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sábado, janeiro 02, 2010

Um Natal sem magia

Ainda que não se trate de um escritor genial, David Lodge é um autor que merece ser lido. Sem estar ao nível dos grandes mestres da literatura - quer do ponto de vista estilístico quer do ponto de vista da construção narrativa -, os seus romances são dotados de uma sensibilidade tipicamente britânica, que transformam o insustentável peso do ser numa sustentável leveza do existir. Aliviadas da densidade dramática excessiva, as suas personagens piscam o olho ao leitor, num convite inteligente à identificação com os seus sentimentos e pensamentos. Sempre que li os romances de David Lodge, fico com a sensação de estar perante um escritor que escreve com base numa experiência profunda do seu quotidiano. A sua vida é o laboratório onde ensaia as peripécias, o enredo e as personagens que cria com uma imaginação temperada com a mais fina ironia. O seu último romance - A vida em surdina - é uma boa oportunidade para ler sorrindo. Dele extraio um excerto que vem a propósito do que sinto em relação ao Natal.
"4 de Dezembro. Oh, como eu detesto o Natal! E não é só a data em si, mas também a própria ideia de que o Natal se aproxima, que nos é impingida cada vez mais cedo a cada ano que passa. Há semanas que um corredor inteiro do Sainsbury's foi reservado para as decorações de Natal, papel de embrulho de Natal, crackers, guardanapos de Natal, Pais Natal de gesso, renas de plástico e prendas de design horroroso e utilidade duvidosa, a maior parte delas fabricada na China não-cristã. (...)
Qual é a explicação para esta praga do Natal que brota em toda a parte? Quando eu era miúdo, o dia de Natal era feriado e depois a vida voltava ao normal, mas agora o Natal prolonga-se sem interrupções até ao fim do ano, uma festividade ainda mais sem sentido, o que significa que o país inteiro fica paralisado durante pelo menos dez dias, estupidificado por ter bebido demais, dispéctico por ter comido demais, falido por ter gasto demais em prendas inúteis, entediado e irritadiço por ter estado trancado em casa com familiares chatos e crianças rabugentas, e com os olhos com a forma do écran de tanto ver filmes antigos na televisão. É a pior altura do ano para se ter umas férias prolongadas à força, sendo as condições metereológicas mais tristes do que nunca e estando as horas de luz solar reduzidas ao mínimo. O Scrooge é o meu herói - isto é, o incorrigível Scrooge da primeira parte de 'Um Conto de Natal'. 'Pff, que disparate!' Ele tinha toda a razão. que pena ele ter mudado de ideias."

credo pagão

Passadas que foram as comemorações natalícias e os festejos de fim de ano, eis-nos de novo presos à realidade do quotidiano. Realidade que ninguém queria, aposto.
O Natal correu sob o signo do consumismo desenfreado, como tem sido timbre nas últimas décadas. Nem mesmo o estafadíssimo discurso da crise fez conter a febre despesista que se apoderou de todos nós, nas derradeiras semanas do ano de 2009. Ao primeiro sinal de uma retoma que se adivinha anémica, foi um ver se te avias. Tomados de uma volúpia insana, muitos portugueses sacaram dos cartões de crédito, de débito e das notas e vai de gastar que se faz tarde. Quem teve a desdita de percorrer as ruas e alamedas das grandes superfícies do consumo hodierno, nos dias que antecederam o vigésimo quarto de Dezembro, viu-se subitamente empurrado por uma onda de gente que desembocava nas catedrais de culto posmoderno.
O fim de ano não se ficou atrás. A maioria dos hotéis e dos restaurantes, dos bares e das discotecas, tiveram ocupação plena ou quase, como há muito tempo se não via. Nem o rigor excessivo de um inverno destemperado demoveu a nova crença dos fiéis do novo milénio.
Para tudo isso terá certamente contribuído a redução substantiva das despesas com os créditos à habitação e a inflação negativa, que aligeiraram o sufoco com que viveram muitas famílias nos idos de 2008.
Entretanto, tudo começa agora a regressar à normalidade, que é como quem diz, à costumeira mediocridade. Resta-nos pouco mais do que rezar a todos santinhos para que intercedam por nós junto do altar da divindade económica. Eu por mim já hoje comecei a entoar o credo pagão que me há-de redimir ao longo do ano: fui a uma loja e paguei com cartão de crédito. Abençoado seja.