quarta-feira, novembro 21, 2007

um governo panglossano

Em 1759, o cidadão francês François-Marie Arouet publicava, sob o pseudónimo Voltaire, um romance filosófico considerado como um texto paradigmático do iluminismo. O romance intitula-se “Cândido ou o Optimismo” e é muitas vezes lido como uma crítica ao optimismo da época. Este ataque irónico tinha como objecto a crença geral no poder decifrador da razão e, mais especificamente, a filosofia de Leibniz.
O iluminismo foi inequivocamente um período ímpar da história mundial, precursor de muitas conquistas filosóficas e científicas das quais ainda hoje somos herdeiros. Os arautos da autonomia da razão vão protagonizar a defesa de alguns dos princípios que norteiam ainda hoje o modo como nos entendemos a nós próprios e como agimos. As ideias da liberdade, da igualdade e da tolerância consubstanciam o programa ideológico da modernidade. Mas trata-se de uma época paradoxalmente marcada por atrocidades, patologias sociais, injustiças, desastres (Lisboa e o terramoto de 1755), sofrimentos e, qual caixa de Pandora, a esperança. O romance narra as desventuras do jovem Cândido e seus companheiros que, nas suas viagens, são confrontados com os inúmeros signos do mal que povoam o Mundo. São estas experiências do mal que vão contribuir para a contínua erosão da sua crença optimista e cravar um espinho numa razão especulativa e dogmática. É neste contexto que Cândido se vê forçado a reflectir sobre as bases dessa filosofia optimista na qual foi educado pelo seu preceptor Pangloss, protagonista que se apresenta a si próprio como filósofo, discípulo de Leibniz. O filósofo alemão defendia, por um lado, que na Natureza nada sucede sem razão (princípio da razão suficiente), e por outro lado, que vivemos no melhor dos mundos possíveis, regulado previamente por Deus (harmonia preestabelecida), aos olhos do qual o Mal é um instrumento para realizar o Bem.
Respiguei três citações do romance para ilustrar a concepção filosófica que nele está submetida ao espigão da sátira. Na primeira, Pangloss justifica: “Tudo isso era indispensável, e as desgraças particulares fazem o bem geral; de modo que quantas mais desgraças houver, melhor se poderá dizer que tudo está bem.” Na segunda, o preceptor responde a uma objecção do seu discípulo: “E então, meu caro Pangloss – perguntou-lhe Cândido –, quando foi enforcado, dissecado, açoitado e obrigado a remar nas galés pensou sempre que tudo neste Mundo ia o melhor possível? – Eu sou sempre da minha primeira opinião – respondeu Pangloss –, porque, enfim, sou filósofo: não devo desdizer-me, porque Leibniz não podia ter razão, e a harmonia preestabelecida era também a coisa mais bela deste Mundo, assim como o são o horror ao vácuo e a matéria subtil.” Na terceira, deparamos com a conclusão do romance: “– Todos os acontecimentos andam encadeados no melhor dos mundos possíveis; porque, enfim, se o senhor não me tivesse expulso de um belo castelo com uns poucos de pontapés no... por amor da senhora Cunegundes, se não tivesse sido encarcerado pela Inquisição, se não tivesse percorrido a América a pé, se não tivesse dado uma boa estocada no barão, se não tivesse perdido todos os seus carneiros do bom país do Eldorado não estaria aqui a comer compota de cidra e outros doces – Tudo isso é muito bem dito – respondeu Cândido –, mas vamos a cultivar o nosso jardim.”
O que mais me impressiona neste romance é a possível leitura que dele podemos fazer para interpretar a actualidade política do Portugal hodierno. O governo socialista, com o seu timoneiro José Sócrates, secundado pelo imediato Fernando Teixeira dos Santos e pelos demais marinheiros que tripulam a Nau Catrineta do nosso descontentamento, parece uma encarnação do optimismo panglossano. É capaz de justificar o empobrecimento crescente dos portugueses pela necessidade de cumprir o défice, e ainda assim pretender fazer-nos acreditar que vivemos no melhor dos mundos possíveis.
O melhor que os portugueses têm a fazer é seguir o conselho final de Cândido e tratar do jardim comum. E já agora cuidar de limpar as ervas daninhas.

Nenhum comentário: