão óbvias quanto sórdidas. E sobretudo repletas de significado. A política perdeu o norte da ética. Tal como referiu Paulo Borges, o representante máximo do budismo em Portugal, são os interesses da “real politik” a sobreporem-se aos interesses humanitários. E acrescentou um argumento político decisivo, que só passa despercebido porque vivemos subjugados pelo imperialismo de uma economia de mercado que faz do capitalismo liberal o “credo quia absurdum” do nosso contentamento mesquinho. Dizia o filósofo português ser injustificável trocar a nossa vocação ecuménica e universalista (a nossa riqueza espiritual) pela ilusão de uma pretensa riqueza material e económica. Deste ponto de vista, nunca deixaremos de ser relativamente pobres; do outro, podemos ser absolutamente ricos e marcar uma posição, à escala internacional, na defesa intransigente dos direitos humanos. A luta que travámos por Timor parece ter perdido o sentido. Por que são os timorenses mais humanos que os tibetanos? A escolha dos políticos mais importantes do Portugal actual só não nos envergonha talvez porque estejamos a perder capacidades intrinsecamente humanas, dentre as quais, se destaca a capacidade de lutarmos por ideais e não apenas por interesses.

segunda-feira, setembro 03, 2007

As férias

As férias constituem, para mim, nos últimos anos, uma tentativa nunca de todo conseguida de enganar o tempo, de me furtar ao seu irrevogável transcurso. Há muito tempo que não tenho por divisa o carpe diem. Não consigo enganar-me a mim próprio. O que faço é vestir outras roupagens e encarnar numa personagem com quem não simpatizo em demasia. Terei de aprender a arte da simpatia. Poderia chamar-lhe o infiel jardineiro, penso. A infidelidade é para comigo próprio, e não para com as flores, as árvores e as plantas que vou aprendendo a amar cada vez mais. Se não as trato melhor, é por ignorância, nunca por desleixo. Bem sei que a ignorância é como erva daninha. Praga danada que não se extirpa a não ser com paciência e trabalho. Falta-me porventura a primeira destas virtudes. A obra é longa e a vida breve. Mais uma vez a consciência trágica do tempo. É precisamente isso que busco nessa intimidade vegetal - a evasão da temporalidade. Outrora as férias não me soavam a esta busca insana do tempo perdido e eu não sabia ainda amar rosas ou o azevinheiro. Nas férias era apenas eu. Nem pensava sequer no infiel jardineiro que me veste as horas do estio maduro.

terça-feira, julho 31, 2007

o país está em banho-maria

O país está a banhos. Do Algarve ao Minho, as praias enchem-se de magotes de portugueses que, ano após ano, vão aperfeiçoando a sua destreza no seu desporto favorito – dar banho à minhoca ou ao mexilhão. À medida da bolsa de cada um, escolhem-se “resorts” de luxo com praias privativas ou então os transportes públicos que conduzem multidões para as “praias dos tesos”.
Entretanto, os “media” adaptam as suas estratégias ao apetite dos consumidores em época de veraneio. Aparecerão inevitavelmente as notícias dos incêndios (lembro-me que até o famigerado incêndio do Chiado ocorreu num Agosto para mim já longínquo), dos roubos de gado numa qualquer aldeia do interior, dos mortos nas estradas assassinas, das transferências milionárias dos jogadores afortunados (agora menos afortunados, coitados, por terem de pagar mais impostos). Para já não falar de notícias dos desempregados, dos sem-abrigo, dos miseráveis a quem a sorte não bafejou e dos desvalidos a quem a vida pregou a mais negra das partidas. Tudo isto para que o banhista que há em cada um de nós se julgue imune às tragédias alheias e se sinta, na comiseração convencional, o mais sortudo dos mortais. De assuntos políticos pouco se falará (os assuntos sérios não se coadunam com os banhos de Verão). Em Setembro logo se vê. O país está em banho-maria. Bem merece quem ainda não é defunto.

domingo, julho 29, 2007

rouxinol faduncho

A grelha de Verão da RTP1 está verdadeiramente transfigurada, para melhor. Aos sábados passa, em horário nobre, um programa intitulado Rouxinol Faduncho Rodoviário. O que se exibe é parte de digressão feita pelo cantor Marco Horácio – e ainda há quem pense que um nome não predestina os feitos de quem o ostenta – por terras portuguesas, que é uma espécie de prolegómenos ao êxito futuro por que passaram os mais inspirados cançonetistas nacionais. O repertório do artista conta já com sucessos de registo, tais como Dona Maroca, Fado das Barracas, Tasca do Zé Tinhoso e o famosíssimo Cães de Loiça. O pseudónimo artístico é uma delícia, pois que se trata de um oximoro nada ocasional – Rouxinol Faduncho. Relembre-se que faduncho significa fado ligeiro ou sem qualidade, o que contradiz a natureza da ave. O estilo do autor enquadra-se na categoria de fado humorístico e alguns dos seus tiques de cantor fazem lembrar o melhor do saudoso Herman José. O que nos é apresentado pelo autor é o kitsch na única expressão que aprecio: a do foleiro que, pela sua mesma manifestação, nos conduz à crítica por via do riso. Uma Crítica da Razão Risível que nenhum filósofo, que eu conheça, soube ainda inventar. Vale a pena pesquisar do You Tube.

quinta-feira, julho 26, 2007

medo

Manuel Alegre recusa-se a ficar calado. O clima de medo que se gerou nos últimos meses a propósito dos “pontuais” mas repetidos casos “que têm em comum a delação e a confusão entre lealdade e subserviência” levaram o histórico deputado do PS a fazer ouvir a sua voz, uma vez mais, contra o “clima propício a comportamentos com raízes profundas na nossa história, desde os esbirros do Santo Ofício até aos bufos da PIDE”. Alegre coloca os valores da liberdade e da democracia acima dos valores do partido. Lembra que “quem se cala perante a delação e o abuso está a inculcar o medo. Está a mutilar a sua liberdade e a ameaçar a liberdade dos outros”. Acrescenta, procurando caracterizar o medo. “Medo de falar e de tomar livremente posição. Um medo resultante da dependência e de uma forma de vida partidária reduzida a seguir os vencedores (nacionais ou locais) para assim conquistar ou não perder posições (ou empregos). Medo de pensar pela própria cabeça, medo de discordar, medo de não ser completamente alinhado”. E termina deste modo, não sem antes referir as suas discordâncias (muitas) com a linha de rumo que o governo tem tomado: “Agora e sempre contra o medo, pela liberdade.”

