sábado, novembro 14, 2009

do bacalhau e do alho

Há uns anos a esta parte, o pequeno Saúl brindava-nos com uma cançoneta, brejeira até ao tutano, intitulada “o bacalhau quer alho”. Nela é patente um traço de carácter do português, desse mesmo a quem muitas vezes se diz: “és danado para a brincadeira”. Da autoria do não menos brejeiro Quim Barreiros, a cançoneta, que andou de boca em boca a fazer as delícias de muitos e arrepiar a espinha moral a uns quantos, pode ser revisitada aqui:



Lembrei-me dela, por repentina associação de ideias, ao ler uma passagem de um livro interessante – Algumas notas para a história da alimentação em Portugal (Campo das Letras) – de José Pedro de Lima-Reis. A páginas tantas, ao dar conhecimento dos usos e costumes alimentares do reinado de Afonso V (1325-1357), o autor dá conta da primeira associação histórica entre o bacalhau e o alho. Vale a pena transcrever a passagem:
“Em 1553, parte para Inglaterra, como único emissário dos mercadores portugueses, Afonso Martins Alho, que tem nome inscrito numa das ruas da cidade do Porto e que, pela sua sagacidade, o povo eternizou. Tanto assim que, ainda hoje, seiscentos e cinquenta anos depois, ouvimos dizer, ‘fino como o Alho’ ou ‘fino como um alho’.
O motivo da viagem era negociar com Eduardo III um acordo que pode considerar-se como o primeiro havido entre Portugal e a Inglaterra. Uma das trocas que resultou desse entendimento e de que temos notícia verificou-se nesse mesmo ano e referia-se à importação de bacalhau contra o envio de vinho verde expedido de Viana do Castelo. A invenção viking entrava assim, provavelmente pela primeira vez, no nosso país. No entanto, foi inicialmente comida de pobres, embarcadiços e outra gente de poucos haveres e só a partir de 1700, como veremos, se viria a tornar num dos petiscos mais apetecidos da nossa gente. Quase nos apetece dizer que o alho e o bacalhau ficaram ligados desde o início da sua aventura em terras de Portugal e que, amigos fiéis, ficaram à espera da chegada dos precisos no bojo das caravelas para constituírem um dos mais emblemáticos pratos nacionais.”

segunda-feira, outubro 19, 2009

Platão dos pequeninos

A "alegoria da caverna" é porventura o texto mais lido de Platão, quiçá o mais comentado de toda a história da filosofia. Ao contrário do que muitos julgam, não se trata de uma obra do filósofo grego, mas de um excerto retirado da monumental "República", escrita na sua fase de maturidade. O texto constrói-se por antinomias - luz, sombras; realidade, aparência; saber, ignorância; libertação, escravidão; etc. - e constitui um dos pilares da metafísica. Por isso mesmo, é um texto de iniciação à filosofia por excelência. Aqui deixo um vídeo que serve de incentivo à sua leitura. Boa leitura.


domingo, outubro 18, 2009

a invisibilidade da dor

Suportar a dor é, hoje por hoje, quase um sacrilégio. Apenas em privado é permitido fazê-lo. Num tempo em que impera o hedonismo, em que o culto do prazer vê multiplicados os seus altares, a visibilidade da dor (de dentes, por exemplo) constitui pouco menos que uma heresia. Quem se atreve, nos dias que correm, a exibir publicamente o seu sofrimento (sobretudo físico)? Somente aqueles que já nada têm a perder, os que nenhuma consideração merecem. Asco apenas, é o sentimento que causam. Asco disfarçado de indiferença. Quando proliferam os arautos do deleite, somem-se os apregoadores da piedade. Por isso a velhice sofrida e a decrepitude magoada permanecem invisíveis.

quinta-feira, outubro 15, 2009

Lyceu Camões - cem anos

Amanhã, dia 16 de Outubro, a Escola Secundária de Camões comemora 100 anos de existência. O Lyceu Camões, assim designado durante cerca de sete décadas, foi inaugurado ainda sob a égide de uma monarquia já moribunda. Pouco menos de um ano depois, proclamava-se a República. Sob o prisma das instituições, o Lyceu Camões e a República são portanto irmãos quase gémeos. Juntos aprenderam a caminhar e a pronunciar a palavra democracia. Juntos aprenderam a silenciá-la, ou a dizê-la em surdina ou à boca pequena, debaixo do manto cinzento do Estado Novo. Juntos a gritaram a viva voz e a plenos pulmões, em 1974, com a Revolução dos Cravos. Como se percebe, a história de ambas instituições confunde-se bastas vezes, conforme podemos constatar no site oficial da Escola Secundária de Camões. O melhor testemunho do que acabei de afirmar é o livro – a capa é magnífica – que amanhã será colocado à venda. Com o sugestivo título “100 anos - (C)em Testemunhos”, prefaciado pelo Professor Doutor António Nóvoa, o livro narra a história deste estabelecimento de ensino, pela voz dos seus autores e pelo testemunho de 100 personalidades que nele tiveram oportunidade de viver uma parte importante das suas vidas. Por isso mesmo, a história do edifício, da responsabilidade do arquitecto Ventura Terra, é também e sobretudo a história de quantos o habitaram e, felizmente, ainda habitam. A sessão solene, que contará com a presença do Presidente da República, o Dr. Cavaco Silva, constituirá um marco importante para a vida da Escola Secundária de Camões. Esperemos que contribua para a sua revitalização. E, já agora, para apaziguar o clima de tensão que nos últimos anos se tem vivido no seio das escolas, muito por força de um autoritarismo político levado aos extremos. Em tempos de crise da educação, agudizada pela crise política, este é certamente um momento crítico, ainda que à superfície não pareça. A solenidade do momento, evidenciada à luz dos media, tratará de ocultar a dimensão crítica do acontecimento. Eu estarei presente para o testemunhar.

sexta-feira, outubro 09, 2009

Por um fio...confissões existenciais de um bloger

Por falta de tempo, a continuidade deste meu blog está por um fio. Escrever um ou dois posts por mês, à razão de uma dúzia de linhas cada, não me satisfaz. É preferível acabar de vez. Não tenho alma de moribundo resistente. Acrescento uma convicção íntima em jeito de epitáfio: "existir sem razão é como afirmar não." Mais do que uma impossibilidade ontológica, trata-se de uma quase impossibilidade lógica. Ao fim e ao cabo, a essência de um blog encontra-se na soma dos posts com o qual se alimenta. Por isso, nestes últimos três meses tenho ponderado cometer hara-kiri bloguista. Não me custaria muito. Um simples clic e tudo voltaria ao nada de onde brotou. Não deixaria filhos que me chorassem a desdita, nem amigos que me não esquecessem breve. A morte de qualquer autor de blog anónimo não perturba um bit sequer do universo informático. A única razão que me tem impedido até agora de simplesmente acabar (ou me apagar) com tudo isto é simples: sem os posts (poucos) que faço, as mãos que os escrevem e o cérebro que os concebe não se uniriam nesse acto único que os produz. E o meu mundo ficaria mais pobre. Ou talvez não.

domingo, setembro 06, 2009

À espera das musas

De volta à lide blogueira, um mês e pico depois de ter “postado” da última vez, não sei bem sobre o que escrever. Em abono da verdade, assunto é coisa que não me falta. O período de férias, saboroso e fugaz como todas as coisas boas que nos acontecem; os poucos livros lidos e os muitos outros que ficaram por ler, apesar de comprados compulsivamente e a aguardar o ócio que tarda ou a oportunidade que ininterruptamente adio; os episódios corriqueiros ou menos verosímeis; a política em geral e as eleições que se aproximam em particular; os casos mediáticos que marcam a agenda das conversas de café ou de ocasião, tais como a gripe A, o arranque da temporada futebolística, etc. De tudo isso e muito mais, que agora não lembro, podia dar conta à força das palavras articuladas, segundo o preceito da sintaxe que garante o sentido do dito. Mas fiquei-me pela intenção do escrito, que não passou disso mesmo, e se não concretizou em texto porque, quero acreditar, as musas inspiradoras o não quiseram. Entretanto, quedo-me à espera que uma vez mais elas me venham visitar, se assim o entenderem. Não forçarei a sua visita. Permanecerei simplesmente atento à manifestação do seu canto. E basta.

