segunda-feira, dezembro 22, 2008

as metamorfoses do "ethos" natalício

Diz a canção que o Natal é quando um homem quiser. Pois sim, seja. No entanto, continua a ser celebrado em Dezembro, no dia 25. Nenhuma mudança se verificou no calendário. As mudanças ocorreram nos costumes e nos hábitos. E que mudanças! Em trinta anos, pouco mais ou menos, a celebração do Natal em Portugal transfigurou-se. Alguns traços, poucos, permanecem idênticos. A maioria deles, porém, alterou-se profundamente, obedecendo a determinismos económicos e sociais que as contingências da história da democracia mais não fizeram do que sancionar. O que ainda podemos identificar como fazendo parte da tradição natalícia reside no facto de continuar a ser uma festa de reunião familiar. A consoada (a etimologia é incerta) continua a congregar à mesma mesa o núcleo da família, mesmo quando esta vem sofrendo, nas últimas décadas, de uma desestruturação irreversível. O bacalhau, o peru, o cabrito ou o polvo pontificam ainda como os pratos consagrados para a ceia. O arroz-doce, a aletria, as rabanadas e as filhós acompanham-nos, sendo coroadas pelo bolo-rei agora higienicamente desprovido de fava e brinde. A distribuição dos presentes permanece como corolário para onde convergem atenções e interesses, sobretudo da pequenada.
Em quase tudo o que resta o Natal mudou, transformando-se numa festa de apoteose consumista. O capitalismo reinante impôs as suas leis de mercado e fez do excesso e da abundância o seu ritual de culto. O apelo ao consumo desenfreado tomou conta dos costumes e hábitos que, outrora, contidos pelo sentimento religioso eram sublimados pela aura da transcendência. O menino Jesus deu lugar ao pai natal, o presépio cedeu a sua importância, em termos representativos, à árvore repleta de luz e cor. Os embrulhos das prendas transbordaram do sapatinho e descansam debaixo da copa da árvore de natal, não sendo já revelado o seu mistério na manhã seguinte. Na paixão incontida da posse não tem lugar o mistério e a espera paciente da revelação. A paixão da satisfação imediata requer que o agora não tarde com as suas promessas de desvelação. Ao mesmo tempo que o sagrado se viu engolido pelo profano, o “ethos” natalício metamorfoseou-se e é agora outro. E nós com ele.

quarta-feira, dezembro 17, 2008

a falácia da simplificação

O ministério da educação anunciou hoje mais uma medida do seu simplex educativo. Os professores que estiverem em condições de pedir a sua reforma até 2011 estão dispensados da avaliação. Para além destes, outros docentes que tenham sido contratados para leccionar em áreas profissionais, vocacionais e artísticas, não integradas em grupos de recrutamento, estão igualmente dispensados. Serão cinco mil os professores em causa. O que está em causa é que não se trata de simplificação alguma. Trata-se de uma falácia nova – a falácia da simplificação.

O ministério de educação em destak

O desespero é grande para as bandas do ministério da educação. Torna-se por demais evidente que o sentimento que predomina hoje no ministério da educação é o desespero. E cresce. Só ele justifica um procedimento que, do ponto de vista ético, nada tem de recomendável. A prova disso é a estratégia adoptada para impor o seu modelo de avaliação, agora alcunhado de simplex. A estratégia é clara, obedecendo a um só propósito – passar a mensagem de que o remendado modelo é simples, leve, exequível e justo. Em termos retóricos, o que importa é convencer a opinião pública da credibilidade ética e argumentativa do emissor. Tal mensagem transporta em si uma outra, subliminar e insidiosa: os professores (e os sindicatos), se o não aceitam, é porque não querem ser avaliados e são pessoas de pouco ou nenhum crédito. A hostilização dos profissionais do ensino permanece, agora menos ostensiva ou mais camuflada. A Atitude dos responsáveis do ministério da educação é maquiavélica, no pior sentido. “Os fins justificam os meios”. E que meios! Tudo serve para levar a água ao seu moinho, mesmo quando se trata de água suja, cheia de detritos tóxicos. A intoxicação da opinião pública é dos mais deploráveis meios para atingir os fins desejados, em democracia. Não a serve, apenas a degrada cada vez mais. Um dos meios utilizados pelo ministério da educação pode ser testemunhado na edição de hoje de um dos jornais gratuitos – o Destak. Na página 11 deparamos com um anúncio publicitário de meia página com a chancela do ministério da educação. O título é: “as dez questões erradas sobre a avaliação de desempenho docente”. Outras perguntas se impõem. Com que legitimidade se usa o dinheiro dos contribuintes para fazer propaganda política? O uso manipulador deste meio retórico-publicitário não demonstra a ausência de argumentos sólidos? Argumentar deste modo não é passar um atestado de menoridade intelectual ao auditório a que se dirige a mensagem? A mentira e a política não coabitarão a mesma casa?

quinta-feira, dezembro 04, 2008

M.E. - "um cadáver adiado que procria"

A greve dos professores de ontem foi mais um acontecimento a marcar a agenda política do país. Pelos números de adesão (94 % e 61%, segundo números dos sindicatos e da tutela) transformou-se numa greve histórica, sobretudo se tivermos em consideração ter sido feita a meio da semana, ter mobilizado muitos professores para os seus locais de trabalho, e lhes ter saído cara esta “brincadeira”séria. Alguns argumentam que o ganho foi todo para os cofres do ministério das finanças. Feitas as contas, o governo terá encaixado qualquer coisa como cerca de 7 milhões de euros. Os mais cínicos acrescentam que dará uma preciosa ajuda para financiar os desgovernos da banca privada. De todo o modo, têm sido os professores a dar lições de democracia substantiva, pelo modo como lutam contra a ditadura de um governo que claramente já não representa uma maioria que formalmente ainda reclama. E a luta não passa apenas por exigir a suspensão deste modelo de avaliação que, por cada metamorfose kafkiana, vai exibindo a sua natureza inumana, passa por reclamar a revogação de um Estatuto da Carreira Docente indigno, substituindo-o por outro que respeite a especificidade e a importância de uma profissão que todos reconhecem como decisiva para a criação do futuro do país. Esta é sobretudo a luta por uma escola pública de qualidade, escola em que crianças e adolescentes, pobres e ricos, possam aprender a ser homens e mulheres livres e iguais, a escola que queremos para os nossos filhos e que certamente também eles quererão para os nossos netos. É por isso que esta luta é uma lição de democracia substantiva, essa democracia que não vive refém de interesses meramente economicistas e partidários, mas sabe olhar o horizonte para além do contorno da sua sombra. É uma luta contra um monstro que se olha a si próprio no espelho mágico da auto-ilusão. O ministério da educação (este) não é somente um monstro que “os seus próprios filhos devora sempre”, é cada vez mais um “cadáver adiado que procria”, para citar o grande Fernando Pessoa. Há que enterrá-lo o quanto antes, não vá a pestilência alastrar ainda mais.

quinta-feira, novembro 20, 2008

aconteceu hoje

Depois de ter estado presente na reunião extraordinária do Conselho de Ministros – marcada pelo governo para hoje, em que certamente se discutiram um conjunto de medidas que permitissem a salvação política da ministra da educação, através da implementação de um “simplex” na avaliação dos docentes, permitindo desse modo dar um novo fôlego ao processo – Maria de Lurdes Rodrigues correu para as televisões para anunciar que o seu nado-morto sobrevivera. Pouco depois das 18 horas, na SIC, e sobretudo às 21 horas, na RTP1, no programa de Judite de Sousa, a “Grande Entrevista”, a ministra da educação, agora mais humilde e reconhecendo alguns dos erros que cometeu, anunciou recuos e cedências (a que de forma eufemística chamou normais processos de aprendizagem inerentes ao processo inédito). Tudo isto num esforço último de sobrevivência política de um modelo de avaliação que, nas últimas semanas, somou críticas e reparos em catadupa, oriundos de todos os quadrantes da sociedade, inclusivamente do seio da família socialista. A imagem dela mudou perante as câmaras da televisão. A rigidez e a crispação, o autoritarismo e o autismo, deram lugar à aparente dulcificação nos modos, à abertura e ao diálogo. No resto, no essencial, foi igual a si própria: intelectualmente débil, recorrendo excessivamente à retórica vazia de um discurso mecânico mas sem substância; politicamente inábil, evidenciando as fragilidades próprias de quem não nasceu para o cargo. Mais do que isso, porfiou, com argumentos fracos e sem consistência, na defesa do indefensável. Os responsáveis sindicais já perceberam que não só cederá mais, nas negociações que amanhã serão retomadas, como não está em condições de dizer não às exigências que lhe apresentem, desde que não seja a de deixar cair o sistema de avaliação. Pois essa é mesmo a tábua de salvação da ministra e do governo. Cabe-lhes agora a palavra decisiva. Hábeis negociadores e treinados em lutas de décadas, fortalecidos por uma classe que soube dar lições (não apenas nas salas de aula) de persistência e abnegação que o espírito da justiça confere, recai-lhes sobre os ombros uma enorme responsabilidade. É bom que não se esqueçam que a primeira responsabilidade é para com aqueles que lhe devolveram a alma – os professores.

quarta-feira, novembro 19, 2008

Já viram alguma coruja tentar ironizar?