Outro histórico do PS e seu fundador, António Arnaut, em entrevista à revista Visão hoje, descreve assim a geração que actualmente está no poder: “É um produto das circunstâncias. Noto falta de cultura cívica. É gente sem reflexão sobre os comportamentos, a arte, a literatura e a história do nosso povo. A cultura é uma sabedoria que se recolhe da experiência vivida. Muitos deles não têm uma ideia para Portugal, não conhecem o país. Vivem do imediatismo, da conquista do poder. Conquistado, vivem para aguentá-lo. Esta geração vale-se mais da astúcia do que da seriedade. E aprendeu os ensinamentos de Maquiavel.” À pergunta se assistimos hoje a um Portugal amordaçado, responde: “Algumas pessoas acomodam-se, querem manter os seus poderes e tendem a bajular o chefe. (…) Um país sem humor não tem futuro. Um tipo com cultura tem humor! Basta ter lido o Eça.”

O filósofo José Gil, no seu “best-seller” Portugal, Hoje: O Medo de Existir, cita Hannah Arendt: “a tirania cria um deserto de medo e de suspeita, sem leis nem barreiras. Este deserto não é de modo nenhum um espaço vital para a liberdade, mas deixa ainda algum lugar aos movimentos e acções que o medo e a suspeita inspiram aos seus habitantes”.

Alexandre O’Neill escreveu um poema sobre o medo:

POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos a ratos

Sim
a ratos








quarta-feira, julho 25, 2007

do iberismo e de saramago

Confesso que não li a entrevista que José Saramago deu ao Diário de Notícias, no passado dia 15. A minha cabeça está, de momento, ocupada com outras coisas, uma das quais, bem mais importante para mim, a preparação das férias que se avizinham. Contudo, acho o tema da entrevista aliciante. Como tal, pensei escrever algumas palavras sobre o assunto. Já percebi que a minha opinião vai em contra mão. Uma busca rápida na net com as palavras “José Saramago” e “iberismo” não dá margem para dúvidas. Vociferam-se impropérios ao Nobel, clama-se “aqui d’el rei”, grita-se “Olivença é nossa!”. No reino da blogosfera, afina-se a voz pelo coro dos anti-iberistas. Lembra-se o ditado “de Espanha nem bom vento, nem bom casamento” para apregoar alto e bom som o nacionalismo luso.
Tudo isto por que o homem, uma vez mais, voltou, em estilo provocatório, a enunciar uma tese por si próprio há muito tempo defendida, pelo menos desde a Jangada de Pedra. No romance a metáfora é clara: homens e mulheres navegam pelo mar fora na mesma jangada. Mas quantos o leram? Quantos entenderam a mensagem? A diferença agora é que não se trata de um romance, de um exercício ficcional, nem do escritor. É o homem José Saramago, casado com uma espanhola, vivendo à 14 anos em Lanzarote, em terras do arqui-inimigo, que tem a ousadia já não de propor o iberismo como utopia, mas de prognosticar o fim do país naturalmente é o seu. Parece que afirma que Portugal acabará por se tornar uma província de Espanha, tomando esta o mítico nome Ibéria. Consta que defende ter a nação lusa tudo a ganhar com isso em termos de desenvolvimento, caso houvesse uma “integração territorial, administrativa e estrutural” com nuestros hermanos. Chega mesmo a ter o desplante de sugerir que os portugueses estão prontos a aceitar de coração aberto o enlace ibérico. Estarão deveras? Por que não fazer um referendo, já que estamos em maré deles? Eu cá alinho na ideia.
A ideia não é nova, vem do tempo dos afonsinos e alguns dos escritores saídos da fornada da geração de 70 argumentavam a favor dela. Os tempos hoje são outros, os da globalização e da Europa politicamente unida. No meu pobre entendimento, os tempos que correm, correm justamente de feição à utopia escrevinhada na Jangada de Pedra. Porquê? Por que a integração nos tornaria mais fortes no jogo da política internacional. Mais fortes não apenas em termos político-económicos, mas também no que concerne ao sócio-cultural. Creio que nos tornaríamos uma força peninsular de respeito no interior da Europa dos trinta ou trinta e cinco. Lutaríamos ombro a ombro com o Reino Unido, a Alemanha e a França. O que perderíamos? Vagos sentimentos sebastianistas e um feriado, o da Restauração. Não seríamos os mesmos. Obviamente que não. Mas nunca somos os mesmos. Seríamos diferentes? É claro. Seríamos melhores? Não tenho dúvidas.
É evidente que os preconceitos históricos nos impedem de pensar friamente no assunto. Talvez daqui a um século nos estejamos a rir de tais preconceitos serôdios, como nos rimos hoje dos nossos preconceitos racistas ou sexuais passados. Ou não é o caso?

quinta-feira, julho 12, 2007

S.J.M.D.