quinta-feira, julho 23, 2009

o meu cão é o meu melhor amigo

O meu cão é o meu melhor amigo. Concluir isto pode parecer simples idiossincrasia de misantropo empedernido, de um cínico a quem a vida ensinou a desmerecer as virtudes humanas e a desconsiderar as motivações aparentemente altruístas que dissimulam os autênticos interesses pessoais que nos movem a todos. Mas nada disso é verdade. Sou uma pessoa social, afável e gosto verdadeiramente de algumas pessoas. Todavia, o género humano, considerado em abstracto, não me comove nem me desperta sentimentos de enaltecimento desmedido ou de repulsa desbragada. Assim como a espécie canina. que me perdoem a sinceridade, mas não consigo ser hipócrita. Por isso sou incapaz de dar um chavo que seja para a liga de combate ao cancro ou para a liga protectora dos animais. E não peço perdão por isso, nem sequer lastimo ou choro a dor longínqua dos seres alheios que os meus sentidos não tocam. Pela mesmíssima razão, fui ao canil municipal adoptar um cachorro condenado no corredor da morte. É esse cão que amanhã, dois anos e meio depois, vou entregar ao canil para uma estadia de cinco dias. Já hoje sofro a desventura do bicho. E a minha também. Cinco dias e cinco noites de dor diferente e incomensurável, mas recíproca. Por antecipação, já rejubilo com a alegria e a loucura do reencontro. Por causa de tudo isso, concluo dogmaticamente: o meu cão é o meu melhor amigo.

domingo, julho 12, 2009

mundo estranho e estranhos dias

Que mundo é este que habitamos? Que época é esta que nos coube viver? Mundo estranho em que nos são mais familiares os gadgets tecnológicos e as personagens virtuais que nos visitam pela janela da TV – à hora dos cansaços e da idiotia convencionais – do que o vizinho do lado que soçobra sem inquietações metafísicas. Mundo e época de democracia que se torna cada vez mais uma promessa eternamente adiada de substantivas igualdades, ao mesmo tempo que se entronizam as formas juvenis de adónis e de lotitas e os celebram no altar do hedonismo consumista. Estranhos dias e inverosímeis horas em que o egoísmo se faz imperativo ético, proclamado pelo catecismo do pensamento único e sustentado pelo argumento da inevitabilidade. Tempos sombrios de homens e mulheres em esquizofrénica “competição darwiniana”, no dizer do escritor israrelita Amos Oz, “um mundo darwiniano levado ao extremo em que se trabalha no duro como nunca, apenas para ganhar mais dinheiro do que realmente não precisam, para comprar objectos que nem sequer desejam e impressionar pessoas de quem não gostam verdadeiramente (…).”

domingo, junho 28, 2009

homenagem à mãe

Há casos e acasos, cursos e percursos. A vida humana está cheia deles. Por mais que a queiramos determinar, por melhor que a planeemos ou nos esforcemos por circunscrevê-la nos estreitos limites da agenda, ela sempre transborda ao sabor dos encontros fortuitos e inesperados. Quando tal acontece, o melhor, eticamente falando, é estar disponível para os integrar na teia complexa de que nos vamos fazendo. A disponibilidade para o outro deve merecer de cada um de nós o cuidado especial que nos torna verdadeiramente humanos. Essa aprendizagem devo-a não aos mestres do saber e da ciência; devo-a sobretudo a uma mestra da vida a quem chamo mãe, apesar de já ter morrido, e que por acaso era analfabeta. Presto-lhe, com estas palavras, a justa homenagem que em vida nunca lhe soube fazer. Obrigado por tudo.

domingo, junho 21, 2009

a condenação de sócrates

Depois de um longo interregno e no antegozo das férias que não tardam, apetece-me escrever sobre Sócrates, de forma solta e ao correr da pena (literalmente ao correr do teclado). Refiro-me ao filósofo grego, de quem Nietzsche, na sua obra Crepúsculo dos Ídolos, traça o seguinte retrato: «Quanto à origem, Sócrates pertencia ao povo mais baixo: Sócrates era da populaça. Sabe-se, vê-se ainda, que ele era horroroso. A fealdade, já em si uma objecção, é para os gregos quase uma refutação. Era, de facto, Sócrates um grego? A fealdade é, com bastante frequência, a expressão de um desenvolvimento híbrido, obstruído pelo cruzamento. Noutros casos, surge como evolução decadente. Os criminalistas antropólogos dizem-nos que o delinquente típico é feio: monstrum in fronte, monstrum in animo. Mas o criminoso é um décadent. Era Sócrates um delinquente típico? – Pelo menos não o contradiz aquele famoso juízo de fisionomista, que tanto escandalizou os amigos de Sócrates. Um estrangeiro, que percebia de rostos, ao passar por Atenas, disse de caras a Sócrates que ele era um monstrum – que ele albergava em si todos os piores vícios e inclinações. E Sócrates limitou-se a responder: “Conheceis-me bem, senhor!”»
As teses do filósofo alemão sobre o seu antecessor grego são controversas. Desde a sua obra seminal O Nascimento da Tragédia até à sua obra terminal Ecce Homo, exceptuando algumas passagens das suas obras apolíneas – tais como Aurora e a Gaia Ciência – o juízo de Nietzsche sobre Sócrates é categórico: acusa-o de ter contribuído, ainda que indirectamente, para a morte da tragédia grega, e consequentemente, para a decadência da cultura ocidental. Sócrates seria, deste ponto de vista, o primeiro arauto do niilismo, essa genérica vontade de negatividade que caracteriza o homem da modernidade. Para Nietzsche, a condenação e morte de Sócrates, longe de constituir uma iniquidade, foi uma tentativa desesperada de recuperar uma vitalidade cultural e política que teria caracterizado a época dos pré-socráticos. Tratou-se, pois, de um julgamento por razões políticas. Nietzsche, fiel ao seu estilo e ao seu modo de filosofar – a golpes de martelo – nunca explicita as razões políticas da acusação de Sócrates, apenas as sugere.
Os testemunhos de Platão e de Xenofonte, excessivamente preocupados com a defesa do mestre, ocultam-nas mais do que as evidenciam. Nas suas apologias, dizem-nos ambos que Sócrates foi acusado de corromper a juventude e de não acreditar nos deuses da cidade. Ambas as fontes pretendem que Sócrates foi injustamente confundido com os sofistas, os quais, na época conturbada de finais do século V e início do século IV, na ressaca da guerra do Poloponeso, eram, aos olhos dos atenienses, os responsáveis pela degenerescência dos costumes e dos valores. Platão faz mesmo referência a acusadores mais antigos que Ânito, Meleto e Lícon – precisamente a Aristófanes, o primeiro, nas Nuvens, em 423 a.C., a referir-se a Sócrates como um sofista.
Quais as razões autênticas da acusação contra Sócrates? Talvez nunca o venhamos a saber. Existe uma pista. Ténue, sem dúvida. Mas dá que pensar. Ela remete-nos para um panfleto perdido do sofista Polícrates que, por volta de 393 ou 394 a.C. – meia dúzia de anos após a morte de Sócrates – terá sido do conhecimento público da “inteligentia” ateniense, e que pretensamente reproduziria o verdadeiro discurso de acusação. Nela se faria referência aos fatídicos discípulos de Sócrates – Alcibíades e Crítias, que tiveram atitudes de desprezo pelas leis da cidade e estiveram associados ao período de revolta antidemocrática e de vigência da tirania dos trinta –, ao desprezo socrático pelo povo e pelo regime de sorteio característico da magistratura e democracia atenienses. A ser verdade, percebe-se melhor as razões por que Sócrates foi condenado à morte. No rescaldo da humilhação sofrida às mãos de Esparta, adversários da democracia imperialista de Atenas, atitudes e juízos declaradamente antidemocráticos só poderiam ter como resultado uma reacção de animosidade crescente contra um indivíduo que assumiu para si mesmo a missão de reformar a sua cidade. A cidade interpretou isso como um fardo (mais um) demasiado pesado para suportar sobre os seus ombros já cansados. E castigou o filósofo duramente, dando a beber a cicuta que o imortalizou.

quinta-feira, maio 28, 2009

desabafos de ocasião

Afirmou Descartes, o filósofo francês a quem a modernidade deve os seus fundamentos e referenciais lógicos, ser o bom senso a coisa mais bem distribuída do mundo. Estava enganado. Refuta-o um sem número de acontecimentos que marcavam a vida pública portuguesa nos últimos meses. O espaço público, por excelência um espaço propício à proliferação de hábitos democráticos e de um senso comum esclarecido, está cada vez mais ocupado pelo oportunismo de vistas curtas e pelo obscurantismo das ideias canhestras, que disfarçam mal os interesses privados e corporativos que nele se instalam.
Em tempos de vacas magras e de défice ideológico, aconselhava o bom senso que os gastos com as campanhas eleitorais fossem comedidos, que a ostentação se escondesse de vergonha debaixo do manto da frugalidade, que os discursos manhosos, o insulto ágil e a retórica da sedução dessem lugar à palavra substantiva e ao argumento esclarecedor. Para o bem de uma cidadania democrática autêntica. Mas nada disto se verifica. Pelo contrário, o que prova à saciedade que o bom senso não abunda. Este cantinho à beira-mar plantado é um terreno fértil para as ervas daninhas que, como infestantes que são, vão acabar por sufocar a seiva da cultura democrática que nos alimenta.