Já viram alguma coruja tentar ironizar? Foi o que aconteceu ontem com a líder do maior partido da oposição, o PSD. A tentativa de abrilhantar, recorrendo a um efeito estilístico de alto quilate, o seu discurso traduziu-se num disparate de todo o tamanho. A mensagem saiu-lhe trôpega, incoerente e sobretudo dúbia. É certo que Manuela Ferreira Leite abomina a retórica. Tem-no dito e repetido inúmeras vezes, fazendo disso mesmo um dos pontos centrais da sua oposição ao governo, a quem acusa de estar mais preocupado com a propaganda política do que propriamente com política séria. Foi a sua imagem de seriedade, aliás, que lhe permitiu ganhar a liderança do seu partido, colmatando assim um défice de credibilidade que, desde os tempos de Santana Lopes (exceptuando o período de liderança de Marques Mendes) vinha corroendo o partido por dentro. Mas isso somente não chega para atrair a si a confiança dos putativos eleitores, sobretudo daqueles que se situam ao centro e, ainda que indecisos, são estruturalmente conservadores. É preciso mais, muito mais. Acima de tudo, a mensagem tem de passar até eles, e a retórica é, desde Corax até à modernidade, passando pelo incontornável Aristóteles, a arte da persuasão por excelência. É disso que vivem os incontáveis profissionais do marketing e da publicidade neste mundo mediático de hoje. À líder do PSD, não lhe fazia mal nenhum cuidar de aprender algumas das receitas práticas que os especialistas da oratória disponibilizam a preços variados, à semelhança dos antigos sofistas da época de Péricles. A maior tragédia que se abate hoje sobre o sistema político português prende-se fundamentalmente com a inépcia discursiva dos políticos da oposição. A mensagem, por qualquer motivo inexplicável, não chega ao eleitorado, ou chega-lhe apenas de um modo impróprio e de digestão difícil. É dessa ineficácia que aproveita a maioria socialista. José Sócrates sabe-o bem, e não descura esse aspecto que se constitui como o lubrificante indispensável ao funcionamento da máquina partidária, em particular, e da democracia contemporânea, em geral.

terça-feira, novembro 18, 2008

uma crítica da razão emperdernida

A ministra da educação continua igual a si própria, à semelhança do que sucede com o primeiro-ministro. Ser igual a si próprio é um traço de carácter e pode constituir uma virtude moral ou política, mas também um vício. Enquanto traço de carácter ser igual a si próprio tanto pode significar coerência entre princípios morais e a acção – consistência entre a teoria e a “praxis” – como a mais flagrante incoerência ética ou política, bastando para isso que, por detrás desta se oculte, ainda que mascarada por uma cosmética de ocasião, somente inflexibilidade e casmurrice. Para desmarcarar semelhantes traços só uma crítica da razão empedernida.
O primeiro-ministro é igual a si próprio, todos o reconhecemos. Muitos fazem dessa sua característica a idiossincrasia própria de um “leader”, tecendo-lhe encómios que confundem, no essencial, determinação e liderança com obstinação e despotismo. O que não se pode negar é que se trata da mesma pessoa que há uns tempos atrás foi apanhada a violar uma lei promulgada recentemente – a antitabágica, que tinha sido uma bandeira deste governo – e que agora, a propósito do eventual incumprimento do modelo de avaliação docente, venha reclamar que a lei é para cumprir.Quanto à ministra da educação, também ela igual a si própria, também ela obstinada e despótica, não se pode furtar de maneira alguma às mesmas críticas, salvaguardadas as devidas diferencias. Afirma ela que o modelo de avaliação de professores está a ser implementado em muitas escolas, o que pressupõe uma aceitação esmagadora do modelo de avaliação por parte dos professores. O que significa muitas, quando em terreiro estiveram 120 000 docentes a provar o contrário? Refere igualmente que este sistema de avaliação é um instrumento que promove o rigor na distinção entre os melhores e os piores, um instrumento rigoroso de promoção da meritocracia. Uma análise mesmo que superficial do documento não pode deixar de por a nu a arbitrariedade e a carga subjectiva que suportam, na sua implementação prática às diversas escolas e aos seus contextos educativos heterogéneos, as fichas de avaliação emanadas do ministério da educação. Rigor nunca foi sinónimo de arbitrariedade e subjectividade. Por último, no Estatuto da Carreira Docente, como sua bandeira, pontifica a seguinte frase: “a criação da categoria de professor titular tem como objectivo dotar as escolas de um corpo docente altamente qualificado, com mais experiência e formação…”. O que significa isto para qualquer pessoa dotada de bom senso? Precisamente que a alta qualificação dos professores titulares decorre dos longos anos desse “saber de experiências feito”, para citar o poeta maior das letras lusas. Mas não, estamos todos enganados. Para a tutela que implementou os mecanismos de selecção dos melhores, isto significou os últimos sete anos da carreira. A professora Elsa Cerqueira, que escreveu um texto onde evidencia estas incongruências, chama-lhes, com um rigor e exactidão de análise que caracteriza o bom profissional do ensino, “os paradoxos da política educativa”. Eu vou um pouco mais longe. Trata-se de um elementar traço de carácter que alia as características da incompetência intelectual e da cegueira ou surdez éticas. Isto num político paga-se caro, mais tarde ou mais cedo.

sábado, novembro 15, 2008

a desdita da ministra

A propósito da contestação dos professores e dos alunos de que a última semana tem sido fértil, a ministra da educação mostra-se determinada e inflexível, mas não disfarça a sua desdita. Afirma que esta avaliação dos professores e este estatuto do aluno não serão suspensos nem substituídos. Diz também que “é preciso um simplex para a avaliação dos professores” e que nem lhe passa pela cabeça a desobediência por parte das escolas, que a lei é para cumprir, etc, etc.
Quanto à primeira das afirmações, uma único comentário: eu não teria assim tanta certeza, sobretudo se tivermos em conta esta política do faz de conta que hoje afirma uma coisa e amanhã o seu contrário, e ainda tem a lata de reclamar para si própria a hegemonia da coerência. À segunda afirmação pergunto o seguinte: por que não se lembrou disso antes? Foram as manifestações de desagrado suficientes para lhe iluminar a mente? À última contraponho uma citação de Henry David Thoreau, em “A Desobediência Civil”, o inspirador de Martin Luter King, Mahatma Gandhi, entre outros: “Não é desejável cultivar o respeito às leis no mesmo nível do respeito aos direitos. A única obrigação que tenho direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo que julgo certo, Costuma dizer-se, e com toda a razão, que uma corporação não tem consciência; mas uma corporação de homens conscienciosos é uma corporação com consciência. A lei nunca fez homens sequer um pouco mais justos; e o respeito reverente pela lei tem levado até mesmo os bem-intencionados a agir quotidianamente como mensageiros da injustiça.”

mais oito mil, uma semana depois

Oito mil professores manifestam-se em frente à Assembleia da República contra as políticas educativas do governo socialista. Depois da manifestação dos cento e vinte mil, precisamente há uma semana, voltaram à rua para exigir a substituição de Maria de Lurdes Rodrigues e a suspensão imediata do modelo de avaliação dos docentes. Voltaram à rua: para dizer que a sua luta não se reduz a uma defesa (legítima, num sistema democrático) de interesses corporativos; para gritar em uníssono que estão fartos da desconsideração de que sistematicamente são alvo, por parte do executivo; para dizer que não os amedrontam ameaças veladas ou explícitas; para contestar a atitude autista e despótica do governo, inadmissível num regime político pluralista; para acusar o governo de pretender uma vez mais enganar os portugueses; para mostrar que não são uma cambada de carneiros às ordens de nenhum pastor; para demonstrar que em democracia as decisões se tomam pela força dos argumentos e não por argumentos de autoridade; para expressar a sua indignação e o seu veemente repúdio pelas insinuações maldosas e irresponsáveis que alguns membros do governo proferiram na última semana, a propósito das manifestações dos estudantes do ensino secundário. Voltaram à rua para simplesmente afirmar que a luta continua, que a luta é sem tréguas e com consequências políticas, nem que mais não seja a de constatar que a democracia portuguesa está viva. Esta foi uma vez mais uma lição de democracia.