Os professores portugueses que se cuidem! Para além do que muito padecem (desautorização, injúrias, sevícias e o diabo a sete), começam a ser vítimas de uma recente epidemia mortal: o Síndroma da Juntas Médicas Doutrinadas (S.J.M.D.). Parece que deram em morrer de cancro e em serviço. Estóicos (o estoicismo é uma ética de tempos de decadência disfarçada). A propósito dos casos vindos a público, a Ministra da Educação lava as mãos como Pilatos. Não é matéria do seu pelouro nem da sua competência. O Primeiro-Ministro, mais sensato, diz-se chocado como aliás toda a opinião pública. Não contribuíram ambos para indispor a opinião pública contra os professores? Não terão dado uma mãozinha perversa às Juntas Médicas que, nos últimos tempos, desataram a indeferir pedidos mais do que justificados de reformas antecipadas? Não acredito! Mas o Primeiro-Ministro garante-se chocado com as notícias das mortes anunciadas e promete mudanças. Medidas urgentes. Auditoria às Juntas Médicas e alteração na legislação que a lhes dizem respeito. Por que razão não acredito, senhor Primeiro-Ministro? Entretanto, os professores que encomendem já as suas urnas funerárias. E paguem antecipadamente o funeral póstumo a crédito. Aproveitem. Depois de mortos e enterrados, ninguém lhes cobrará um cêntimo.

domingo das urnas

No domingo, vamos a votos outra vez. Vamos? Não sei se irei. Pela primeira vez, desde o início dos anos 80, estou indeciso. Esclareço. A minha indecisão não se cola à escolha dos candidatos ou ao voto em branco, o que já me aconteceu (nunca a 4 dias das eleições, é certo). Não está associada a um hipotético fim-de-semana de corpo estirado sobre as areias morenas de qualquer praia algarvia. Não se prende com férias no estrangeiro ou no Portugal profundo. A minha indecisão – que será a de muitos lisboetas, creio – tem que ver com a natureza dos candidatos. Desacredito de todos. Do imponderável António Costa ao indescritível Carmona Rodrigues, passando pelo insubornável Sá Fernandes, etc. Se for às urnas (tétrico, bem sei), por imperativo ético ou cívico, talvez vote na imprevisível Helena Roseta. Sem nenhuma convicção, acrescento. Um único argumento dela quase me convence. Afirma: “em casas pobres as mulheres é que gerem o dinheiro. É um facto.” Mas como dizia o filósofo “não há factos, apenas interpretação de factos”. E a minha interpretação conduz-me a duas observações e uma pergunta. Primeiro, não gerem o dinheiro mas a penúria dele; segundo, é a experiência da pobreza que lhes ensina a correcta gestão da escassez; terceiro, que experiência tem a arquitecta da pobreza? Dúvidas e mais dúvidas. Por isso, talvez no domingo não vá a votos. Há sempre uma primeira vez. A acção política não é sinónima de ir às urnas. Um funeral sim. Sinceramente, não me apetece acompanhar esse morto à sua última morada.

terça-feira, julho 03, 2007

o filósofo andarilho ou o viajante e a sua sombra

A leitura de algumas cartas de Nietzsche – que cobrem um intervalo temporal de vinte anos, isto é desde o período em que conhece Richard Wagner, em Novembro de 1968, até aos primeiros dias de 1889, imediatamente antes de sucumbir à loucura – provocou em mim uma amálgama de sentimentos contraditórios, da quase exaltação à quase angústia. Homem íntegro e absolutamente coerente com as suas convicções, amigo incondicional e inimigo impiedoso, generoso na dádiva extrema de si próprio, desbravador do insondável da alma humana, “dinamite” como de definiu um dia. Foi sempre um pensador no fio da navalha, implacável e acerado no bisturi da crítica, que o haveria de conduzir à mais radical das suspeitas – a de que a civilização ocidental, no somatório dos seus vinte e cinco séculos, assenta no erro terrível que degenerou em decadência e niilismo, esse veneno que asfixia o homem e produz uma cultura anémica. Jovem catedrático em filologia clássica, leccionou durante dez anos em Basileia, até que a doença, o sofrimento e a descrença o fizeram abandonar os círculos académicos, em 1878, e enveredar pela aventura quase solitária de uma vida errante. Passou a ser, a partir de então, o Viajante e a sua sombra. Daí para diante, o filósofo andarilho produziu grande parte da sua obra escrevendo a lápis em caderninhos pequenos, enquanto marchava. O vigor da marcha que o conduzia aos cumes, que o levava a pelos bosques e vales verdejantes, esse mesmo vigor cadenciava os seus pensamentos, servia de dínamo às ideias e intuições fulgurantes que ia registando com esforço. Em carta endereçada a seu amigo Peter Gast, de 5 de Outubro de 1879, num dos períodos mais sofridos da sua existência atribulada, escrevia: “Com excepção de algumas linhas, o total foi concebido ao ritmo da marcha e esboçado com lápis em seis caderninhos: a transcrição dava-me náuseas. Tive de deixar passar uma vintena de encadeamentos mais extensos, desafortunadamente alguns dos mais essenciais, porque nunca tinha tempo suficiente para extrai-los da horrível garatuja produzida a lápis: o que já me sucedeu o Verão passado. Depois disso, o encadeamento dos pensamentos escapa à minha memória: com efeito, tenho de arrebatar os minutos e os quartos de hora à “energia do cérebro” de que você fala, arrancando-os de um cérebro que sofre. Por vezes, parece-me que não poderei fazê-lo jamais. Leio a cópia e custa-me entender-me a mim mesmo, de tão angustiada que está a minha cabeça.” Dos primeiros dias de Janeiro de 1889 até meados de Agosto de 1900, o filósofo do Assim falava Zaratustra viveu submerso por uma loucura porventura de origem congénita.

domingo, julho 01, 2007

"Não deixes que te metam patranhas na cabeça"

Às vezes, quando estou cansado, cansado do dia a dia que parece sem sentido, cansado das horas desditosas, cansado das promessas por cumprir, da retórica que nos enreda numa teia laboriosamente tecida pró engano, da conversa oca dos que falam muito porque nada têm para dizer, cansado acima de tudo por ser a hora dos cansaços, como diz o poeta, recosto-me no sofá e leio um poema. Sei o que ele me traz – o vigor de uma utopia íntima e a esperança de um renascer. Hoje foi este o poema que o acaso escolheu para mim. Ofereço-vo-lo. Pegai e lede-o, pois é sem custos.

LOUVOR DO APRENDER
Aprende o mais simples! Pra aqueles
Cujo tempo chegou
Nunca é tarde demais!
Aprende o abc, não chega, mas
Aprende-o! E não te enfades!
Começa! Tens de saber tudo!
Tens de tomar a chefia!

