quarta-feira, setembro 26, 2007

ao sabor do metro

Andar quotidianamente de metro, em Lisboa, é uma oportunidade única para conhecer a cidade, os seus habitantes e utentes, enfim, a sua fauna antropomórfica e o seu ambiente. Ao fim da primeira semana percebem-se os seus ritmos, a intensidade dos seus fluxos e refluxos, os ciclos das suas marés. Ao cabo da segunda aspira-se a sua atmosfera, reconhece-se a idiossincrasia das linhas (azul, vermelha ou amarela), conhecem-se os diferentes congestionamentos das carruagens. No termo da terceira, começa-se a captar os pormenores e a deliciarmo-nos com os quadros de vida que registamos, guardando-os nos escaninhos mais esconsos da memória como se de tesouros se tratasse.
Nos últimos anos (muitos, mais de uma dezena) fui um utilizador esporádico do metro – passavam-se meses que eu não descia aos túneis, não assomava aos buracos de acesso que regurgitam, de tempos a tempos, gente aos magotes. No início deste ano lectivo, decidi mudar os meus hábitos de mobilidade e dar descanso ao automóvel que, nos últimos quinze anos, me conduzia invariavelmente ao meu destino. Escusado será dizer esta mudança foi accionada por motivações de índole diversa, a começar pela subida crescente dos preços da gasolina, prosseguindo com os benefícios que para a saúde andar acarreta, finalizando pela evocação de razões de ordem ecológica (a ordem é aleatória). Seja como for, estou muitíssimo satisfeito com a mudança e só lamento não ter tomado a decisão mais cedo.
Hoje mesmo deparei com dois dos quadros acima referidos. Passo a relatá-los.
O primeiro tem que ver com a versatilidade dos pedintes que povoam as carruagens do metro. Cada um tem o seu estilo próprio, um maneirismo “sui generis” que o define dos pés à cabeça. Têm em comum a cegueira que lhes circunscreveu o horizonte existencial e o projecto de vida. Distinguem-se pelos adereços e pela lenga-lenga cantada com que apelam à compaixão, à misericórdia e mesmo à recôndita culpabilidade dos restantes, os outros que não têm maleitas visíveis, mesmo tendo outras não imediatamente expostas ao olhar disfarçado de terceiros. Do cego-pedinte que hoje cruzou o meu caminho poderei dizer que me espantou pela criatividade. Deslocava-se percutindo o seu pau com um objecto metálico (uma colher?) e acompanhava a música que dele tirava com um linguarejar ritmado que soava a “rapper”. Da próxima vez que o encontrar vou prestar mais atenção à letra e talvez dar-lhe uma moeda.O segundo prende-se com uma observação que fiz há cerca de três anos, quando estava de visita a Londres. Aí deparei-me com inúmeras pessoas que aproveitavam as viagens no “underground” londrino para ler, para devorar “books” de todas as espécies e feitios e, presumo, que versavam sobre as mais diversas matérias. Lembro-me de ter dito que, pela amostra, e comparativamente, os lisboetas se pareciam com símios há pouco tempo saídos da floresta primitiva, a assumir a posição erecta e a dar os primeiros passos na savana. Qual não foi o meu espanto, meus amados compatriotas, quando fui percebendo nestas três derradeiras semanas de assíduo utente (ainda que só hoje consciencializado o fenómeno), que também por cá se lia nas carruagens do metro alfacinha. E não são apenas revistas cor-de-rosa ou o gratuito jornal de tiragens astronómicas o objecto de leitura (também disso se encontra), mas, pasme-se!, livros autênticos, romances, ensaios, poesia, literatura técnica a exigir estudo aturado, persistente e esforço intenso das meninges. Por que desataram a ler os lisboetas, perguntei aos meus botões da camisa. Não obtive resposta. Mas desconfio que nada tem que ver com programas oficiais de incentivo à leitura. Acredito, talvez ingenuamente, que os portugueses se cansaram de tanta injúria aos seus dotes intelectuais, de tanta difamação às suas competências cognitivas, de tão apregoado atraso cultural, e decidiram que ler é uma das maneiras mais eficazes de construir mundos.

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