quinta-feira, novembro 13, 2008

de palavras se tece este mundo e o outro

A língua portuguesa, que como toda a gente sabe é muito traiçoeira, proporciona ainda assim – abençoada seja! – inumeráveis momentos de gozo, de puro prazer. É por isso que a amo, por ser assim tão deliciosa. E porque vivemos tempos difíceis, tempos em que os prazeres, mesmo os mais comezinhos, custam-nos os olhos da cara, recorro aos prazeres da língua e deixo-me levar pelos sentidos múltiplos das expressões ditas e escritas e pela polissemia das palavras. Mergulho nas águas desse rio caudaloso em dias de primavera tardia e refresco-me recordando as palavras sábias do sábio Heraclito: “ninguém se banha nas águas do mesmo rio”. De palavras é feita a realidade, a nossa, a humana, por não termos outra. É com as palavras que descobrimos o brilho intenso do sol nos tórridos dias de Verão, as cores suaves ou berrantes das coisas naturais, dos artefactos e dos factos, próximos ou distantes; com elas encontramos o caminho que nos leva a casa ou nos perdemos; com as palavras dizemos o amor ou o ódio, nomeamos a esperança e maldizemos a dor e o desespero; são as palavras que nos dizem o que queremos e o que quereríamos nem lembrar; de palavras é feita a matéria densa ou etérea que a imaginação amplifica e disforma a seu bel-prazer; de palavras se tecem teorias, verdades e mentiras, poemas e prosas, erros ou utopias; as palavras permitem até dizer o seu limite – o inominável. De palavras se tece o mundo, este e os outro.

quarta-feira, novembro 12, 2008

os ovos e as omeletas de Fafe

Não há omeletas sem ovos. É um dito popular que toda a gente conhece, mesmo os mais novos. O que os adolescentes de Fafe quiseram ontem demonstrar, no seu jeito despreocupado e quiçá inconsequente, foi tão somente isso mesmo. E ninguém os pode acusar de incoerência. A ministra deslocava-se à Escola Secundária de Fafe para uma cerimónia (mais uma) de entrega de diplomas dos cursos “Novas oportunidades”. Os alunos, não vai de modas, atiraram uns poucos de ovos contra os carros da comitiva ministerial, pretendendo, com o seu gesto, mostrar que os ovos são um ingrediente necessário para se fazer omeletas, mesmo em se tratando de culinária educativa. O que eu não percebo, verdadeiramente, são essas manifestações de repúdio e de moralismo bafiento perante os gestos de duas centenas de garotos e de garotas. Ao menos há que se lhes dar o benefício da dúvida. Porventura excederam-se, na antecipação do carnaval. Talvez andem confusos com a tamanha turbulência e insatisfação que se vive hoje em dia nas escolas portuguesas. O primeiro-ministro teve apenas um comentário, com o seu ar crispado e olhar a chispar ódio: “lamentável”. Pois bem, sê-lo-á. Admito. Mas mais lamentável tem sido o comportamento do governo perante as reivindicações de professores e alunos em coisas que afectam profundamente o quotidiano das escolas. Mais sensata se revelou a ministra, ao manter o silêncio. Ela percebeu certamente que as atitudes dos estudantes de Fafe, por excessivas que fossem, estão de acordo com o que é próprio da sua faixa etária. Não os podendo acusar de inconsistência – ela que tinha comentado, há dias, as suas manifestações como naturais e próprias da sua idade, desvalorizando-as – calou-se. E fez muito bem. Ainda que apenas um poucochinho, subiu uns pontos na minha consideração.

domingo, novembro 09, 2008

crónica das reacções anunciadas

O Primeiro-Ministro e a ministra da educação reagiram de modo concertado à manifestação dos 120 mil professores e à sua exigência de pôr fim ao kafkiano modelo de avaliação de professores. Outra coisa não seria de esperar. Quem esperava outra reacção, da parte do executivo e da tutela, ou é ingénuo ou está de tal forma desesperado que não conseguia perceber o óbvio. Não quero dizer com isto que os dois políticos têm razão, longe disso. Nenhuma ou muito pouca razão lhes assiste neste diferendo. E se alguma tiveram (na consideração de que a progressão na carreira docente deveria passar obrigatoriamente por alguma espécie de prova de mérito), depressa deixaram de a ter, ao propor um modelo de avaliação assente na burocracia, na arbitrariedade, na injustiça relativa, que tudo pode promover menos o mérito. Aliás, as políticas educativas deste governo cedo evidenciaram um só rumo e uma só estratégia, a saber, reduzir custos e hostilizar a classe docente, diminuir a sua imagem junto da opinião pública ao grau zero de importância. Por isso – recordam-se – começaram por montar uma máquina de desinformação e de propaganda anti-professor. Eles eram uns “baldas” incorrigíveis, absentistas crónicos, os verdadeiros responsáveis pelo estado calamitoso das aprendizagens dos nossos estudantes. E ainda por cima formavam uma corporação ensimesmada, preocupada apenas com o seu bem-estar e orquestrada por sindicatos manipulados pelo PCP. Se a imagem do professor vinha sofrendo a erosão própria da democratização dos costumes e das ideias, sob o pressuposto do igualitarismo e do nivelamento que acompanha todo o processo histórico da modernidade, rapidamente se transformou no bode expiatório de todos os males educativos. Vilipendiada e ofendida, sofrendo ataques de todas as latitudes, e incapaz de responder eficazmente às acusações de que era alvo, porventura fruto de algum sentimento de má-consciência, a classe soçobrou animicamente e permitiu que lhe depusessem sobre a cerviz a canga da ignomínia. Aceitou a fractura mais fatal de que ainda hoje se lamenta amargamente: a divisão torpe e mesquinha de carreiras (professor e titular). A partir daí sentiu na garganta o fel e o veneno que pouco a pouco a asfixiam. Isso explica o abandono precoce de tantos professores nos últimos dois anos. Reagiram tarde, mas mais vale tarde que nunca. Em oito meses foram protagonistas de duas manifestações históricas. A última, a de ontem, teve dimensões epopeicas, e fez certamente tremer o adversário. Mas na política, há que acima de tudo salvar as aparências. Do meu ponto de vista, José Sócrates e Maria de Lurdes Rodrigues não poderiam ter reagido de outra forma. É a crónica das reacções anunciadas. Por várias razões. Primeira: não possuem uma cultura democrática suficiente para que tal fosse possível. Segunda: não seria o momento oportuno, em virtude da “realpolitik” que pauta a sua prática governativa. Terceira: aguarda que a tormenta passe e/ou que os professores joguem o jogo de "faz de conta" da avaliação, indo ao encontro daquilo que a ministra da educação preconiza. Entretanto, na semana que vem qualquer “fait divers” económico político ou outro, oportunamente passará para os tablóides mediáticos e relegará o acontecimento de ontem para o rol dos esquecidos. Pelo menos até à próxima, que pelo vistos, estará para breve.