Aprende, homem do asilo!
Aprende, homem na prisão!
Aprende, mulher na cozinha!
Aprende, sexagenária!
Tens de tomar a chefia!

Frequenta a escola, homem sem casa!
Arranja saber, homem com frio!
Faminto, pega no livro: é uma arma.
Tens de tomar a chefia.

Não te acanhes de perguntar, companheiro!
Não deixes que te metam patranhas na cabeça:
Vê c’os teus próprios olhos!
O que tu mesmo não sabes
Não o sabes.
Verifica a conta:
És tu que a pagas.
Põe o dedo em cada parcela,
Pergunta: Como aparece isto aqui?
Tens de tomar a chefia.

Bertolt Brecht

Depois de o ler, dei comigo a pensar – quanto mais não vale este poema do que todas as reformas educativas e todos as iniciativas “Novas oportunidades”. Só é pena que haja pouca gente a dar por isso. Faço coro com Brecht: "não deixes que te metam patranhas na cabeça".

O seu a seu dono


Ninguém me convence do contrário. Existe certamente um qualquer princípio osmótico que filia umbilicalmente os cães a seus donos. Não. Não se trata apenas da osmose dos traços de carácter. Isso é evidente. Donos rabugentos, conflituosos ou rufias geram, na maioria dos casos, cães desconfiados, agressivos e perigosos. Do que se trata é de um tipo de identificação plástica que faz com que os cães ou as cadelas – há que referir ambos em prol do discurso politicamente correcto – assumam, muitas vezes, uma similitude flagrante com as pessoas que os têm a seu cargo. Que provas tenho eu disso? Inúmeras, como devem imaginar, agora que me tornei um assíduo frequentador de locais em que os donos levam os seus canídeos a passear. Nunca antes imaginei fazer amizades com pessoas estranhas. Amizades é porventura uma palavra forte, excessiva. Em abono da verdade não lhe chamarei tal. Afinidades talvez. Afinidades caninas. São precisamente estas que me põem em contacto com gente de toda a espécie e figura: a senhora de cabelo grisalho e encaracolado que passeava pela trela o seu sósia caniche; o jovem imberbe e borbulhento arrastava o seu rafeiro também ele cravejado de pústulas faciais; a adolescente escanzelada de anoréctica que vigiava sofregamente a sua cadela esgalgada; a quarentona nutrida de carnes e de olheiras carregadas que cumulava de beijos lambidos o seu terrier com auréolas negras ao redor dos olhos; o indivíduo com ar de GNR e bochechas a pender devido à força gravítica que fustigava verbalmente o seu buldogue de beiçolas caídas. Enfim, só tenho pena de não andar munido de uma máquina fotográfica para retratar com objectividade o que acabo de descrever. Paciência. O decoro não o permite, nem a boa educação. O meu cão, felizmente, tem um ar jovial, alegre, bem disposto, dotado de bem porte e pêlo luzidio. Pela descrição, devem adivinhar a minha figura, modéstia à parte. Fiel à minha convicção, coloquei uma fotografia do meu “Tota” no topo da página do meu blogue.

sexta-feira, junho 29, 2007

Doutores e Engenheiros

Aqui há uns anos – lembram-se? – havia um concurso televisivo que passava em não sei que canal com o pomposo título Doutores e Engenheiros. Não me recordo mais nada (não tenho tempo nem quero pesquisar). Não sei que apresentador(es) o apresentava(m), nem tenho a mínima noção do seu formato e do seu conteúdo. Tenho sim a impressão de que era pró mauzinho. Que me perdoem os que não concordam comigo e têm uma memória viva do dito. Há quem afirme que gostos não se discutem. Acho que essa opinião é discutível, mas não vem agora ao caso fazê-lo. O que vem ao caso é eu considerar que existem algumas semelhanças entre o tal concurso e o actual governo, a começar pelo título.
Alguns dos seus membros não é doutor ou engenheiro? Nem um. Alguns de vós replicarão que não senhor, que isso de ser doutor ou engenheiro tem muito que se lhe diga, não é para qualquer borra-botas, lembrando talvez as recentes polémicas com as habilitações académicas do Primeiro Ministro. Ora, balelas! Deixem-se de preciosismos. Ninguém ou quase ninguém faz caso disso. Não é corrente a auxiliar educativa (sra. "Contina") chamar ao professor de ginástica – sempre gostei da expressão – sr. Doutor? Não é hábito da funcionária do bar de um instituto qualquer dizer ao licenciado em engenharia: “sr. Engenheiro, esqueceu-se do troco”? Adiante, que se faz tarde.
Dir-me-ão, no pressuposto de que não terei resposta: mas afinal que demais parecenças se poderão apresentar? Respondo com uma palavra: mauzinho. A única diferença é que os doutores e engenheiros do referido concurso não tinham consequências práticas para a coisa pública (ou teriam mínimas), ao passo que os doutores e engenheiros do governo têm-no e de que maneira. No que diz respeito ao formato governativo, respigarei apenas algumas características: arrogância, prepotência, autoritarismo, autismo e instinto pressecutório e intolerância. Para dar conteúdo a este formato basta que nos lembremos de exemplos que corporifiquem as características enunciadas. Lembremos os casos recentes da OTA, do professor punido pela piada jocosa, do nosso colega bloguista que ousou questionar por escrito as habilitações do Primeiro Ministro e, por último, a fulana exonerada por ter deixado que una cartazes insultuosos manchassem a figura política do Ministro da Saúde. Parece que alguns ministros e seus sequazes não toleram a crítica e lidam mal com a liberdade de expressão, sobretudo quando esta se reveste de um tom sarcástico e provocatório. Pobres coitados, que não sabem rir-se de si próprios! – “Ai dos mestres que não sabem rir-se de si próprios” dizia Nietzsche. Para todos eles recomendo um manguito à Zé-povinho, que tenho como uma saudação que, do túmulo, lhes envia o grande Rafael Bordalo Pinheiro. Já agora, leiam o Eça e assistam a algumas das representações vicentinas. Cultivem o riso e a ironia, mesmo quando pela manhã se enxergam ao espelho. Que bem que faria a essas personalidades crispadas! E à democracia.

domingo, junho 24, 2007

Num país de brandos costumes e de atitude indiferentista em relação a assuntos de cidadania participativa, uma questão importante seria a de saber que ideia têm os portugueses do Estado. Não confundamos as coisas. Não se trata de saber qual é a opinião que os cidadãos lusos têm, hoje por hoje, dos políticos em geral e do governo em particular. Isso sabe-se. Qualquer sondagem nos transmite com facilidade esses dados. Melhor seria ficarmos a saber o conhecimento médio que temos em matéria de política. Suponho que seja sofrível, para não dizer medíocre. Mas creio que nenhuma sondagem ou estudo de opinião nos diga, a propósito, nada de significativo.
O que é o Estado? Será o Estado sinónimo do governo? O que caracteriza um regime democrático? Que distingue democracia directa de democracia representativa? Será aquela possível na actualidade? Que outros regimes políticos existem para além da democracia? Por que razão é a democracia preferível? Quais as debilidades do regime democrático? O que distingue, no essencial, cidadania passiva de cidadania activa ou participativa? É a democracia possível para além do sistema partidário? Eis algumas questões - outras seriam igualmente importantes - com que gostaria de confrontar a maioria dos portugueses. Porquê? Para avaliar a sua consciência política. E dessa avaliação tirar ilações. Talvez venha a ser necessário introduzir nos "curricula" escolares, como obrigatória, uma disciplina de cidadania política. Lembro que após o 25 de Abril houve uma disciplina de Introdução à Política. Foi ela que me permitiu ter algumas noções básicas da matéria em questão.
Dizia Aristóteles ser o homem um animal político. Esta identidade é hoje renegada ou apenas lembrada para a aplicar a alguns políticos da nossa praça. Ao olhar para a nossa gente do presente e do amanhã, parece-me antes sermos fundamentalmente animais apolíticos, o que, na opinião de Aristóteles significaria sermos animais ou deuses. Da a impossibilidade de sermos deuses, resta-nos a animalidade.

quarta-feira, junho 13, 2007

O governo começa a ceder. A frase encerra hoje uma opinião generalizada. Comentadores, jornalistas e fazedores de opinião, quase sem excepção, afinam a voz neste coro. Apontam como sinais da cedência, fundamentalmente, a morosidade das prometidas reformas da Administração Pública e a recente hesitação quanto à localização do futuro aeroporto. Argumentam que as razões dela se devem quer à proximidade da presidência portuguesa da União Europeia, quer ao facto de termos entrado na segunda metade deste ciclo legislativo, quer ainda ao fim do estado de graça governativo. Talvez tenham razão. Mas é bom não esquecer outras evidências. O caso da licenciatura de Sócrates - terá provocado mais mossa do que o previsto? -, os dislates verbais de alguns ministros, a teimosia e a inépcia de outros, e sobretudo o tom de arrogância e de autismo democrático com que se têm procurado impor medidas impopulares. Se lhes acrescentarmos o progressivo e alargado empobrecimento do cidadão comum e a sensação de injustiça social que se adensa como nevoeiro em manhã fria e húmida, temos certamente o cenário de um desconforto que invade hoje por hoje a maioria dos portugueses.
Tenho para mim que o governo começou a ceder por dentro, não nas últimas semanas, mas a partir do momento em que começou a somar derrotas eleitorais, em que o Primeiro Ministro teimou em manter no executivo ministros sem a mínima capacidade. Quando se fechou em si próprio e não teve a sensibilidade necessária nem para dialogar com os seus parceiros negociais nem para tomar o pulso ao povo a tempo e horas (dialogar e mostrar compreensão nem sempre é sinónimo de cedência).
A força que o governo exibiu teve sempre apenas uma direcção: as populações mais pobres ou com menos poder reivindicativo: fechou maternidades e escolas no interior, aniquilou a moral de uma classe fraca e desprotegida - os professores. Nunca se mostrou capaz de confrontar os poderosos e aqueles que melhor instalados estão na vida: a banca, os grandes empresários, os juízes, etc. Ora, os mitos - como o do Robin dos Bosques - são eternos, justamente porque simbolizam a luta contra os poderosos e o legítimo anseio de justiça. O governo não soube, não quis ou não pode protagonizar essa luta e esse anseio. Pelo contrário, adoptou políticas que renegam uma esquerda que se pretendia moderna. Falhou o alvo, na sua míopia governativa. Mesmo ganhando as próximas eleições para a Câmara de Lisboa, a vitória, por escassa, soará a mais uma derrota. Assim, terá o que merece: o descrédito e a desconfiança. Pior que isso - o autodescrédito e a autodesconfiança começam a minar o espírito de um governo que se apelidou de reformista. O melhor é reformar-se. Ou então reformar a sua visão política e mudar de política, que é como quem diz mudar de vida.