sexta-feira, maio 08, 2009

esta democracia está refém dos interesses partidários

Confesso ter uma predilecção particular por metáforas agrícolas. O meu sonho é mesmo ser hortelão. Isso explica porventura o facto de ter feito a associação, num post anterior, entre a democracia e uma planta. De qualquer modo, no nosso universo político pós 25 de Abril, a referida associação impõe-se, sobretudo se tomarmos em consideração a mitologia inerente à “revolução dos cravos”, que eu, por imperativos ideológicos, não me permito renegar. Dito isto, convém esclarecer um pormenor importante. Considero as conquistas de Abril um bem precioso, um tesouro mesmo, mas não uma relíquia. Não tenho por ele uma atitude de veneração religiosa, nenhuma hagiolatria determina a minha crença em relação aos ideais de liberdade e igualdade que, estou convicto, constituem, hoje e sempre, o mais nobre programa político – o da democracia. E esse, creio, é o bem precioso que Abril nos legou. Sei bem que os problemas de hoje não são os de ontem. Sei também que não se pode olhar a democracia como Orfeu olhou Eurydice. Daí o meu apelo à revolução democrática e – num arremedo kantiano – à urgência de uma crítica da razão democrática. Por esta entendo um aprofundamento do programa democrático, que só pode passar pela renovação da cidadania. Isso pressupõe uma mais forte participação de todos nós nos assuntos públicos, não permitindo que sejam os políticos profissionais e os aparelhos partidários apenas a decidir o que é o bem comum.
Nota Breve. Os partidos políticos, na Assembleia, votaram, por unanimidade, a nova lei do financiamento dos partidos. O acordo, quando se tratou de salvaguardar os seus interesses, não sofreu contestação de nenhum quadrante. Governo e oposição uniram-se em bloco para garantir o seu “sustento”, e a sustentação de uma política há muito refém da democracia partidária. Em nenhum outro momento, nos últimos tempos, sucedeu algo semelhante. Mesmo quando era o interesse comum e o bem público que estavam em jogo. Os debates e as decisões sobre questões de política educativa, de política de saúde ou de política económica pautaram-se sempre por discordâncias violentas e acesas polémicas. Nunca consenso. Isso prova que não é em prol do interesse comum e do bem público que os partidos políticos, hoje por hoje, se movem. Prova também que a revolução democrática a fazer se justifica. Revolução que visa ir para além da redutora democracia partidária, abrindo espaços de participação política para o cidadão comum. Para isso é necessário devolver ao cidadão as razões da sua politização. Entendo, por conseguinte, que não se trata de olhar para o passado, mas sim projectar a realização do programa da democracia no futuro que, como sabemos, nos pertence por direito próprio.

terça-feira, maio 05, 2009

exercícios com língua

Por vezes apetecia-me simplesmente escrever ao correr da pena, deixar-me levar pelo ritmo da língua ou pelo sabor das palavras. Escrever desligado do assunto ou do tema, alheio aos argumentos consequentes com as teses a defender ou a refutar. Escrever tão só de ouvido, escutando apenas a música das vogais e das consoantes. Escrever como aquele perdigueiro que fareja a sua presa; assim eu gostaria de perseguir metáforas e transposições metonímicas. Mas falta-me o talento ou a bovina paciência, esse ruminar lento que consiste em surpreender a palavra exacta que veste o sentimento ou a ideia. Falta-me a intuição poética das coisas. Habito outro tempo e outro lugar externo à ontologia própria da língua que amo em cada sílaba. Língua arquitectada num seu ritmo e harmonia únicos, e – há quem o garanta – que estrutura o seu modo singular de olhar o mundo, visível e invisível. Por vezes apetecia-me morrer e renascer vestindo a alma de um poeta. Ser o outro que sonhei num país longínquo de que não lembro o nome, de que recordo somente a geografia das nuvens suspensas na tarde morna, que o vento insinua quando passa e não torna.

domingo, maio 03, 2009

Poema à mãe de Eugénio de Andrade

Num dia dedicado a todas as mães, mesmo àquelas que já não percorrem os caminhos deste mundo, um poema de um poeta maior presta-lhes a mais justa homenagem.
Poema à Mãe
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"

Razões para uma política participativa

Este é um ano decisivo, dizia-me um amigo. Um ano de decisões e, por conseguinte, de oportunidades. Sobretudo oportunidades de participar na mudança que, espero, se avizinha. Sejamos, pois, protagonistas da mudança. Protagonistas menores, mas ainda assim protagonistas. Façamos de conta que este é o patamar originário de um futuro melhor a construir, ou, como dizia o Sérgio Godinho: "o primeiro dia do resto da tua vida".
Vivemos tempos de crise, não só económica. Porque somos modernos, não poderia ser de outro modo, uma vez que a crise é o rosto visível da modernidade que nos cabe cumprir. Mas não se pode falar de crise sem falar de crítica. São como dois bois aparelhados para levar para diante a mesma demanda. Só uma postura crítica fará da crise o combustível da mudança desejada. Em termos cidadania, não nos resta outra alternativa válida que não seja a de nos assumirmos como "animais políticos". Não se trata de apenas de relembrar o velho Aristóteles. Trata-se, antes do mais, de não enjeitarmos a oportunidade de cumprirmos a humanidade plena que nos percorre a existência. Sejamos por isso mesmo políticos, não nos esquecendo que a política é, acima de tudo, a arte de inventar o futuro - o nosso e o dos nossos filhos. Reneguemos pois o argumento da inevitabilidade, tantas vezes usado para nos passar um atestado de menoridade intelectual e política. Não cometamos o erro de entregar nas mãos dos políticos profissionais a tarefa de tecer as malhas de um futuro comum que mais tarde vamos lamentar. Não nos alheemos ainda mais do mundo que é também público.
Se existe alguma nota fundamental que componha o projecto da modernidade, ela não pode ser outra senão a revolução democrática. A democracia, ainda que se lance as suas raízes em solo grego, tem na modernidade a atmosfera propícia ao seu desenvolvimento. No entanto, também hoje o programa democrático - que não é outro que não seja o da realização dos ideais da liberdade e da igualdade - está em crise. É imperioso que procedamos a uma crítica da razão democrática. Esta crítica torna possível duas coisas: evidenciar as condições de possibilidade do exercício democrático, por um lado, e radicalizar a democracia, por outro. O que se pretende, com isso, não é contribuir para a descredibilização da democracia, mas tão somente cuidar dela como o mais precioso dos bens que, para nós portugueses, o 25 de Abril conquistou. Tal como uma planta, ou a alimentamos ou morre.
A propósito da reflexão política, aponto duas sugestões de leitura:
1) "A incompetência democrática", Philippe Breton, Edições Loyola, 2008 (o original é de 2006).
2) "O regresso do político", Chantal Mouffe, Gradiva, 1996 (o original é de 1993).

terça-feira, abril 28, 2009

o alargamento da escolaridade obrigatória ou crise na educação?

O alargamento da escolaridade obrigatória para os 12 anos é, em tese, sem dúvida louvável. Por isso, a lei aprovada pelo governo, sinal de modernidade, só pode merecer o aplauso generalizado de todos nós. Ninguém o contestará, a não ser que esteja de má fé ou seja doido varrido. No entanto, o assunto deve ser objecto de reflexão cuidada e minuciosa, para que se não corra o risco de, por precipitação, se falhar a concretização do que parece à partida cumulado de virtudes. É nesse sentido que as objecções à medida governativa devem ser ponderadas, pesados os argumentos contrários, escutadas as opiniões que teimam em seguir a contra-corrente.
Alguns opositores da ideia acusam o governo de lançar mão, uma vez mais, de uma medida eleitoralista. Não se dizem contra os alunos serem obrigados a frequentar a escola uma dúzia de anos. Apenas afirmam que a medida é oportunista – sobretudo porque acompanhada do anúncio de subsídios para as famílias mais carenciadas –, visando somente arrecadar mais uns votos para alimentar a esperança da maioria absoluta. Uma pergunta impõe-se: por que razão não foi implementada em tempo oportuno (ao tempo de implementação das badaladas reformas educativas), quando se tratava de um imperativo de ordem moral e com implicações no futuro desenvolvimento económico do país? Responderão os apoiantes da medida, recorrendo ao senso comum: “mais vale tarde, que nunca”.
Outra objecção prende-se com a ideia de que a medida é cosmética e não terá outro propósito que não seja o de trabalhar para as estatísticas. Este argumento pretende evidenciar algo que tem sido prática corrente deste governo em matéria educativa, designadamente a sua preocupação excessiva em apresentar números que verifiquem o sucesso da sua política, em detrimento de preocupações com a real melhoria das aprendizagens e competências dos alunos. Apetece dizer, a propósito, o seguinte: “quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele”.
Há quem aduza outras razões: que a medida é, no fundo, improfícua e poucas alterações produzirá no tecido escolar português, quanto muito terá reflexos negativos ao transformar as escolas em depósitos de adolescentes desmotivados e em recintos de violência potencialmente explosiva; que contraria o direito de cada um escolher aquilo que considera melhor para si ou para o seu educando; que vai ao arrepio da maioria das práticas legais europeias, inclusive de países com índices de prestação escolar substancialmente melhores que as nossas; que não vai ao cerne dos problemas centrais com que se depara a educação; que vai contribuir para uma escola mais desigual, provocando uma procura acrescida do ensino privado, certamente mais imune aos inconvenientes da massificação do ensino. E por aí fora…
Um último argumento, porventura o mais consistente e sério, tem que ver com algo que já se sabe de há muito tempo. A crise na educação vai agudizar-se e acentuar os seus contornos, transformando-se num “num problema político de primeira grandeza”, como afirma Hannah Arendt em A crise na educação. A história da escola moderna não nos tem ensinado outra coisa. A democratização do ensino traduz-se necessariamente em massificação, a qual, inevitavelmente, acarreta um nivelamento por baixo dos seus padrões de exigência. É um fenómeno da modernidade que começou na América dos anos cinquenta, estendendo-se rapidamente a todos os países que a seguiram como modelo de nação, que elegeu o conceito de igualdade como regulação de costumes e de modus vivendi. Dos americanos não resultou apenas a disseminação da coca-cola e dos McDonald’s, dos heróis da banda desenhada e das estrelas de Hollywood, resultou uma crise, a da educação que, como o Toyota, veio para ficar. O alargamento da escolaridade obrigatória significa, por mais louvável que seja, o alargamento da crise na educação. Nisso o governo dá mostras de modernidade.

terça-feira, abril 21, 2009

Sócrates - o mestre de dizer o vazio com belas palavras

José Sócrates falou ao país. Na entrevista desta noite, na RTP, dirigidas pelos jornalistas Judite de Sousa e José Alberto de Carvalho, o primeiro ministro voltou a ser igual a si próprio como entrevistado - não responde às perguntas incómodas que lhe são colocadas e responde às perguntas que gostaria que lhe fizessem. No fundo, o que Sócrates quer é que os entrevistadores sejam apenas um eco da mensagem que pretende transmitir. Por isso interpela os jornalistas, inverte os papéis, e desata a desfiar o rosário da sua propaganda política. No seu discurso, o chefe do executivo repetiu, repetiu, repetiu, até à exaustão, o que tem vindo a dizer nos últimos meses. Fez a apologia do governo, entoou loas à sua acção messiânica e elegeu-se o paladino da democracia e o garante do bem estar dos pobres e necessitados. A propósito do caso Freeport uma vez mais vitimizou-se e prometeu resistir ao putativo assassinato político de que pretensamente está a ser alvo. Sobre Cavaco Silva e o fim da convergência estratégica negou desentendimentos e reafirmou a cooperação institucional. Quanto às medidas de combate à crise, com excepção do anúncio da extensão do subsídio a mais quinze mil beneficiários, pouco mais adiantou às que têm vindo a ser anunciadas semana após semana. Pouco, muito pouco para fazer face às inúmeras dificuldades que cada dia que passa crescem no seio das famílias portugueses. José Sócrates foi hoje, como tem sido no último ano, um mestre de dizer o vazio com belas palavras. Mais um animal retórico do que um animal político.

segunda-feira, abril 20, 2009

Aproxima-se a época de “ir a votos”

Aproxima-se a época de “ir a votos”. Vertiginosamente. Será em regime de sessões contínuas, com um intervalo para “silly season” ou para “ir a banhos”. A primeira sessão está agendada para 7 de Junho. As outras só lá para Outubro, na ressaca das férias, quando a lembrança do “bem-bom” se tornar insuportável e a fossa exigir consultas ao psiquiatra e doses redobradas de anti-depressivos.
Perfilam-se os candidatos para a Europa. Aguçam-se os aguilhões para as ferroadas iniciais. Afinam-se as vozes para os insultos da praxe. Sopesam-se os argumentos ou, na falta deles, ponderam-se as falácias: petições de princípio, “non sequitur”, “post hoc”, apelo à ignorância, aos preconceitos, ao povo, à autoridade, derrapagem, ataques pessoais. Vai ser um fartote, sobretudo de ruído. Os fins justificam os meios. O objectivo é vencer, custe o que custar. Nem que para isso se tenha que vender a alma ao primeiro diabo que aparece. Há que assegurar as mordomias que encosto partidário faculta. Importa jogar a cartada certa, apostar no trunfo favorável. Não se podem desperdiçar oportunidades, que o tempo não está ilusões e a crise é séria e está para lavar e durar. Nas eleições europeias, o vencedor será inevitavelmente a abstenção. Nas outras, logo se verá. Uma coisa é certa: a política transforma-se, a cada ano que passa, num circo mediático em que, no fundo, cada vez mais se escolhe o rosto da ideia e não a ideia do rosto. E depois… quem se lixa é o mexilhão.

quinta-feira, abril 02, 2009

No reino da pocilga achei uma pérola

No universo da blosgera encontra-se de tudo. A maioria das vezes esterco, esterco mental. É como se deambulássemos por uma pocilga. O odor que dela emana é nauseabundo. Um verdadeiro triunfo dos porcos. Mas também encontramos pérolas; raríssimas, convenhamos, mas que brilham em todo o seu esplendor. Por vezes, inesperadamente, deparamos com opiniões-gémeas, pensamentos que comungamos do osso ao tutano, textos que gostaríamos de ter escrito e que, por falta de talento, jamais escreveremos. Esses textos, pensamentos, opiniões, são também nossos, porque se tornaram públicos. E a blogsfera, pese embora todos os defeitos tem essa virtude única, a de nos permitir, à distância de um clic, como reza a publicidade, colher a pérola que alguém depos para ser achada. O texto de Helena Matos, publicado no Público (e que pode ser lido aqui) é uma dessas pérolas que achei numa das minhas passeatas pela pocilga da blosfera.

Exercícios de escrita (1)

Em 1957 foi publicado um texto de Hannah Arendt sobre educação. Intitulado Crise na Educação, o texto constitui, do meu ponto de vista, um marco importante para a reflexão sobre um tema que, em Portugal, pelo menos no último ano, tem sido amplamente noticiado e debatido mas pouco ou nada estudado. As notícias têm-se centrado nos aspectos múltiplos que revelam a crise, nas suas manifestações de superfície, dando conta das suas consequências mais passíveis de tratamento mediático. Os debates, sobretudo os televisivos, redundam em meras trocas de opiniões avessas ao esforço argumentativo, em que mínima preocupação de fundamentação prima pela ausência. Fala-se e escreve-se sobre os professores que não ensinam o que sabem nem sabem o que ensinam, que não têm vocação nem autoridade. Escreve-se e fala-se a propósito dos alunos que não aprendem o que devem e aprendem o que não devem, que são incapazes de apreender conteúdos, de desenvolver capacidades e de exercitar competências cognitivas, que não conseguem concentrar-se mais de um par de minutos e recusam a exigência do esforço que todo o estudo implica.
Diz-se dos pais que deseducam em vez de educar, que não transmitem valores, que não se preocupam com os filhos ou que se preocupam excessivamente. Opina-se que o ministério da educação tem razão nisto mas desatina naquilo, que manda demais ou de menos nas escolas, que sabe o que quer mas não quer o que sabe, que é prepotente ou permissivo consoante o caso e a circunstância.
Esboça-se assim uma sintomatologia da crise, fazem-se diagnósticos a torto e a direito, mas não se consegue apontar as suas causas ou as razões que a explicam cabalmente. Assim, só por milagre ou por acaso se podem achar soluções que não sejam um mero recurso de ocasião, condenadas portanto a agudizar uma crise que ao se manifestar gosta de ocultar a sua face mais sombria.
A nossa atenção, ao ler o texto, deve ser meticulosa e paciente. Devemos portanto lê-lo com vagar, não nos precipitarmos nessa cavalgada desenfreada em que se transformou o hábito de leitura contemporâneo. É preciso saboreá-lo lentamente e experimentar-lhe a doçura ou a acidez das palavras.
A actualidade do texto de Hannah Arendt é, a todos os títulos, assinalável. Velho de mais de meio século, surge-nos como uma proposta de reflexão filosófica (não assumida) sobre um tema que se transformou, nos tempos que correm, num problema de importância incontornável. Ao escrevê-lo, Arendt mergulha nas águas profundas e revoltosas onde tradição e modernidade se encontram, para onde confluem ideias que colidem entre si, deixando na tona apenas a espuma dos nossos preconceitos inquestionados.
Apesar de escrito faz mais de cinquenta anos e num contexto social e político diferente (pelo menos na aparência) do nosso, a reflexão aí produzida pode constituir-se como um importante ponto de referência para o urgente repensar das nossas actuais questões de política educativa.
Para testar a actualidade do texto, resolvi abrir ao acaso o livro (Entre o Passado e o Futuro, Relógio d’Água) no intervalo de páginas que, entre outros ensaios, aquele consta. Calhou que a página fosse a 194. Escolho um dos parágrafos. Leio-o:
“Na América, a crise actual resulta do reconhecimento do carácter destrutivo destes três pressupostos e do esforço desesperado que está a ser feito para reformar todo o sistema de educação, isto é, para o transformar completamente. Mas, ao fazer isto, o que se está efectivamente a fazer – com excepção dos planos relativos a um aumento imediato das facilidades de ensino das ciências físicas e da tecnologia – nada mais é do que uma restauração: o ensino será outra vez conduzido com autoridade, nas horas de aula deixar-se-á de jogar e far-se-á de novo trabalho sério; dar-se-á maior importância aos conhecimentos prescritos pelo ‘curriculum’ do que às actividades extra-curriculares. Fala-se mesmo em transformar o actual ‘curriculum’ de formação de professores, de forma a que os próprios professores tenham de aprender alguma coisa antes de serem colocados junto das crianças.”
Vejamos agora se é possível interpretá-lo à luz da nossa realidade de hoje. Avancemos. Tal como na América da segunda metade dos anos cinquenta, também nós hoje nos vemos confrontados com uma evidência que só agora estamos em condições de reconhecer. E qual é? A de uma crise que é o resultado: por um lado, dos pressupostos em que assentaram as nossas convicções em matéria de educação, nos últimos trinta anos, que se revelaram catastróficas; e por outro lado, do desespero que tomou conta dos agentes governativos, que elegeram a reforma educativa como uma das suas prioridades políticas, a fim de transformar este rectângulo do marasmo numa plataforma de modernidade tecnológica.
Centremos a nossa atenção nos pressupostos. Quais são e em que consistem? Hannah Arendt expõe-nas nas páginas imediatamente anteriores (191 a 193). Escutemo-la:
“A primeira é a de que existe um mundo da criança e uma sociedade formada pelas crianças; que estas são seres autónomos e que, na medida do possível, se devem deixar governar por si próprias. O papel dos adultos deve então consistir em limitar-se a assistir a esse processo. É o grupo das crianças ele mesmo que detém a autoridade que vai permitir dizer a cada criança o que ela deve e não deve fazer. (…) A segunda ideia-base a tomar em consideração na presente crise tem que ver com o ensino. Sob influência da psicologia moderna e das doutrinas pragmáticas, a pedagogia tornou-se uma ciência do ensino em geral ao ponto de se desligar completamente da matéria a ensinar. O professor – assim nos é explicado – é aquele que é capaz de ensinar qualquer coisa. A formação que recebe é em ensino e não no domínio de um assunto particular. (…) Esta ideia-base (a terceira) é a de que se não pode saber e compreender senão aquilo que se faz por si próprio. A aplicação à educação desta ideia é tão primitiva quanto evidente: substituir, tanto quanto possível, o aprender pelo fazer. Considera-se pouco importante que o professor domine a sua disciplina porque se pretende compelir o professor ao exercício de uma actividade de constante aprendizagem para que, como se diz, não transmita um ‘saber morto’ mas, ao contrário, demonstre constantemente como se adquire esse saber. A intenção confessada não é a de ensinar um saber mas a de inculcar um saber-fazer. O resultado é uma espécie de transformação das instituições de ensino geral em institutos profissionais.”
A autora refere-se a estes três pressupostos como sendo as causas imediatas da crise na educação. Não sendo as suas causas mais longínquas – as quais se prendem com o fenómeno da progressiva e irreversível erosão da tradição-autoridade-religião, que se inscreve no processo histórico da modernidade – são contudo as que explicam de forma mais significativa a crise, que tem na educação a sua expressão mais clara e a sua face mais visível. A natureza destes pressupostos revela-se no facto de constituírem ideias feitas, preconceitos que assimilámos como se de verdades irrefutáveis se tratassem e que, por conseguinte, não nos atrevemos a questionar. No seu conjunto, remetem todos para ideias que cimentaram, ao longo de mais de trinta anos, a nossa compreensão do que deveria ser não apenas a escola mas, em geral, a relação adultos-crianças, sobretudo no universo intra-familiar.
O primeiro pressuposto pode ser entendido como o da absolutização do mundo infantil, estando isso associado à ideia de que o mundo da criança é independente do mundo dos adultos, e de que a criança, tomada individualmente, vive simultaneamente “emancipada da autoridade dos adultos” e sob a alçada da autoridade do grupo. Libertos da referência dos adultos (dos seus valores e também do seu cuidado), as crianças crescem “ou entregues a si mesmas, ou à tirania do seu grupo”. Um livro de William Golding (1954) e um filme de Peter Brooks (1953) – O Deus das Moscas (Lord of the Flies) – ilustram bem como um mundo de inocência e de candura se pode transformar num mundo selvático onde impera a lei do mais forte ou o caos. Peter Pan, por seu turno, conta-nos a história de um mito, o da eterna criança que se recusa a crescer, e constitui-se outro exemplo da rejeição de um mundo regido por outros imperativos que não os da satisfação dos prazeres imediatos, ou do jogo, cuja lógica interna é a eternização de si próprio.
O segundo pode ser entendido como o da pedagogização do ensino. A escola moderna fez da pedagogia o alfa e ómega do ensino, erigindo-a à condição de rainha das aprendizagens. Todas as pessoas ligadas profissionalmente ao ensino sabem o que isto significa, quer tenham quer não tenham reflectido sobre o assunto. A desvalorização dos saberes disciplinares e dos “curricula” vai a par da prevalência absoluta da pedagogia. Em consequência, o professor ignora cada vez mais as matérias que deveria ensinar, ao mesmo tempo que se torna monitor das aprendizagens (ou mestre de coisa nenhuma). O binómio ensino-aprendizagem, equação de que deveria resultar o ponto de equilíbrio entre a transmissão e recriação dos conhecimentos (o ponto de equilíbrio entre o passado e o futuro), deu lugar ao predomínio absoluto da aprendizagem. A propósito, registe-se um facto significativo: a ladear a entrada principal do antigo liceu Camões encontra-se uma tarja alusiva à comemoração do centenário da instituição, onde se pode ler: “100 anos a aprender”. Sintomático.
O terceiro decorre do segundo e, qual cobra mordendo a sua própria cauda, reconduz ao primeiro. Pode ser entendido como a instrumentalização do ensino, pois está intimamente ligado ao pragmatismo ou à ideia de que o único critério da verdade é o da sua eficácia em termos práticos e instrumentais. Subjaz a este pressuposto a ideia peregrina, enraizada nas pedagogias progressistas de matriz rousseauniana, que impõe a primazia do “aprender fazendo” sobre o “aprender sabendo” e do lúdico sobre sério. Isto traduz-se, em termos de política de educação, na valorização do ensino profissionalizante ou mesmo informal em detrimento do ensino geral ou formal. Por isso proliferam os cursos profissionais, as novas oportunidades e os “magalhães” profícuos sobretudo em erros de lesa-língua. Traduz-se também na crescente ignorância em relação ao saber proposicional – saber que D. Afonso Henriques teve como progenitores o conde D. Henrique e a rainha D. Teresa – e na admirável mestria em manipular as teclas do telemóvel. Traduz-se igualmente no desprezo pela sabedoria e no singular apreço por esse pseudo-saber de “fast food” televisivo, que consumimos ao mesmo tempo que nos vamos tornando obesos em iliteracia funcional. Traduz-se finalmente no prolongamento indefinido da infantilidade dos nossos jovens e na infantilização dos adultos. Mas isso será assuntos para exercícios de escrita futuros.
Termino este exercício com uma citação de Eça de Queirós, esse estrangeirado involuntário que zurziu os costumes portugueses com o agulhão da sua suprema ironia: “Para ensinar há uma formalidadezinha a cumprir – saber.”

quinta-feira, março 26, 2009

Aldo Naouri revisitado

Depois da entrevista a Aldo Naouri publicada na Visão da semana passada, no Público de 25 de Março surgiu outra. No essencial, o conteúdo da última pouco ou nada difere da primeira. O autor de mais de uma dezena de livros sobre educação e com uma longa experiência de pediatria, apenas reafirma o que antes já dissera: que a palavra “não” deve fazer parte do léxico dos pais, que estes devem ser pródigos no exercício da autoridade, que é importante “reprimir as pulsões das crianças”, que seduzir não é sinónimo de educar, etc. Na segunda entrevista o pediatra é no entanto mais explícito e contundente. O que nem sempre agrada. Como se diz na gíria – “não se pode agradar a gregos e a troianos”. O seu pensamento torna-se mais explícito ao distinguir “explicar” de “justificar”, afirmando porém que a demarcação entre ambas é “ténue”, razão pela qual defende que a maioria das vezes não devem os pais nem sequer explicar as suas decisões, mesmo que erradas. Defende também, por consequência, que as relações pais-filhos devem permanecer sempre num registo de verticalidade e que o modelo democrático em educação produz tiranos e mentalidades fascistas, devendo por isso ser substituído por um modelo autoritário (não forçosamente ditatorial).
A contundência das suas palavras pode provocar em alguns de nós, pais e mães, um efeito de choque, o que conduz bastas vezes à rejeição pura e simples. Afirmar que não existem excelentes pais, que todos têm defeitos, pode parecer um truísmo. Mas na realidade é duro e exige poder de encaixe. Quantos de nós estamos preparados para questionarmos as nossas certezas ou convicções, os nossos preconceitos ilustrados? Quais ousarão ter a coragem de experimentar ser pais e não apenas comparsas do lúdico ou companheiros da aventura? É verdade que os filhos não trazem à nascença livros de instruções. Mas também não se podem confundir com objectos à venda no hipermercado da “sociedade da abundância” ou à mercê do consumo compulsivo, nem vêm acompanhados de recibo de devolução no caso de insatisfação do cliente.
Cada dia que passa são mais frequentes os testemunhos de pais e mães esgotados, desesperados, que já não acham solução para o problema em que se transformou o sonho de um dia ter filhos. No rosto adivinha-se a desilusão, a dor, o tormento, antecipando a confidência de quem já desistiu – “não sei o que mais posso fazer!” – ou a terrível interrogação – “onde errei eu?” O caminho para a resolução do problema que educar pode constituir, crónico ou agudo que seja, passa necessariamente pela disponibilidade para reflectir. Aldo Naouri deixa-nos algumas palavras que merecem reflexão: “Os bons pais são aqueles que permitem à criança poder desejar. (…) os maus são os que acham que a criança tem direito a tudo.”

quinta-feira, março 19, 2009

educar é um dever e não uma estratégia de sedução

Aldo Naouri é pediatra e autor de um livro – “Educar os Filhos” (Livros d’Hoje) – que certamente irei ler pela Páscoa. Nascido na Líbia, onde viveu até aos 19 anos, e desde então radicado em França, o escritor deu uma interessante entrevista que saiu na Visão 837. Se o livro vier a confirmar o teor daquela, será dinheiro bem gasto.
A publicação do livro de Aldo Naouri segue as pisadas de um outro best-seller – “O Pequeno Ditador” do espanhol Javier Urra, publicado pela Esfera dos Livros em 2007. O que pode isto significar? Muitas coisas, evidentemente. Reduzamo-las a duas apenas. Em primeiro lugar, algo de factual: a existência de mercado. A crescente procura anda a par com multiplicação da oferta. Em segundo lugar, algo de sintomático: a existência de fenómenos persistentes de disfunção educativa que atravessam o tecido das sociedades democráticas e lhes devolve a imagem do seu autêntico alter ego que se chama crise.
Na entrevista, o pediatra produz algumas afirmações que esclarecem os dois significados apontados. Começa por referir o número crescente de pais que procuram ajuda “para lidar com o comportamento dos seus filhos”, a par da “multiplicação considerável de educadores de toda a espécie”. Educar tornou-se hoje uma tarefa cada vez mais difícil e complexa, cuja consequência se traduz no aparecimento de crianças ditas problemáticas e na delegação de competências a especialistas. Vivemos tempos de crepúsculo educativo. Os pais, descrentes nas suas próprias capacidades, entregam o dever de educar às instituições que não foram criadas para o efeito. Pior a emenda que o soneto, pois ninguém os pode substituir, nem é desejável que o façam. O erro está no diagnóstico. As crianças não são problemáticas, mas antes mal-educadas ou deseducadas. A mensagem que os pais passam aos seus filhos, ainda que involuntariamente, resulta de ignorarem uma evidência: nem tudo é permitido. (Platão ensinava, há 25 séculos, que todo o mal é fruto da ignorância e, portanto, involuntário) Ora, frequentemente, “a mensagem que a criança apreende é que tudo é permitido”. Como Dostoiesvski demonstrou, nos Irmãos Karamazov, a ideia de que tudo é permitido, está associada à erosão da autoridade e à emergência do niilismo. Os pais, ao encararem a tarefa de educar como uma quase impossibilidade e ao se demitirem desse dever, estão a contribuir decisivamente para o clima de niilismo e de crise educativa que se alastra como fogo em seara enxuta. E tudo isto porque o paradigma educativo se alterou. A modernidade, no seu desenvolvimento democrático, impôs-nos a todos a ideia de que a criança é um sujeito de direitos sem deveres, que deve ser objecto de atenção incondicional, um ser de impulsos e caprichos que merecem ser satisfeitos no imediato, a quem um “não” deve ser sugerido com eufemismos e parcimónia. Sem uma autoridade que balize e refreie os seus impulsos, os pais entregam as crianças “à tirania das suas pulsões”, transformando-as assim em pequenos tiranos em potência, cujas vítimas são em primeiro lugar os elementos da família. Uma nota importante porque significativa: “53% das decisões de compra na família – e estes são apenas números franceses, apontados pelos publicitários – são influenciados pelas crianças”.
Entendendo a crise da educação como uma consequência da ruína da autoridade dos pais, Aldo Naouri põe o dedo na ferida ao afirmar que os pais substituem o dever de educar por estratégias de sedução que, a médio e a longo prazo se traduz na multiplicação de comportamentos selváticos característicos de déspotas que não enxergam um palmo à frente do seu umbigo. Haverá soluções? Sem dúvida. O medo de educar autenticamente deve ser substituído pela responsabilidade de se assumir como prioridade absoluta em relação às crianças. As crianças devem aprender a desejar duas coisas: “agradar aos pais e ganhar-lhes o respeito”. “Para ajudar a resolver os problemas, o que proponho aos pais é uma receita simples: substituir o slogan “a criança primeiro”, por “o casal primeiro. E a vida ficará muito mais fácil.” Para todos, acrescento. Como diria Sherlock Holmes – “elementar meu caro…” A evidência decorre do facto de não haver criança sem família ou, dito de outro modo, são os pais que geram (e educam) os filhos e não estes que geram aqueles.

quinta-feira, março 12, 2009

filosofia bem humorada

“Platão e um ornitorrinco entram num bar…” é o título de um livro de filosofia, encarada de um ponto de vista solto e despreocupado, como é apanágio dos livros de humor. O subtítulo – Filosofia com humor – apenas explicita o que o título já indicia. Publicado pela Dom Quixote em Agosto de 2008, numa época em que aquilo que normalmente é grave e sisudo se vê desvalorizado ou apenas suportado à distância, trata-se de um livro que convive com a boa disposição e que convida ao riso e ao esquecimento. Os autores – Thomas Cathcart e Daniel Klein –, ambos americanos, abordam os grandes temas da Filosofia, desde a Metafísica, à Filosofia da Linguagem, passando pela Lógica, Epistemologia e a Ética, etc., abordam-nos sem uma evidente preocupação académica mas com o cuidado necessário (e o rigor possível) para não deseducar os mais leigos no assunto e não defraudar os especialistas mais exigentes. O cuidado constata-se no quadro em que se apresentam os momentos mais significativos da história da filosofia e no glossário, que encerram o livro. Gostei particularmente do tratamento anedótico das falácias, inseridas no capítulo da Lógica.
Não resisti a transcrever duas piadas que tiveram o condão de me fazer soltar a gargalhada espontânea. Em tempos de crise, não conheço melhor terapia.

Moisés desce o monte Sinai com as Tábuas da Lei na mão e anuncia às multidões reunidas:
– Tenho uma boa notícia e uma má notícia. A boa notícia é que consegui convencê-Lo a reduzir para dez. A má notícia é que o “adultério” não foi exlcuído.