sábado, novembro 08, 2008

a manifestação dos professores e os dilemas do governo

Exactamente oito meses depois de cem mil professores se terem manifestado, em Lisboa, contra as políticas educativas que o governo socialista tem tentado implementar, nomeadamente o modelo de avaliação docente, voltámos a assistir hoje a um protesto que mobilizou, para a capital, cerca de 80 por cento dos docentes deste país – à volta de cento e vinte mil, se fizermos fé na informação divulgada pelos sindicatos, pois a PSP não se quis (ou não pode) arriscar número, ao contrário do que sucedeu com a manifestação anterior, o que não pode deixar de causar estranheza.
Perante as imediatas reacções da ministra da educação, Maria de Lurdes Rodrigues, que se desmultiplicou em directos televisivos, ainda muito antes de a manifestação ter chegado ao seu termo, nenhuma outra conclusão se pode extrair que não seja esta: trata-se de uma guerra sem fim à vista. Duas forças que se medem num braço-de-ferro que tem como oponentes professores e governo. De um lado, a força de uma classe profissional que, ainda há bem pouco tempo, nem suspeitava que a tinha. Do outro lado, uma força política que se obstina em prosseguir com uma reforma condenada, a dado momento, ao fracasso. Que momento foi este? Precisamente o momento em que o governo, enquistado no seu autismo dogmático, se recusou ponderar outras razões e sopesar outros argumentos que não fossem os seus, perdendo aí a oportunidade de congregar as únicas forças capazes de levar a efeito a pretendida reforma educativa. Não tenhamos ilusões: em democracia, nenhuma reforma séria se concretiza hostilizando aqueles que se encarregarão de a pôr em prática.
Os discursos produzidos pela ministra da educação, nos directos televisivos em que desdobrou as suas intervenções, constituem um oportuno caso de estudo e um interessante objecto de análise, precisamente porque se trata de um agente político num cenário de democrático. Sabendo-se que o vigor e a legitimidade das democracias modernas se atesta pela capacidade de diálogo, pela disponibilidade para gerar e gerir consensos, pelo respeito pelas vozes discordantes e pela capacidade de convencer racionalmente os grupos e as minorias renitentes ou conflituantes, Maria de Lurdes Rodrigues demonstrou, uma vez mais, não ter perfil democrático. Recusa-se a ver o óbvio e a entender o evidente. Acumula erros atrás de erros. O seu discurso deixou de persuadir mesmo as mentes mais destituídas de massa crítica, tal o modo como vai repetindo e repisando a mesma ladainha. Os seus argumentos perderam, por isso, solidez e consistência. Afirmar que esta manifestação constitui uma forma de intimidação e de chantagem contra os professores e as escolas que aceitam o seu modelo de avaliação só pode ser entendido como desvario e desespero. Das muitas falácias em que incorre o seu discurso, destaco uma, vulgarmente designada “falso dilema”, e que se traduz na ideia de que existem apenas duas alternativas possíveis. Dizer que só existem dois modelos de avaliação, o antigo, que nada e a ninguém avaliava, e o actual, que é fruto de dois anos de estudo e de implementação, constitui um elementar erro de raciocínio só aceitável em pessoas de menoridade intelectual parente da idiotia ou da má-fé.
Tudo isto serviu às mil maravilhas aos sindicatos e outras forças políticas da oposição. Aqueles voltaram a ter uma oportunidade para capitalizar a força do seu rebanho que, nos últimos tempos parecia tresmalhado. Num ápice, souberam pedir às suas hostes a força e a legitimidade de que há tanto tempo careciam. O trabalho que o governo teve, ao longo de toda a sua legislatura, para desacreditar os sindicatos, caiu por terra. Os anúncios de novas contestações e formas de luta, o espectro de conflitualidade que pode ter a expressão de greves gerais, é uma prova disso. Os partidos da oposição, da esquerda à direita, foram a reboque e aprontam-se para capitalizar simpatias que, nas próximas legislativas, podem valer votos, e a perda da maioria absoluta que poucos já parecem desejar.
O governo parece estar agora encostado entre a espada e a parede, num dilema que pode bem provocar uma diminuição da sua credibilidade política, da sua autoridade democrática, e ditar o seu fim. Parafraseando o Primeiro-Ministro: “é a festa da democracia”. E que festa, meu Deus!

terça-feira, novembro 04, 2008

o rosto da crise

A crise financeira está definitivamente instalada no seio da sociedade portuguesa. O crescimento económico, segundo a Comissão europeia, vai ser negativo nos 3º e 4º trimestres do ano (respectivamente – 0,3 e – 0,1 por cento), o que nos transportará para um universo de recessão técnica. A mesma Comissão prevê um crescimento anual de 0,5 e 0,1 por cento para 2008 e 2009, longe das previsões do governo: 0,8 e 0,6 por cento. De Bruxelas vêm-nos também más notícias no que concerne ao défice para os próximos dois anos (acima dos três por cento) e ao desemprego que sem dúvida aumentará. Provavelmente acontecerá o mesmo à inflação e a muitos outros indicadores de riqueza (melhor diria, de pobreza).
Ainda há uns meses atrás o governo negava aquilo que já toda a gente sabia: a crise está aí. No entanto, as evidências da crise impuseram-se, transformando-se num facto indesmentível. Os nossos governantes, então, não tiveram outro remédio se não aceitar o óbvio. Depressa, porém, assessorados por especialistas do marketing político, transformaram a evidência da crise numa oportunidade não apenas para se descartar uma vez mais de responsabilidades – a culpa é sempre dos outros, outrora o PSD, agora a política financeira internacional – mas também para construírem um orçamento de estado à medida dos eleitores de 2009. A novidade da crise reside no facto de ela se ter tornado endémica. Os portugueses em geral mostram-se agora mal dispostos, irritadiços, pouco tolerantes, com os nervos à flor da pele, em suma, insuportáveis. O outro tornou-se, para cada um de nós, o fantasma do inferno. À medida que o aperto do cinto se vai tornando mais forte, as suas carantonhas vão ganhando os contornos e a expressão da fatalidade de outros tempos. E que fatalidade! É o rosto da crise.

segunda-feira, novembro 03, 2008

a moda do mundo bio

O mundo Bio está na moda. A crescente valorização do biológico constitui, hoje por hoje, um dos sinais dos tempos. Desde que o mistério da descodificação da estrutura do DNA do genoma humano foi resolvido, o mundo tornou-se mais bio. Apareceram saberes novos como resultados da articulação da biologia com outras áreas científicas (a bioinformática, a biotecnologia, etc.) que nos transportam para o reino da ficção científica de ontem ou para o mundo do amanhã. Os sonhos e as utopias do passado transformam-se, num ápice, na realidade do presente possível ou mesmo no “futurível” dos dias mais próximos. Nisto tudo, o que está em jogo é a definição do humano.
A moda do bio tem outras facetas menos distantes e mais comezinhas. A tal ponto assim é, que não é descabido falar de uma visão do mundo com contornos biológicos – uma “weltanschauung” bio. Se olharmos em redor, constatamos a marca bio por tudo quanto ocupa espaço e tem duração, mesmo que efémera. Efémera mas mágica. São os iogurtes que, para além dos mil e um sabores, se dizem bio, hambúrgueres bio, cereais bio, shampoos e detergentes bio, maquilhagem e roupas bio. Tudo isto e muito mais invadiu a nossa atmosfera quotidiana que de biológica pouco mais aparenta ter que o nome.A pujante moda bio é como o Toyota – veio para ficar. Em expansão parece estar também a agricultura biológica. Num repente, os consumidores com algum poder económico descobriram os benefícios da agricultura biológica. E vai daí, não só desataram a gastar os consumíveis de pretensa origem biológica como, para além disso, formaram eles próprios uma confraria com alguns contornos religiosos. Entre eles, já não é a razão que determina os usos e os costumes, os actos e os rituais, mas sobretudo a fé. Ora, nestas coisas, como em tudo o resto, a fé é adversária da sã razão. A fé é por norma maniqueísta, fundamentalista, e tudo vê a preto e branco. A falácia do falso dilema é uma constante no raciocínio dos fundamentalistas da (agri)cultura biológica: se não estás connosco, és contra nós. Ou natural ou artificial. A diabolização de tudo o que não aparenta ser biológico é uma consequência inevitável do entendimento estreito desses paladinos da vida imaculadamente bio – dos transgénicos ao papel higiénico, do “fast food” aos fármacos. Não pretendo dizer que não lhes assista razão alguma. O que não entendo é por que razão as cenouras que comprei numa loja de agricultura biológica, no último fim de semana, tem de ser apresentadas cheias de terra (dando a ilusão que foram acabadas de arrancar) e se encontravam expostas ao lado de umas couves portuguesas envolvidas num plástico, que lhes emprestavam um ar asséptico. Assim como não entendo a razão dos preços exorbitantes de muitos dos produtos, como por exemplo o dos queijos frescos (de que só tomei conhecimento na caixa quando estava prestes pagar). A não ser que a fé cega própria dos fundamentalismos tudo justifique, sobretudo a ausência de espírito crítico de muitos dos consumidores convertido à moda do mundo bio.
Os professores voltam à rua no próximo dia 8 de Novembro. Os sindicatos e os diversos movimentos autónomos de professores chegaram a acordo quanto à data da realização da marcha de protesto contra o modelo de avaliação imposto pela tutela. O primeiro-ministro e os responsáveis do ministério da educação dizem não entender a razão do protesto, e acusam os sindicatos de não respeitarem o memorando de entendimento assinado um mês e pico após a marcha dos cem mil que o ano passado impressionou o país. Os sindicatos, por seu turno, afirmam que foi o próprio ministério a não respeitar o memorando da discórdia. Neste braço de ferro entre governo e sindicatos percebe-se que a força dos braços oponentes vai fraquejando, corroída por jogos de interesses. A única força parece estar do lado dos professores. Apesar do desgaste causado por um modelo de avaliação que os penaliza – melhor diria, escraviza – e os subalterniza, que parece ter sido pensado contra eles e não a seu favor (pese embora os argumentos da tutela que só persuadem os desinformados e aqueles que sempre estiveram de má-fé, mas não convencem racionalmente ninguém), os professores, ao contrário do que amiúde se afirma, têm razões de sobra para se mostrarem insatisfeitos e para, uma vez mais, manifestarem na rua, em mais uma jornada de luta, as razões do seu descontentamento. Era bom que sindicatos e governo, de uma vez por todas, saibam capitalizar essa força da razão e a aproveitem para construir de vez um modelo de avaliação que sirva definitivamente as reformas urgentes que a escola merece e o país necessita, como pão para a boca.