quarta-feira, junho 06, 2007

Do Zé e dos outros

À excepção de Platão e do meu amigo Zé Ernesto (ex-pastor e agora camionista de longo curso) – o primeiro por considerá-los uns embusteiros e, por conseguinte, perniciosos à República; o segundo por achar que não passavam de uma corja de meliantes que se serviam do seu “métier” como mero estratagema para a boa vida –, à excepção de ambos, dizia eu, toda a gente que conheço nutre pelos artistas alta estima e apreço.
Não pretendo com isto afirmar que o meu amigo Zé seja platónico. Nem tal me passaria pela cabeça. Não violo o princípio da não-contradição por dá cá aquela palha. Aliás, violá-lo seria para mim crime tão hediondo como violar uma qualquer adolescente com formas de Afrodite apetecível, por mais que o cão do desejo se não cansasse de me ladrar à porta, como diz o poeta. O caso é outro e bem diverso. O caso é eu – que me perdoe o Zé e Platão (amigo de ambos, mas mais amigo da verdade) – alinhar noutra equipa, precisamente naquela que apregoa caber à arte, mais do que à ciência ou à filosofia, um papel determinante na justificação da existência. Nisto sou nietzscheano, confesso. Na sua obra inaugural, “O nascimento da tragédia”, publicada em 1871 sob o signo de Wagner, Nietzsche exprime a sua “metafísica de artista”, defendendo, entre outras, a seguinte tese: só a arte (trágica) justifica a existência. Tendo como adversário Platão (Sócrates), “o ponto solsticial e a coluna em torno da qual gira a dita história do mundo” (NT, 15), o filósofo do pessimismo trágico começa, na obra citada, o seu combate contra uma concepção teórica que dominou o destino da civilização ocidental, desde que o racionalismo estético de Sócrates assassinou a tragédia. Ancorado numa concepção trágica da existência (que aceita a dor e o sofrimento como condição de possibilidade de transfiguração da vida em potência), Nietzsche propõe uma inversão de valores e a aceitação do mundo sensível como o único capaz de potenciar a existência: “Temos, agora, de avançar briosamente para o terreno de uma metafísica da arte, retomando uma das nossas asserções, a saber, que a existência do mundo não parecem justificáveis a não ser como fenómeno estético: neste sentido, o mito trágico deve convencer-nos que, até mesmo o horrível e o monstruoso, são um jogo estético com que a vontade brinca na eterna plenitude da sua existência” (NT, 24). Que me dizes a isto Zé? Eu sempre disse que não eras platónico. Talvez esteja em condições para afirmar que talvez também tu sejas nietzscheano. Mesmo que o não saibas. Direi mais. Talvez sejamos hoje em dia todos um pouco nietzscheanos sem o que de tal suspeitemos. Mas seremos mesmo?

domingo, junho 03, 2007

Nietzsche ou o profecta de todos os desertos

Apesar de ser talvez o filósofo mais comentado e venerado do mundo ocidental, Nietzsche não é certamente o melhor compreendido, por variadas razões, nomeadamente pelo carácter assistemático e errante do seu pensamento, pela forma aforística dos seus textos mais conhecidos e pelo tom irónico e profético da sua voz.
Obras com o título Assim falava Zaratustra, Anti-cristo, Para além do bem e do mal e O crepúsculo dos ídolos – ou conceitos do quilate dos super-homem, eterno retorno e vontade de poder constituem, nas palavras que delimitam os seus contornos, um apelo e uma sugestividade que justificam o êxito enorme que teve logo após a sua morte. Se lhe acrescentarmos a figura austera, o semblante carregado, a bigodaça farfalhuda de piaçá, bem como o facto de se ter dirigido explicitamente ao homem do porvir, com promessas de uma redenção suspeitamente envenenada, percebe-se o quanto a sua filosofia pode ter de atractivo aos olhos e ao entendimento (ou sua falta) dos biliões de pessoas que vivem hoje sob o signo do prognosticado niilismo, ainda o século XIX não se tinha cumprido de todo.
Nietszche é o filósofo que levou a crítica ao paroxismo do seu estatuto filosófico mais autêntico. Radicalizou-a, conduzindo-a às suas consequências mais extremas e perigosas – objectivamente, à suspeição dos pilares ou valores em que assenta a civilização ocidental; subjectivamente, ao trilho da loucura que o encerrou onze longos anos no silêncio da inocência. Nos escombros desse silêncio prenunciava-se o deserto que cresceu e inunda hoje os nossos dias. É o vento desse deserto que urge escutar, decifrando nele os sentidos múltiplos daquela voz que precisava de se mascarar para enunciar verdades que ferem como punhais assassinos.
Ao domingo à noite, na RTP1 e em horário nobre, o professor Marcelo continua a representar o seu papel de actor medíocre. Acompanhado pela jornalista - sua "partenaire" nesse jogo do faz de conta idiota para consumo de papalvo - não se coíbe de dar corpo e espírito a uma encenação que chega a comover pelo ridículo e pelo kitsch. Bem sei que o formato está feito para ser consumido por um incontável número de pessoas que não abona em capacidade crítica. Ou para ser passivamente absorvido à hora soporífera que antecede o sono ou o pesadelo da semana que se avizinha. Mas assim tanto também não. É de mais! Os comentários, da política ao futebol, passando pelo fait-divers, são de cair para o lado, literalmente. Lugares-comuns, preconceitos, ideias de pacotilha e observações pré-fabricadas, tudo somado dá um chorrilho de alarvidades que um dia ainda farão as delícias dos pesquisadores futuros dos pretéritos tesourinhos deprimentes .E uns maneirismos de puxar ao arremedo.É por isso, justamente por isso, que os sketches do Gato Fedorento sobre o professor Marcelo Rebelo de Sousa tem a preferência do grande público, logo a seguir aos que têm por objecto o inenarrável Paulo Bento, treinador do Sporting.
Duas observações apenas, para justificar a bílis repentina que libertei ao ver mais um episódio dessa novela chamada As escolhas de Marcelo.
Primeira: as notas que ele dá aos políticos da nossa república das bananas assemelham-se aquele professor porreiraço que encara a turma com olho de pediatra - um auditório de gente sofrida e traumatizada a quem um 9 é já um sério sintoma de perturbações sérias e inultrapassáveis; segunda: os livros e o modo como os apresenta constituem a mais infeliz tentativa de ilusionista, desse mesmo ilusionista a quem os truques saem lentos e sem jeito. A quem pretende o professor Marcelo enganar, ao simular desse modo infantil (lendo e treslendo capas e contra-capas) capacidades supersónicas de super-homem de leituras diagonais à velocidade do relâmpago? Enganar precisamente uma quantidade de iletrados funcionais que fogem dos livros como o diabo da cruz. E consegue.