Era Outono e os índios da reserva perguntaram ao novo chefe se o Inverno ia ser frio. Educado segundo o estilo do mundo moderno, o chefe nunca tinha aprendido os antigos segredos e não fazia ideia se o Inverno seria frio ou ameno. Para jogar pelo seguro, aconselhou a tribo a apanhar lenha e preparar-se para um Inverno frio. Alguns dias mais tarde, lembrou-se de telefonar para o Serviço Nacional de Metereologia e perguntar se previam um Inverno frio. O metereologista replicou que, de facto, pensava que o Inverno seria bastante frio. O chefe aconselhou a tribo a armazenar ainda mais lenha.
Duas semanas mais tarde, o chefe ligou de novo para o Serviço de Metereologia.
– Continuam convencidos de que o Inverno vai ser frio? – perguntou.
– Continuamos – respondeu o metereologista. – Tudo indica que vai ser um Inverno muito frio.
O chefe aconselhou a tribo a apanhar toda a lenha que conseguissem encontrar.
Passadas duas semanas, o chefe telefonou uma vez mais para o Serviço de Metereologia e perguntou como pensavam que o Inverno seria naquele momento.
– Agora, estamos a prever que será um dos Invernos mais frios de que há registo! – informou o metereologista.
– A sério? – perguntou o chefe. – Como é que podem ter tanta certeza?– Os Índios andam a apanhar lenha como loucos! – replicou o meterelogista.

segunda-feira, março 09, 2009

Do Magalhães e da pornografia mental

Da última vez que ouvimos falar do Magalhães foi há pouco mais de quinze dias, em vésperas do Carnaval. Aconteceu em Torres Vedras, cidade de tradições carnavalescas. Fiéis à máxima latina “ridendo castigat mores”, as gentes da terra são danadas para a brincadeira. Foi daí que surgiu a sátira do Magalhães pornográfico (ou melhor dito, entendido como tal). Alguém não gostou da brincadeira e apresentou queixa a quem de direito. Um magistrado, investido do papel de guardião da moralidade pública, decidiu usar da autoridade e censurar a ousadia, repondo desse modo a decência. O assunto torna-se público, mediatiza-se. Enquanto o diabo esfrega um olho, perde-se a vergonha e dá-se o dito pelo não dito. O caso morre pela permissão da licenciosidade e pela reposição da liberdade do Carnaval.
O Magalhães volta a dar que falar. Agora pelos piores motivos, porque a coisa é séria e o Carnaval já lá vai. Os erros do Magalhães, essa ferramenta didáctica que este Governo não se tem cansado de enaltecer e propagandear, afirmando-a como a cura de todas as maleitas da educação e como um milagre pedagógico, são a pior de todas as pornografias. Simplesmente por ser da ordem da prostituição mental. O rei vai nu, exibindo as suas partes impudicas à mente das criancinhas indefesas. Agora que já não há vergonha a perder, façam o favor de ter vergonha.

quinta-feira, março 05, 2009

a crise também será...canina

A crise é profunda e está para durar. O que se pretende dizer com isto? Que a dimensão da crise atinge múltiplos sectores da vida económica institucional e familiar, pública e privada, colectiva e individual; que é internacional; e que provavelmente se estenderá para lá dos próximos dois ou três anos. O enunciado, como todos os que se referem a factos intra-mundanos, pode vir a revelar-se verdadeiro ou falso. O futuro o dirá. Quer se venha ou não a confirmar, cada dia que passa corrobora a sua veracidade. A banca socorre-se do aval do estado, faz empréstimos, revela dificuldades. As empresas reclamam ajuda, declaram falência, despedem trabalhadores. O desemprego real cresce a olhos vistos, desmentindo os números institucionalmente cozinhados. O cidadão comum olha o horizonte e recusa-se a acreditar que a esperança num porvir melhor não passou de uma ilusão que o passado lhe vendeu caro. E à semelhança das pessoas mais idosas, na sua maioria, está cada vez mais convencido que o melhor da sua vida se encontra algures no passado. O número de pedintes aumenta todos os dias, e a pobreza envergonhada já não tem mais com que esconder o que revelar não queria. Aumenta também o número dos cães abandonados. Quando a crise mostrar o seu rosto mais duro, lá mais para o Verão, os cães ao abandono formarão pequenas matilhas esfaimadas. Será apenas mais uma das faces da crise. Afinal crise também será… canina.

quarta-feira, março 04, 2009

um partido político ou uma seita religiosa?

O Congresso Socialista que ocupou mediaticamente a vida dos portugueses no fim-de-semana último traduziu-se num fenómeno medíocre do ponto de vista político. O vazio de ideias e a ausência de debate, de confronto argumentativo, marcaram indiscutivelmente o encontro dos socialistas em Espinho. O que mais impressionou, para além de todo o aparato cénico concebido em formato obamista, onde predominou a tonalidade azul insinuando um mar imenso de tranquilidade, foi a onda de unanimidade que se congregou em torno da figura do líder. Em nenhum momento se sentiu um acorde mínimo de discordância. Nenhuma vibração de antagonismo pairou nessa ambiência seráfica, propícia ao entoar de cânticos e loas às virtudes inquestionáveis do candidato a futuro Grande Irmão. O primeiro momento serviu para exorcizar as potências maléficas da campanha negra. Ungido o redentor da confraria dos irmãos, seguiu-se uma explosão de sucessivas emanações da divindade, deixando em êxtase a totalidade dos fieis. Ao correr do tempo, aqui e ali, ouviu-se alguém vociferar impropérios ao maligno. Dos anjos caídos ausentes, nem uma palavra. Calaram-se os seus nomes não para os esquecer, mas para que não se contaminassem os átomos dessa atmosfera impoluta. No final, o líder supremo pronunciou um nome… nasceu um apóstolo mais para espalhar a palavra do Senhor.

domingo, março 01, 2009

"Não me fodam o juízo!"




“Não me f**** o juízo” é o título de um pequeno livro (94 páginas) publicado, pela editora Bizâncio, no mês de Fevereiro último. Da autoria de Colin McCinn, o mesmo que escreveu “Como se faz um filósofo”, que a referida editora publicou em 2007, o livro aborda o tema da manipulação mental, conforme testemunha o subtítulo “Crítica da manipulação mental”.
O filósofo inglês, actualmente a leccionar na Universidade de Miami, escreve sobre filosofia com a naturalidade de quem respira, dando assim continuidade a uma tradição que teve o seu momento inaugural com os diálogos socráticos de Platão. Essa é a sua principal virtude, a de tornar a filosofia um assunto acessível ao comum dos mortais.
De leitura fácil e rápida (duas horas bastam), o livro principia com um exame do conceito de “foder o juízo” ou “psicofoda”. No primeiro capítulo, Colin McCinn procura determinar o conceito, destacando por um lado a sua proximidade semântica com as noções de “logro”, “manipulação” ou “lavagem ao cérebro”, e por outro lado, realça a analogia corpo-mente que o constitui: “Foder fisicamente uma pessoa é sem dúvida ‘lixá-la’ de alguma maneira e a ‘manipulação’ está aí claramente pressuposta. Analogamente, foder o juízo a alguém é lixar o juízo a essa pessoa, de um modo comparável: é um género de interferência, intervenção ou invasão” (p.21). Esta analogia conduz-nos a uma “dualidade de sentido” que o conceito necessariamente em si transporta, pois a foda pode ser boa ou má, consoante seja desejada e voluntária ou indesejada e involuntária, como é o caso da violação. Como não podia deixar de ser, o autor analisa sobretudo o conceito na sua faceta negativa, sem contudo deixar de referir o seu lado positivo enquanto “experiência reveladora” produzida pela leitura de um livro, por um filme que se viu ou por uma conversa que se entabulou, susceptíveis mudar inteiramente a nossa visão do mundo. A experiência do filosofar, na sua mais nua autenticidade, é um caso típico deste género de psicofoda: “Talvez uma grande parte da atracção que a Filosofia exerce esteja nesta forma benigna de foder o juízo: o arrebatamento intelectual que provoca. A Filosofia trata de revelações grandiosas, sublevações profundas, e isto tende a fazer a mente sentir-se completamente abalada e traumatizada.” (pp.83-84)
Os aspectos mais interessantes do livro prendem-se com a análise da manipulação mental que o percorre. Dando sobretudo realce ao “tipo negativo” de foder o juízo, McCinn atribui aos sofistas a invenção da arte da psicofoda. São eles que elevam a argumentação à condição de arte, usando-a não como instrumento de persuasão racional em busca da verdade, mas antes como técnica retórica de sedução ao serviço do poder. São sobretudo artistas da dissimulação, uma vez que “davam a entender que usavam a persuasão racional (como não, se queriam convencer?) mas na realidade davam apenas a volta às pessoas e fodiam-lhes o juízo. Foram os primeiros peritos na ‘arte de foder o juízo.’” (p.33)
Uma distinção impõe-se para compreender os diferentes matizes da psicofoda. Ela pode assumir duas formas: a pessoal e a colectiva. A primeira é exemplificada pelo “Otelo” de Shakespeare. A segunda, do género institucional, pode ser ilustrada pela religião, pela política ou pela publicidade, nas quais se “denotam fenómenos relacionados” com a “doutrinação”, a “lavagem ao cérebro” e a “propaganda”. A forma mais eficaz de a combater consiste no esforço de esclarecimento, na busca de conhecimento e de informação. No fundo, ainda que o autor não o afirme, o antídoto para combater o veneno tem um nome: liberdade. Só o amor pela liberdade ou o desejo de autonomia nos tornam aptos para um combate difícil, quotidiano e sem tréguas contra o inimigo de mil rostos. O autor, numa página em que remete para o 1984 de George Orwell, afirma: “Assim que uma pessoa começa a suspeitar de que lhe foderam o juízo, contudo, perde-se o poder, porque o logro inerente foi desmascarado. A psicofoda colectiva exige o isolamento informativo, de modo a que nada possa surgir que refute o sistema de crenças falsas impingido às vítimas; é por isso que as nações e seitas que dela dependem são sempre sociedades fechadas. A essência de uma sociedade aberta é o livre afluxo de informação. A psicofoda política esmorece sob o brilho intenso da abertura informativa, porque o conhecimento frustra a manipulação.” (p. 68)
Nos tempos que correm, em que muitos confundem a quantidade de informação com liberdade, a leitura deste pequeno livro pode ser uma experiência gratificante, um exemplo de psicofoda positiva.