quinta-feira, outubro 30, 2008

a educação, o insólito e o milagre

Os resultados dos exames nacionais do 9º ano e do ensino secundário já foram tornados públicos. Rankings à parte (não interessam nem ao menino Jesus), a análise comparativa dos resultados de 2007 e de 2008 é, só por si, interessante, dando lugar às mais díspares interpretações ou leituras desencontradas.
No ensino básico, os resultados a Matemática deste ano apontam para números verdadeiramente espantosos, se comparados aos números do ano passado. De duas centenas de escolas com média positiva, passou-se, em apenas doze meses, para mais de mil. Se lhe juntarmos o Português, a outra das disciplinas sujeitas a exame nacional, os resultados continuam a impressionar: os 66 por cento de classificações positivas transformaram-se em 97 por cento, isto considerando o mesmo hiato temporal.
O ensino secundário afina pelo mesmo diapasão. A matemática, tradicionalmente designada como o papão dos alunos, no ano corrente fez de pai natal em pleno Verão, tal foi a inflação de prendas distribuídas a torto e a direito por cábulas e marrões. Considerando um conjunto de disciplinas representativas, os resultados melhoraram de 62 para 87 por cento de aproveitamento. Insólito é a única palavra que me ocorre como comentário. Inúmeros professores preferem outra designação: facilitismo. Os responsáveis do ministério da educação são mais prolixos na interpretação, insistindo na tese do esforço e empenho quer professores quer de alunos. O problema é que esta tese dificilmente tem crédito, por falta de argumentos sólidos que a sustentem. Uma questão incontornável impõe-se: em matéria de educação, em que são necessárias décadas para que as reformas, boas ou más, produzam resultados, que significado terão os números divulgados?
Quase em simultâneo, o Conselho Nacional da Educação aconselha a abolição das reprovações para os alunos até aos 12 anos, argumentando que a medida contribuiria para aumentar a auto-estima dos estudantes, a diminuição dos traumas causados pelo insucesso e, consequentemente, para a melhoria das aprendizagens. Seguindo a mesma linha de raciocínio, por que razão se hão-se avaliar escolas e professores? Qual a consistência de tudo isto? Entretanto os professores manifestam o seu repúdio por um sistema de avaliação kafkiano, injusto e de efeitos dramaticamente previsíveis para a educação real. Assiste-se à debandada de muitos professores, preferindo a reforma antecipada penalizadora, em termos económicos, à expectativa de um quotidiano que se assemelha a um manicómio burocratizado e humanamente indigno. Os outros vão resistindo conforme podem, rezando porventura para que um acontecimento insólito, um milagre, lhes devolva a esperança e a alegria que o ensinar pressupõe.

quarta-feira, outubro 22, 2008

ministra sinistra

No passado dia 16 de Outubro saiu na Visão uma entrevista de Maria de Lurdes Rodrigues, ministra da educação, ao jornalista Paulo Chitas. O mínimo que se pode dizer, em comentário, é que se trata de mais do mesmo. O máximo, é que a senhora pronuncia um chorrilho de palavras ocas e de aleivosias indignas do lugar que ocupa.
Destaco apenas dois momentos da entrevista:
À pergunta do jornalista “acha normal que uma criança de 14 anos tenha este (36 horas lectivas semanais) horário escolar?”, Maria de Lurdes Rodrigues responde com outra pergunta “e o que é que retirava? (…) qual é a alternativa?” E justifica com a ideia da escola a tempo inteiro, etc., etc. Vale a pena ler na íntegra para percebermos o quanto as medidas tecnocráticas se sobrepõem à reflexão ponderada acerca da natureza das crianças e dos fins da educação.
Conheço um adolescente de 14 anos, que estuda na Escola Secundária de Palmela. Tem 36 horas lectivas semanais: aulas de Ciências da Natureza, Físico-Química, Educação Física, Educação Visual, Francês, Inglês, Geografia e História, Língua Portuguesa, Matemática, Expressão Plástica, Área de Projecto, Estudo Acompanhado e Formação Cívica e Introdução às Tecnologias de Informação e Comunicação. Tem aulas todos os dias das 8 às 18 horas, excepto durante duas manhãs. Acha normal que uma criança de 14 anos tenha este horário escolar?
E o que é que retirava?
Não sei. A senhora é que é a ministra da Educação.
Mas o que é que retirava? Retira o Inglês ou as línguas estrangeiras? A Matemática? O Português?
Para não iludirmos a pergunta, o que pretendo saber é se acha adequada esta carga horária para uma criança de 14 anos.
Mas qual é a alternativa? Quais são as práticas internacionais? É retirar? É encolher a escola? E o que é que resta aos alunos se se encolher a escola? Não é dramático que os alunos não tenham música ou desporto na escola, se os pais lhes puderem proporcionar essa formação.
É essa a prática internacional?
Portugal não faz coisas muito diferentes do que fazem os outros países. E, depois, a questão é sempre a mesma: o que é que se retira? Estão preparados estudos para se fazer uma revisão do ensino básico, à semelhança do ajustamento que se fez no secundário. No básico, nós não fizemos nenhuma alteração de fundo, digamos assim, mas há vários problemas com a reforma do básico, como a transição entre o 1.º e 2.º ciclos, que melhorámos muito, ao ter introduzido o Inglês, a Educação Física e a Música no 1.º ciclo. Já diversificámos o contacto dos alunos com os adultos e, portanto, a transição é menos brusca. Agora precisamos de fazer o contrário, que é reduzir o leque de... A reforma já previa que, por exemplo, a Matemática e as Ciências pudessem ser dadas por um único professor. Mas há outros problemas, que resultam da maneira como as coisas se concretizam a nível da escola, no quadro da sua autonomia.
Mantenho o essencial: estamos a falar de um horário de trabalho de adulto.
Ouça. Qual é a alternativa?
Brincar. Ir correr para a rua, com os amigos, ter outro género de actividades...
Esta história do tempo para brincar é uma história nova, que surge agora com a escola a tempo inteiro. É uma espécie de resposta à escola a tempo inteiro. O ministério criou as actividades do 1.º ciclo, que respondem a várias necessidades das famílias e das crianças, criou a escola a tempo inteiro e as crianças, de facto, estão lá a tempo inteiro. Ou melhor, a escola tem de funcionar a tempo inteiro, se as crianças lá estão ou não é uma opção das famílias. Mas, repare, como é que era no passado? No passado era uma escola pública reduzida a mínimos absolutamente intoleráveis, uma escola que funcionava das nove à uma. Em que se dava às crianças o mínimo. Mas o País pode dar mais, pode dar Inglês às crianças do 1.º ciclo, dar-lhes Educação Física, Música. O que acontecia às crianças que estavam nessa escola pública de manhã? À tarde tinham a privada, tinham os ATL. Mas eram só para as famílias que podiam pagar, não eram para todas as crianças.
Mas o grau de autonomia de uma criança do 1.º ciclo é diferente do de uma de 14 anos.
Havia uma escola a tempo inteiro para as crianças que podiam pagar. Nunca ouvi uma crítica ao tempo para brincar das crianças cujos pais andam com elas para a escola de música, para o ginásio, para a explicação, para aqui e para ali. São crianças também sobreocupadas, porque os pais procuram dar-lhes o melhor. Olhe para os colégios privados de referência. As crianças estão lá quantas horas? Têm lá a música? Têm. Têm lá o ballet? Têm. Têm lá o Inglês? Têm. Têm lá, às vezes, a segunda língua estrangeira? Têm. Têm tudo dentro da escola. E as crianças estão lá. Não brincam? Brincam. Diz-se, numa atitude romântica, que «não há tempo para as crianças brincarem». Acho que só mentes muito perversas é que podem pensar que o facto de estar na escola corresponde a uma jornada de trabalho. Em Portugal, a maior parte das mulheres trabalham. E precisam absolutamente que a escola seja um espaço seguro e qualificado, ao qual possam confiar as suas crianças.”
Outra pergunta, outra resposta do mesmo género, desta vez não se coibindo de lançar um ataque aos profissionais do ensino, ainda que de forma velada.
"Porque é que há uma corrida dos professores à reforma - 700 só no próximo mês?
O aumento da idade de reforma e a alteração do estatuto de carreira do docente acarretaram, sobretudo para os professores em fim de carreira, uma mudança. Alguns iam à escola quatro horas por semana. Foi preciso dizer aos professores que as outras horas de trabalho, que o País paga, são precisas nas escolas, que os alunos precisam delas. Imagine um professor que ia oito horas à escola e que, de repente, passa a estar lá 25! Pessoas que acumulavam nos colégios privados, deixaram de poder acumular. Isto é dramático? Do ponto de vista do sistema, não é dramático. Hoje, o País tem milhares de jovens diplomados a querer entrar no sistema de ensino."
Neste último excerto, a ministra faz uso do discurso com uma única intenção: manipular a opinião pública, envenená-la, pondo em causa, uma vez mais, a dignidade de uma classe que tinha por obrigação acarinhar. Faz precisamente o que sempre tem feito, desde que tomou posse do cargo que ainda ocupa, mas que em nada a dignifica, nem como ministra nem como pessoa.
Selamos claros. O que ela quer dizer é mais ou menos o seguinte: Os professores, grande parte deles, estavam acostumados a pouco ou nada fazer ao serviço do sistema, usando-o em proveito próprio (acumulações); obrigados, agora, a permanecer mais tempo na escola, abandonam o barco como ratos.
A falsidade do que diz não se detecta a olho nu. Mas basta pensar um poucochinho e não se deixar levar pela propaganda orquestrada, nos últimos anos, com o objectivo de denegrir a imagem dos professores, rotulando-os como um bando de malfeitores que se não querem moldar ao sistema de benfeitorias que pretende ser o ministério da educação actualmente.
Primeira falsidade: os professores em fim de carreira, habituados ao bem-bom que era passar quatro horas na escola, não querem mudar de vida e pedem a reforma. Num instante, passa das quatro para as oito horas (em que ficamos?), reforçando a ideia de que a dificuldade em aceitar a mudança se deve ao facto de, repentinamente, deixarem de poder servir-se das benesses do sistema antigo em benefício próprio.
Segunda falsidade: os professores passam agora 25 horas na sua escola. Vinte e cinco? A senhora ministra pretende lavar o cérebro a quem? Qual é o professor que passa hoje em dia menos de trinta horas semanais no seu estabelecimento de ensino? E as reuniões? E a reunite que começou aguda e se está a transformar em doença crónica? E a burocracia? E os papéis cujo preenchimento obrigatório (e não facultativo) constituem a lógica de um sistema irracional? E as horas que os professores passam em casa a preparar aulas, reuniões, a elaborar e corrigir fichas, testes (diagnósticos, formativos, sumativos, e o mais que imaginar se possa), a magicar estratégias de ensino, a congeminar soluções mágicas para desbloquear carências de motivações profundas (nem que para tal se tenha de mascarar de psicanalista ou padre), a fazer de mãe, pai, padrasto ou avó, num acumular de especializações que ninguém, com o mais pequeno bom senso, considera possível. Isso convém-lhe omitir?
E depois vem a tirada retórica – “acha isto dramático?” Sim, senhora ministra. E o drama está a alastrar de tal modo que não há quem possa aguentar. Por isso pedem a reforma. E muitos mais pediriam se em condições de o fazer estivessem.
Termina a ministra, a quem já chamam sinistra, com uma ameaça: “Hoje, o País tem milhares de jovens diplomados a querer entrar no sistema de ensino”. Por quanto tempo? A tudo isto se chama manipular. Ora, manipular não é sinónimo de convencer. Ao primeiro pertence o discurso que visa mover as pessoas pela emoção, numa manifestação de degeneração ética do emissor e do receptor. Só ao segundo pertence o discurso que visa a elevação da inteligência de quem escuta ou lê, contribuindo para a construção ética de qualquer pessoa.