domingo, maio 27, 2007

as borbulhas cruéis de uma adolescência

Os últimos anos têm dado a conhecer, sobretudo nos países desenvolvidos, um fenómeno social alarmante. Trata-se de uma nova patologia social que afecta um número crescente de famílias e cujas implicações, múltiplas e complexas, requerem de instituições como hospitais, tribunais, famílias e escolas respostas que vão para além daquilo que estamos habituados a procurar ao nível do senso comum. Refiro-me ao fenómeno de crianças e de adolescentes que maltratam os seus pais, chegando por vezes a recorrer à violência física, por motivos aparentemente fúteis e de difícil aceitação. Inaceitável e incompreensível, o comportamento dos fedelhos que vêm os pais como meros instrumentos de satisfação dos seus caprichos, como objectos das suas vontades patologicamente construídas, revela fundamentalmente o mal-estar vivido no seio de um tipo específico de civilização – a civilização que faz do consumo imediato o único fim que justifica a existência. Revela igualmente a importância de repensar o modo como os pais educam hoje em dia os seus filhos.
Javier Urra, autor do livro O pequeno ditador – da criança mimada ao adolescente agressivo, traçando o perfil desses adolescentes violentos, afirma ao Expresso: “ São jovens, entre os 14 e os 16 anos, que só conhecem o ‘aqui’ e o ‘agora’. Sempre tiveram tudo. Cresceram a exigir coisas, nunca foram contrariados, ninguém os obrigou a cumprir regras. Quando um miúdo evolui neste percurso, tem cada vez mais poder em casa. Entretanto, torna-se adolescente e só conhece aquela maneira de estar. Chega a um ponto em que a vida familiar se torna insuportável. E há um dia em que, quando a mãe o enfrenta, ele se vira: ‘Tu? Atreves-te a dizer não, a mim!?”
Este pequeno ditador (que pode exceder em tamanho a estatura dos progenitores) vai, ao longo da sua curta existência, desenvolver uma personalidade narcísica, profundamente egoísta, alicerçada numa mescla de incapacidades: de autonomia, de reconhecimento, de satisfação sadia e de ultrapassar as frustrações que decorrem das suas mesmas incapacidades.
Qual é a verdadeira dimensão do problema em Portugal? Os números que existem não são elucidativos, por razões compreensíveis – só em circunstâncias extremas os pais denunciam os seus rebentos; pelo contrário, tendem a desculpabilizá-los, por vezes de forma bizarra. No entanto, a situação é grave, porquanto tem vindo a aumentar nos últimos anos. Os dados da Associação de Apoio à Vítima (APAV) são os seguintes: “19 casos de pais vítimas de filhos menores de 18 anos, em 2004. Em 2006, foram apresentadas 26 queixas. Quando se fala em filhos maiores de idade, o número dispara de 229 para 394, entre 2004 e 2006.” Parecem irrisórios, os números. Mas sê-lo-ão de facto? Proponho a seguinte leitura, à falta de outra melhor: no que diz respeito aos ditadores mais jovens – e atendendo a que é justamente nestas idades que os pais mais relutância sentem em se queixar e mais prontos estão para desculpabilizar – os números reais devem ser efectivamente muito superiores aos registados; no que se refere aos ditadores já com o estatuto de maioridade, apesar de os números apresentados estarem mais próximos da realidade, ainda assim devem ser uma ficção. De qualquer modo, o crescimento de casos registados foi, respectivamente, de 27% e de 42%, nos dois últimos anos. Significativo? Indiscutivelmente. Preocupante? Sem dúvida.
Quem são os responsáveis pelo fenómeno? Que causas descortinamos a montante? Do meu ponto de vista, os pais e a sociedade de consumo. Os primeiros porque são permissivos e irresponsáveis. Confundem carências reais com virtuais e entregam à sociedade (a escola) uma tarefa que lhes cabe a eles, prioritariamente. Demitem-se de ensinar e são incapazes de contrariar, de forma sistemática e coerente, o os imperativos fictícios de uma sociedade consumista/hedonista que manipula o entendimento e a vontade dos seus filhos a seu bel-prazer. Enredados num sistema que aceitam acriticamente, no qual não reflectem por manifesta falta de tempo, afirmam: “Não podemos ser impositivos, não podemos ser traumáticos”. Os segundos porque encaram as pessoas como meios exponenciais de facturação de lucros, impondo a ideia de uma juventude orientada para o imediatismo do consumo como um valor absoluto e como um ideal incondicional de vida.
A propósito do assunto refere Javier Urra: “ Os casais têm filhos cada vez mais tarde. Em Espanha, a taxa de filhos únicos é elevadíssima: 76%. Passámos de famílias grandes para famílias pequenas e monoparentais. Os filhos ocupam o centro do universo familiar, e têm um papel desmesurado na vida do casal. Os pais têm pouco tempo para estar com eles e não partilham os seus problemas familiares nem as suas preocupações do quotidiano. Preservam-nos. Por outro lado, o sistema está totalmente montado para apelar ao consumo. Os pais protegem-nos da realidade e a realidade que absorvem é a transmitida pelos meios de comunicação e de consumo que fazem um discurso altamente valorativo da juventude.”
Podem os pais lutar contra o monstruoso sistema, esse capitalismo desenfreado faz da sociedade do espectáculo e do consumo a sua razão de ser e subsistir? Podem eles contrariar o primado do Ter sobre o Ser que tem constituído a espinha dorsal das sociedades contemporâneas altamente desenvolvidas? Apesar de “dois em cada cinco anúncios induzirem as crianças e os jovens ao consumo: ‘compra, precisas de ter” ; apesar disso e sobretudo por isso, é preciso ensinar as nossas crianças a mudar de perspectiva, a orientar o seu olhar para o mundo real e fazê-las participar na construção de uma realidade mais consentânea com o seu futuro de adultos responsáveis. Como se faz isso? Transmitindo-lhes “regras básicas. Cumprir obrigações, respeitar horários, penalizar a desobediência. (…) Pelo menos uma vez, um pai deve dizer ao filho: ‘um dia vais morrer, a vida não é eterna’. Também deve dizer: ‘És importante, mas não és mais importante do que eu, nem do que os teus avós, nem do que o teu professor.’ Levá-lo a um hospital para que vejam crianças doentes. E que os ensinem a repartir. A maioria destes jovens são filhos únicos. Só ajudando os outros é que se darão conta de que os seus problemas são pequenos.”
É urgente ensinar às nossas crianças coisas simples como: “é importante seres alguém, gostava que te esforçasses por seres melhor”. Tal como é urgente ajudá-los a desconstruir discursos e mensagens que apelam à ideia de que ter é a finalidade última da existência.
Termino com um testemunho de alguém que não conheço e que me escreveu estas palavras, a propósito de algo que eu escrevi sobre este mesmo assunto, no final do ano passado. Testemunho cruel mas verdadeiro, como muitas vezes assim é a vida. É a minha homenagem anónima a alguém anónimo que só queria desabafar:
“O que se pode dizer a uma mãe que tem filhos que não a amam? Que se aproximam só quando querem coisas? Que dizem palavras que magoam? Que dizem: ‘Este é o último Natal que quero passar contigo.’ Que dizem: ‘Gostava que fosses transparente, surda e muda!’ Que dizem sobre a infelicidade de uma colostomia: ‘Mãe, agora és um esgoto ambulante!’ Que dizem: ‘Amanhã faço anos! Espero que não me apareças pela frente!’ Não há palavras para exprimir quanta mágoa eu sinto. O cancro ou a colostomia comparativamente são uma pequena alegria quando alguém desconhecido nos conforta com uma palavra amiga no hospital.”