o reino do deserto absoluto

O XVI Congresso do partido socialista acabou. É tempo de fazer o balanço. Quais foram as ideias e os projectos que dali resultaram? O que se debateu? Que linha de rumo foi apontada? Para além do “show off” e do “fait divers” mediáticos (sem dúvida o congresso mais mediatizado de que há memória) pouco mais há a salientar de politicamente relevante. De sexta-feira a domingo, contam-se pelos dedos das mãos os acontecimentos dignos de registo. Talvez o mais significativo se prenda com as ausências de Manuel Alegre e de João Cravinho (ausências eloquentes) e o anúncio de Vital Moreira como cabeça de lista para as eleições europeias (aceno ao eleitorado de esquerda). No resto, imperou a previsibilidade: a teoria da campanha negra, a aclamação subserviente do líder, os discursos da concórdia. O único imprevisto foi o apagão de sábado à noite, talvez a metáfora perfeita do enorme apagão de ideias e do deserto que se estende cada vez mais no reino em que José Sócrates se transforma em soberano absoluto.

terça-feira, janeiro 27, 2009

entre as brumas da memória

De um primeiro-ministro espera-se não só que governe bem, com justiça e eficácia, mas também que seja um indivíduo moralmente íntegro. A uma figura pública desta envergadura exige-se, acima de tudo, que evidencie virtudes políticas e éticas irrepreensíveis, não se lhe perdoando quaisquer manifestações de fraqueza de carácter, quer se trate de pecadilhos de corruptela ou de alcova.
O recente caso do Freeport é apenas mais um a somar aos casos da licenciatura e dos projectos de arquitectura da Câmara da Covilhã. São casos a mais para um homem só, sobretudo quando esse homem ocupa o lugar mais proeminente da política portuguesa. Em todos eles, o carácter de José Sócrates saiu ou sairá beliscado, e a sua imagem tremida. Por mais que reclame inocência, que se diga vítima de uma cabala, ou que nos assegure que vai lutar pela sua honra e bom nome, a credibilidade do primeiro-ministro não vai escapar à erosão da desconfiança e da má-fé. E um político, qualquer que seja, precisa de credibilidade como pão para a boca.No futuro, quando José Sócrates fizer parte da história política portuguesa, estes casos serão porventura esquecidos, permanecendo deles apenas uma vaga lembrança entre as brumas da memória. O que ficará registado é o seu carácter, a sua obra e a sua credibilidade, onde aparecerão, transfigurados, os danos colaterais que estes casos provocaram.

quarta-feira, janeiro 14, 2009

o povo é manso mas não parvo

Ao parar hoje o meu automóvel numa bomba de combustível da Cepsa, pasmei. Nem queria acreditar. O preço da gasolina tinha subido em relação aos valores que, há três dias atrás, eu próprio tinha verificado. Ainda pensei tratar-se de uma ilusão de óptica ou de um qualquer fenómeno de perturbação da retina. Mas rapidamente constatei que não, a realidade nua e crua estava ali mesmo, inalterável, deitando por terra o meu cepticismo momentâneo.
Há uns meses, quando o barril do crude iniciava a sua tendência de descida nos mercados internacionais e os cidadãos mostravam a sua estranheza pelo facto das gasolineiras não acompanharem a mesma tendência de baixa de preços, nessa ocasião, os argumentos apresentados, apesar de não convencerem de todo, faziam sentido, pelo menos em termos teóricos. Dizia-se que tal se explicava por uma razão simples e objectiva: o combustível comerciado nos dias correntes correspondia às reservas compradas dois meses antes, precisamente quando o crude atingia uns dos seus picos mais elevados, para além do euro se ter valorizado em comparação com o dólar.
Entretanto o preço do crude, nos mercados internacionais, foi baixando progressivamente. Desceu mesmo abaixo de todas as expectativas, contrariando as previsões dos economistas mais ousadamente optimistas. Novos protestos. Falou-se de cartelismo, de desbragada roubalheira, de especulação financeira, da prevalência dos interesses da alta finança face aos interesses do cidadão comum. O diabo a sete. Os mesmos argumentos foram apresentados. O povo, uma vez mais, desconfiou. Mas calou e engoliu o engulho. Talvez as razões macroeconómicas sejam coisa transcendente e, à semelhança do mistério da trindade divina, não caibam no entendimento das contas e do arrazoado comum.
No entanto, o impensável aconteceu. Uma semana depois do mesmo crude ter subido de preço, uma vez mais no mercado internacional, os combustíveis desatam a subir para o consumidor. E quais são as razões? A subida do preço do “brend” nos mercados internacionais e a desvalorização do euro face ao dólar. Esqueceram-se de um pormenor – o das reservas e da história daquilo que se vende hoje corresponder ao que se comprou, mais dia menos dia, há dois meses atrás. Mas então que merda é esta? Por mais voltas que dêem, por mais transcendentes que sejam os negócios e os assuntos da economia, uma coisa é certa – a razão continua a ser a mesma e não admite contradições. Estes tipos pensam que o povo, para além de manso, é parvo.
Um dias destes o povo vai-se cansar de ser sempre o bombo em que os altos interesses económicos batem para fazer despudoradamente a sua festa. E depois iremos ver a força da razão que já não suporta mais ser achincalhada.

quinta-feira, janeiro 08, 2009

ano velho, ano novo

O ano de 2008 já lá vai. Pertence em definitivo à história, ainda que recente. Dos acontecimentos que mais marcaram o ano passado, os de maior impacto, infelizmente, não são de bom augúrio para o presente ano, deixando a pairar sobre a cabeça dos portugueses o espectro de um novo ano dramático – um “annus horribilis”. Densas nuvens negras acastelam-se agora no horizonte imediato, como prenúncio de tempestade iminente e inevitável. Os contornos da tempestade são previsíveis, mas não a sua intensidade e duração. Iremos assistir certamente ao crescimento do desemprego, à contracção do consumo, a uma soma de dificuldades económicas que afectarão a vida quer de empresas quer de indivíduos. Aquilo que já há alguns meses alguns economistas e demais especialistas em finanças prognosticavam como certo – escrevendo a crónica de uma crise anunciada -, o governo teimava em calar. As palavras crise e recessão não constavam do léxico governativo. Portugal parecia imune à epidemia que se alastrava dos Estados Unidos à Europa. Entretanto, as evidências da crise internacional iam-se somando ao ritmo dos dias que se subtraíam no calendário de 2008. Com este avolumar de evidências, negá-las tornou-se um exercício não só impossível do ponto de vista argumentativo, mas sobretudo perigoso do ponto de vista da credibilidade política. Foram anunciadas medidas de apoio aos bancos que manifestaram dificuldades de liquidez financeira, em nome do interesse público. O dinheiro que o governo sempre afirmou escasso, em período de contenção orçamental e de consolidação do défice, passou, de um momento para o outro, a jorrar aos milhões. O ano de 2008 aproximava-se do fim, numa vertigem avassaladora. O cenário de uma recessão técnica parecia cada vez mais uma realidade indesmentível. O governo desmentia, recorrendo a uma retórica indecorosa. Empresas reclamavam ajuda do governo para obviar ao imperativo da sua própria governabilidade. A crónica da crise anunciada passava do romance à vida real. O primeiro-ministro, no seu discurso natalício, disse aos portugueses que os esperavam tempos difíceis. Nem metáfora do “cabo das tormentas” faltou. A navegação passou a fazer-se à vista. O ano velho deu lugar ao ano novo – mais uma dobragem. O presidente da República confirmou, no seu discurso de final de ano, a tempestade que se avizinha. Carregou com tintas negras o horizonte. Nenhuma bonança à vista. Apelou à coragem, à união de esforços, ao trabalho conjunto e persistente. E disse que era preciso falar verdade. Entrámos em 2009, o ano de todas as eleições, com esta mensagem – a verdade e a política têm de dar as mãos, formar se não um par harmonioso, imagem de enamoramento mútuo, pelo menos o compromisso de um casamento de conveniência. Só assim o peso de um ano grave se tornará mais ligeiro, passando mais depressa.