quinta-feira, outubro 16, 2008

Magalhães do nosso descontentamento

O Magalhães está a dar que falar. Quinhentos anos depois da viagem de circum-navegação, ei-lo que regressa às bocas do mundo. Como o seu homónimo que fez furor pelas auto-estradas oceânicas fora, capitaneando as suas “caravelas quinhentistas”, este – que também garantem ser 100% português – percorre as auto-estradas da informação e é já um dos assuntos de eleição cá no burgo. Nem sempre pelas melhores razões. É a má-língua viperina dos portugueses a destilar o seu mais puro veneno. A coisa começou ainda Agosto não tinha findado. José Sócrates anunciava o Magalhães como se da oitava maravilha se tratasse. Era o sinal mais evidente de que o Portugal da era socrática se tornara um país ultramoderno, modernista, cavalgando a crista da onda em matéria de criação informática. No início de Setembro, membros do governo e do ministério da educação somaram juntos milhares e milhares de quilómetros para distribuir às nossas criancinhas a pérola mais apetecida das tecnologias da informação e da comunicação. E anunciaram que no presente ano lectivo tencionavam entregar quinhentos mil computadores aos alunos a preços que variariam entre o zero e os 50 euros. Entretanto, Hugo Chavez, num dos seus encontros com o nosso primeiro-ministro, comprometeu-se a comprar Magalhães aos milhões. Tudo corria sobre rodas. O Magalhães vivia num mar de rosas. Depois veio o Pacheco Pereira e tudo azedou. Nas suas cinquenta mil palavras escritas diariamente, uma vinte mil soavam a Magalhães. E não era para enaltecer a máquina. Em seguida, o Magalhães apareceu nas rábulas humorísticas dos Contemporâneos e dos Gatos Fedorentos. O gozo foi danado e o povo riu a bandeiras despregadas.
As últimas notícias das aventuras do Magalhães são hilariantes. Não certamente para os incondicionais amantes do humor british, clube de que fazem parte certamente os inenarráveis responsáveis do governo e do ministério da educação. A história conta-se em duas palavras. No You tube apareceram uns vídeos que, supostamente, terão resultado de trabalhos inspirados em acções de formação que alguns professores se viram forçados a frequentar – parece que foram convocados e não convidados. Os referidos vídeos podem ser vistos no You Tube (se entretanto não foram retirados) nas seguintes moradas: http://www.youtube.com/watch?v=9QOtoUeJyRk; http://www.youtube.com/watch?v=98hxq50Bq3o.
A coisa ainda vai dar para o torto.

sexta-feira, outubro 10, 2008

Oportunismo político pune os gays

Hoje aconteceu mais um episódio risível no Parlamento. Em votação estiveram os projectos de lei apresentados pelos Verdes e pelo Bloco de Esquerda sobre o casamento entre homossexuais. Ambos foram chumbados pelos votos contra da maioria dos deputados PS, PSD e pela totalidade dos votos dos deputados do CDS-PP. A votação não surpreende por diversas razões. Vale a pena avaliá-las.Das bancadas parlamentares do PSD e do CDS-PP não se esperava outra coisa, pois faz parte do código genético de ambos os partidos posições conservadoras e retrógradas em matérias que dizem respeito aos direitos e liberdades dos cidadãos, sobretudo quando estão implicados comportamentos que a moral tradicional apelida muitas vezes de bestial e contranatura. Da bancada do PS também já se esperava o resultado, tendo em conta a imposição da disciplina de voto apenas contrariada pelos deputados Pedro Nuno Santos (autorizado a quebrar a imposição) e Manuel Alegre. As previsíveis repercussões eleitoralistas estiveram certamente na origem da votação contra os projectos de lei por parte do PS. Será compreensível se levarmos linha de linha de conta a ainda expectável maioria absoluta socialista nas próximas legislativas. O que não se compreende são as declarações de voto a favor que alguns deputados do PS apresentaram em seu nome, assim como a mesma declaração apresentada pela bancada socialista. As razões apresentadas são ridículas e oportunistas. Ao se afirmarem a favor dos direitos e liberdades dos homossexuais (do seu casamento) e contra a oportunidade da alteração legal, os deputados do PS demonstram que a única lógica que os rege é a lógica do oportunismo político, para além de manifestarem uma inconsistência ética que afronta qualquer sentido da democracia. Punir uma minoria desta maneira, cerceá-la de direitos de cidadania e de liberdade de acção, apresentando argumentos desta natureza, diz bem dos perigos a que uma democracia está exposta quando a vontade de poder se sobrepõe a princípios e regras do jogo democrático saudável. Mesmo minoritários, desejo que os cidadãos portugueses – homossexuais ou não – não se esqueçam, nas próximas legislativas, da afronta que o PS fez à democracia, uma vez mais. Talvez o PS risque de vez a palavra extemporâneo do seu dicionário.