sábado, maio 26, 2007

três filmes, um texto e algumas preocupações de momento

Irreverência e inquietação são dois conceitos que costumamos associar à adolescência. Quem não se lembra de, nos anos oitenta, ter assistido à exibição do filme Rumble Fish (Juventude Inquieta), realizado por Francis Ford Copolla e que conta no seu elenco com nomes como Mickey Rourke, Matt Dillon e Nicolas Cage? Ou então de ver The Outsiders (Os Marginais) do mesmo realizador? Quem não recorda o clássico de Nicholas Ray (Fúria de Viver) protagonizado pelos inesquecíveis James Dean e Natalie Wood? Cada um destes filmes, a seu modo – independentemente da respectiva qualidade estética – retrata a juventude naquilo que melhor a parece caracterizar: essa mesma fúria de viver num confronto aberto com as instituições (pais, escola, etc.) e os preconceitos que as consubstanciam. As atitudes de desafio à moralidade instituída, o assumir uma certa dose de marginalidade face aos padrões e normas socialmente aceitáveis podem ser encaradas como formas saudáveis de crescimento, precisamente porque pressupõem um tipo de aprendizagem do mundo que se não limita a consentir o passado. Pelo contrário, assimila-o na justa medida em que o faz dele objecto de uma crise e de uma crítica renovadoras. Ser irreverente, acordar pela manhã com o sentimento de insatisfação a transbordar da alma, viver na inquietação de um futuro por fazer – aos quinze ou dezoito anos – é a marca d’água de uma etapa da nossa vida que recordamos com apreço e alguma nostalgia.
Será que podemos na actualidade atribuir à juventude estes mesmos predicados? Nalguns casos, sem dúvida. Mas na generalidade, tenho as minhas dúvidas. Sem ter à mão estudos de opinião e dados estatísticos sérios, deixo-me guiar pelo impressionismo das minhas vivências, grande parte das quais resultam do contacto quotidiano que venho mantendo com os jovens das nossas escolas. Para além disso, guio-me também por um texto: A educação enquanto problema do nosso tempo, de Eric Weil.
Mais do que irreverência e inquietação, a adolescência parece viver hoje em dia sob o signo de uma insatisfação doentia, aquele tipo de insatisfação que se tece com as malhas do tédio, do fastio e do aborrecimento, sentimentos que frequentemente conduzem à violência gratuita, quando uma educação descuidada e permissiva tornam o fenómeno quase inevitável.
No mundo ocidental, séculos de progresso material fizeram-nos acreditar que o acesso generalizado à instrução consistia por si só um factor decisivo, no que à formação do ser humano diz respeito. O homem e a mulher instruídos eram sinónimo não apenas de maior riqueza, de mais tempo livre, de bem-estar, mas igualmente de maior liberdade e educação. Saciado o estômago, dispondo do ócio para o exercício da liberdade, restaria apenas a satisfação de poder dar significado, valor e sentido à sua vida. Todavia, não se contou com um imponderável: o surgimento do tédio e da consequente violência gratuita como fenómeno civilizacional.
A propósito dele diz-nos Eric Weil o seguinte: “Mas, se uma civilização inteira for atingida pelo tédio, este pode tornar-se uma coisa efectivamente séria até porque, nesse caso, não existiria ninguém para dizer aos outros porque razão se aborreciam e o que seria necessário fazer para remediar a situação. Se, obtido tudo o que razoavelmente se pode desejar, as pessoas estão ainda insatisfeitas e se todo o mundo partilha do mesmo sentimento de insatisfação, pode então desencadear-se o recurso a coisas não razoáveis. Estamos todos certamente de acordo num ponto comum, a saber: que a violência é o único verdadeiro passatempo. (…) Mas a violência desinteressada, aquela que é, ela mesma, o seu próprio fim, quer seja dirigida contra os outros quer contra si mesmo, está a espalhar-se cada vez mais. A percentagem não é a mesma em todo o lado e, aqui e além, as tradições servem de dique. Mas servir de dique é uma ocupação fastidiosa, particularmente quando os diques estão a desaparecer e os construtores de diques são cada vez mais raros.”
Será possível inverter esta tendência civilizacional? A resposta, por afirmativa que seja, não parece tarefa fácil, sobretudo porque o que se exige é um investimento sério e profundo na educação para o exercício responsável da liberdade, pois “uma vez ganha a batalha da instrução, o problema de uma educação para a liberdade adquire estatuto de primeiro plano”. “Todas as comunidades que põem a eficácia acima de tudo e consideram a liberdade como um brinquedo acabam por ficar submetidas a um mestre. (…) O perigo futuro poderá traduzir-se numa ameaça muito maior: o perigo de uma humanidade liberta da necessidade e do constrangimento exterior mas impreparada para dar conteúdo à sua liberdade. Neste sentido, não seria exagerado afirmar que não existe nenhum problema mais importante, mais urgente, que o da educação.”