quinta-feira, outubro 09, 2008

a lógicas das declarações do governo

José Sócrates, na sequência de Teixeira dos Santos, garante-nos que as nossas poupanças – o seu depósito bancário – estão asseguradas. Em tempos de incerteza no que ao sistema económico capitalista diz respeito, estas afirmações parecem-me no mínimo duvidosas. E como tal, dão que pensar. O capitalismo, se não está em agonia, parece um “adiado cadáver que procria”, como disse o poeta. Procria acontecimentos em cadeia: as bolsas que caem à razão inversa do quadrado da confiança, a insolvência dos mercados e das instituições financeiras, a falta de liquidez da banca e das pequenas e médias empresas, despedimentos e precariedade laboral, o aumento do crédito mal parado, a subida da inflação e a contenção salarial, o depauperamento da classe média, etc., etc.
No entanto, a mensagem do chefe do executivo como eco da afirmação do ministro das finanças tem, no mínimo, duas leituras possíveis que formam ambas uma proposição disjunta exclusiva: ou "o estado assegura na íntegra todas as poupanças, qualquer que seja o seu montante" ou "o governo garante aquilo que não existe para os portugueses, justamente as poupanças". Ora, em boa lógica, este tipo de disjunção só é verdadeira quando só uma delas é verdadeira. Eu aposto que a primeira é falsa.

domingo, setembro 28, 2008

crónicas caninas I

O meu cão já não é um cachorro. É agora um ser adulto da espécie canina. Está prestes a fazer dois anos e, inevitavelmente, perdeu alguma da graça que tinha. Graça que tem tudo o que é pequenino, imaturo e desinquieto. O que perdeu em vivacidade e espontaneidade, ganhou em continência (física e psicológica). Nas perdas e ganhos do crescimento, nessa passagem quase iniciática de uma ordem do ser para outra, muitas transformações se foram operando: deixou de fazer as suas necessidades em casa (um drama mais humano que canino), deixou de olhar para os pequenos rolos de merda que acabava de depositar no chão da casa como apetitosos croquetes de carne, perdeu a mania de roer tudo o que se encontrasse à distância de um abocanhar e de carpinteirar os móveis da sala e do hall, amenizou a ânsia de perder os donos quando estes se ausentavam de casa mesmo por breves instantes; ganhou estabilidade emocional nas ausências quotidianas dos membros mais velhos da matilha (nós), ganhou algum tino na sua exigência de brincar a toda a hora, dorme mais.
As mudanças mais significativas, porém, ocorreram nos momentos imediatamente posteriores às suas estadias forçadas em canis. Por cada temporada passada nos seus campos de férias, mesmo quando não excedia dois a três dias, levava algum tempo até que recuperava a confiança. Por uma ocasião perdeu mesmo a voz: deixou de vocalizar alguns sons característicos que, por antropomorfização, interpretávamos como próximos do linguarejar humano. Hoje em dia é um cão diferente. Mas continua feliz, sobretudo quando passa temporadas numa aldeia do norte. Aí só tem por limites os territórios marcados por outros cães que ele fareja à distância, o cajado do pastor que não lhe permite aproximar-se do rebanho que pastoreia nos prados verdes, e a noite que ele sabe que é o momento de regressar ao seio da matilha. Por vezes depara-se com o inesperado de um cão hirsuto que, inopinadamente, lhe rasga o casado de pêlo preto que nunca despe. Tudo o resto é liberdade à solta. Liberdade para ladrar aos forasteiros que se avizinham da casa onde a matilha se acolhe. Liberdade para trotar pelos lameiros, saltar muros, atravessar milheirais, brincar horas a fio com outros cães que já aprenderam a vir rondar os muros do jardim como quem o vem chamar para uma ronda de circunstância. Afeiçoou-se à canzoada que o distingue como um dos seus.
Entre as demais transformações que o meu cão sofreu, a mais profunda é a de consciência (não alinho na proverbial distinção que separa os humanos racionais dos bichos irracionais). O meu cão é um cão com consciência de classe – ou da falta dela, rafeiro como é. Detesta cães classificados com pedigree: dálmatas, caniches, cockers, etc. Até parece conhecer a cartilha marxista de uma ponta à outra quando se depara com qualquer cão a passear maneirismos de nobreza de sangue ou burguesia de espírito. Quando assim acontece, o meu cão rafeiro tem a mania que é doberman ou roteweiller. Eriça a pelagem do cachaço, arreganha os dentes, espeta o rabo, e o todo o seu corpo se inteiriça e ganha tamanho, como se num repente a sua memória ancestral de lobo predatório tomasse conta de todas as células do seu ser. Nesses momentos, torna-se um problema bicudo segurá-lo, ao ponto do couro de que é feita a trela parecer que se vai desfazer em tiras. Apesar disso, continua a ser um cão lindo. O mais lindo cão do mundo.

segunda-feira, setembro 22, 2008

as explicações e a política

Cerca de 120 euros por mês é o preço, em média, que as famílias portuguesas das classes média e média alta (e as outras?) gastam com os seus filhos em explicações. Aproximadamente 1400 euros por ano e por filho. E tudo isto em virtude da legítima pretensão de garantir um futuro melhor à sua prole. Os números apresentados pelos investigadores da Universidade de Aveiro, por si só, dão que pensar. Não está em causa se as famílias, mesmo as de maiores rendimentos, gastam muito ou não em tempos de evidente crise económica. Também não se trata de especular acerca dos benefícios ou malefícios que as explicações acarretam à autonomia intelectual dos estudantes. A questão é, antes de tudo, política, e como tal deve ser formulada. Não estaremos perante uma privatização ou semi-privatização camuflada do ensino público? Se a resposta é afirmativa, impõe-se saber se, para garantir a equidade deste sistema de educação misto, não caberá ao estado distribuir pelas restantes famílias – as carenciadas – cheques-explicações no valor mensal médio de 120 euros. Ou alguém acredita que podem quaisquer outras medidas governativas acabar com os centros explicativos ou repor um mínimo de condições igualitárias de oportunidades de ensino?

domingo, setembro 21, 2008

as explicações e a prostituição do ensino

Uma semana depois de alguns membros do governo se terem passeado pelas escolas deste país moribundo a distribuir prémios de mérito para os melhores alunos de cada escola e a enaltecer as virtudes da sua política educativa – numa manifestação clara de marketing político –, Maria de Lurdes Rodrigues referiu-se hoje ao estudo feito por investigadores da Universidade de Aveiro sobre o fenómeno das explicações que as famílias portuguesas pagam, para assegurar o bom desempenho escolar dos seus filhos, como uma realidade própria de um país do terceiro mundo. Lamenta-se a ministra da educação que tudo isto acontece apesar de ter criado as aulas de substituição e as aulas de apoio assistido. E acrescenta que o país não se pode conformar com os factos e que se tem de exigir às escolas que cumpram o seu papel na íntegra, para assim acabarmos definitivamente com a situação de uma escola bifronte: uma escola pública de manhã e outra privada de tarde. Uma vez mais, a senhora ministra falou com a retórica do coração, o que a médio e longo prazo se traduzirá num erro político.
O estudo revela aspectos interessantes, que merecem mais do que o simples lamento ministerial e uma má disfarçada atribuição de responsabilidades às escolas e aos professores.
Em primeiro lugar, são as famílias com maior poder económico – classes média e alta – que recorrem às explicações, o que diz muito acerca do índice de democraticidade do nosso sistema de ensino, em que a igualdade de oportunidades figura apenas como letra morta da lei. Em segundo lugar, o fenómeno alterou-se em termos de mercado: se no passado era protagonizado pelo explicador doméstico, por norma um professor ou uma professora de carreira, que usava os seus tempos livres (muitos) para aumentar a renda mensal; agora predominam os centros de estudo, cuja natureza comercial é um inequívoco sinal dos tempos, estando de acordo com as leis do mercado neoliberal. Em terceiro lugar, são os professores recém-formados, que por norma ficaram de fora das vagas abertas em concurso, que recorrem aos centros para sobreviverem e potenciarem a sua carreira futura.O fenómeno das explicações, nos moldes actuais, está em expansão, garantem os investigadores, isto à revelia dos propósitos da ministra da educação que, há dois ou três anos, aumentava a carga horária dos professores para os impedir de acumular, entre outras coisas. Curiosamente, são os professores excedentários, em início de carreira, que alimentam o comércio das explicações, esses mesmos que se vêem empurrados para uma carreira paralela no privado, para uma prostituição forçada, ajudando desse modo a suprir as necessidades que o ensino público não é capaz de satisfazer. Enquanto isso, os professores, nas escolas, ocupam cada vez mais o seu tempo com questões e processos que nada têm que ver com o ensino e a pedagogia, carregando um fardo burocrático que os impede de se dedicarem de corpo e alma aos alunos. E assim anda o ensino cada vez mais prostituído.

quinta-feira, setembro 04, 2008

apontamento breve

Na ressaca do retorno aos trabalhos e aos dias do quotidiano, posso dizer que as passadas não foram as melhores férias da minha vida. Desconfio mesmo que cheguei a uma idade em que afirmar o contrário já está para lá das minhas possibilidades. Não, não se trata de pessimismo ou algum traço de carácter a puxar à melancolia. Acontece apenas que uma dose mínima de lucidez me força a olhar com realismo para a vida. Certamente vivi já mais tempo do que me resta viver. E a parte restante, convenhamos, não será a mais fácil. Se tudo correr como é normal que corra, o pior ainda está para vir. Não vale a pena, porém, desassossegar demasiado. O melhor é adoptar o epicurismo decadente de um Ricardo Reis que defende: “Melhor vida é a vida / Que dura sem medir-se.” O qual culmina numa ética da abdicação que sentencia: “Senta-te ao sol. Adbica / E sê rei de ti próprio.”

terça-feira, julho 29, 2008

quase de volta às crónicas caninas

Volto às crónicas caninas. A razão é simples: não me apetece escrever sobre o mundo abaixo de cão em que se transformou a vida dos portugueses nos últimos meses. Sabe-se agora que que as previsões de crescimento anunciadas pelo governo, no princípio do ano, estão não passam de uma miragem, caindo vertiginosamente à razão inversa das subidas de temperatura deste Verão que promete ser tórrido. O que também sobe, à semelança do balão da canção da Manuela Bravo è a inflação. Os 2,1 % prognosticados pelo governo não passam de um efeito da miopia crescente de que sofrem estes nossos governantes. O que não parou de subir foram as notas dos exames – sobretudo as de matemática. De um ano para o outro, os nossos estudantes do básico e do secundário transformaram-se em esmerados seguidores de Pitágoras, o que dentro de uma dezena de anos nos vai deixar felicíssimos. Entretanto o governo passou a admitir a crise, mas assegura que tem causas mais externas que internas, o que para o cidadão comum deve significar muito na hora de pagar as suas contas. Anunciou também mais uma medida orwelliana, consubstanciada na ideia de intrudizir um chip obrigatório (pago evidentemente pelo utilizador) nas matrículas dos automóveis. O meu desejo é que o governo vá de férias, gozar o calor e a praia e me deixe descançado com a minha crónica canina. Em tempo de crise e de carestia de vida resolvi escrever acerca da minha última descoberta – o preço exorbitante dos canis. É que também eu vou de férias e durante uma semana sou obrigado ( o que muito me custa) a deixar o meu cão (agora já um homem, perdão, um cão e não um cachorro) num canil. Não é a primeira vez (será a quarta) e sempre paguei o montante que me pediram sem deitar contas à vida. Até que me pus a pensar e ... caramba! Trata-se de um autêntico roubo. Passo a explicar porquê. A quantia que me pedem pela diária é de 10 a 12 euros, com pensão completa mas sem duche (se o desejar pagarei pelo serviço). O espaço ocupado pelo meu cão não terá mais de quatro metros quadrados, despedido que quaisquer comodidades. Para se deitar tem apenas o mosaico de que é forrado o chão do seu compartimento. Ora, se compararmos o preço pedido pelo dono do canil com preço de uma diária num hotel de três estrelas (sejamos benevolentes) da períferia, o que constatamos é que mesmo a vida de cão está pelas horas da morte.

quinta-feira, julho 03, 2008

A crise da modernidade: tradição, autoridade e educação



A tradição já não é o que era

“Na medida em que o passado se transmite sob a forma de tradição, possui autoridade; na medida em que a autoridade se apresenta historicamente, converte-se em tradição. Walter Benjamin sabia que a ruptura com a tradição e a perda da autoridade que se verificaram no seu tempo eram irreparáveis, e concluiu daí que era preciso descobrir novas formas de relações com o passado.” Hannah Arendt, Homens em Tempos Sombrios

1. Tradição e Modernidade

O conceito tradição é tematizado por Hannah Arendt em muitos dos seus escritos. Podemos afirmar que ele percorre a sua obra, contribuíndo para a originalidade do seu pensamento político, bem patente na importância que a filósofa atribui ao povo romano. A articulação dos conceitos tradição, religião e autoridade, constitutivos da, “trindade romana”, a par da tematização da crise da modernidade, que é antes de mais uma crise que se increve na esfera política, conferem consistência à constatação reiterada do rompimento do fio da tradição.

A tradição do pensamento político nasce com Platão e tem o seu ocaso no coração da modernidade, quando a experiência do político perdeu o seu significado, como reflexo da cisão radical entre pensamento e acção.

“A nossa tradição de pensamento político teve início quando Platão descobriu que afastar-se dos assuntos humanos é algo de inerente à experiência filosófica; e terminou quando desta experiência já nada mais restava senão a oposição entre agir e pensar, oposição essa que, privando de realidade o pensamento e de sentido a acção, fez com que ambos se tornassem desprovidos de significado.” (E.P.F., p.39)

A noção de ruptura, inerente à modernidade, pressupõe a existência de um antes e um depois. O que caracteriza esse antes da modernidade? Trata-se do mundo pré-moderno em que a tradição servia de fundamento à comunidade política, garantindo a sua existência.

A crise da modernidade é reveladora um tipo de relação ao mundo tradicional, que deixou de existir. A análise da crise da educação revela que os valores da “trindade romana – a religião, a autoridade e a tradição” – foram progressivamente postos em dúvida, na idade moderna, tendo depois sido erradicados no mundo actual. Doravante, o sentido originário dessa relação ao mundo foi prevertido, assim como a existência política.

“O vigor desta trindade residia na força vinculadora de um começo investido de autoridade, ao qual os homens estavam unidos por laços religiosos através da tradição. A trindade romana não só sobreviveu às transformações da república num império, mas penetrou também nos locais onde a pax romana edificou sobre as bases romanas a civilização ocidental” (E.P.F., p.138)

A crise referida por Hannah Arendt é um fenómeno que resulta de um longo e continuado processo histórico, iniciado na idade moderna, com o desaparecimento do mundo romano e cristão, e que culminou no mundo moderno. Se naquela ocorre uma fractura entre o passado e o futuro, neste o fenómeno radicaliza-se ao ponto de se transformar numa ruptura sem precedentes, numa brecha por onde escoaram o senso comum, o mundo comum e as categorias políticas, e de onde emergiram, entre outros, o isolamento, a alienação do mundo, a superficialidade, a sociedade de massas, assim como a experiência totalitária do nazismo e do estalinismo.

A articulação entre tradição, senso comum e mundo comum é outra constante no pensamento de Hannah Arendt. Encontra-se no texto A crise na educação como uma das suas causas maiores, sobretudo se tivermos em conta que essa crise é manifestação de uma crise mais profunda, a dos valores gerais da modernidade que coexiste com o “eclipse do mundo comum”. Num texto intitulado A tradição do pensamento político, Arendt expõe essa articulação de modo claro:

“Historicamente, o senso comum é romano tanto de origem como em termos de tradição. Não é que os gregos e os judeus não tivessem senso comum, mas só os romanos o desenvolveram a ponto de o tornarem o critério superior na gestão dos assuntos públicos e políticos. Com os romanos, recordar o passado passou a ser uma questão de tradição, e foi no sentido da tradição que o desenvolvimento do senso comum encontrou a sua expressão politicamente mais importante. Uma vez que o senso comum se liga à tradição e é por ela alimentado, quando os modelos tradicionais deixam de fazer sentido e deixam de funcionar como regras gerais que permitem subsumir todos ou a maior parte dos casos particulares, é inevitavel que o senso comum tenda a atrofiar-se. (...) Este método ‘prático’ de remomoração do senso comum não requeria qualquer esforço, mas recebíamo-lo, num mundo comum, como herança partilhada. Por conseguinte, a sua atrofia provocou imediatamente uma atrofia também da dimensão do passado e desencadeou o movimento arrastado e irresistível de esvaziamento que estende um véu de sem-sentido sobre todas as esferas da vida moderna.” (P.P., pp. 40-41)

A ruptura definitiva com a tradição, que ocorreu apenas no séc. XX e que marca a transição da idade moderna para o mundo moderno, é pois o culminar de um processo de radicalização da dúvida, iniciada por Descartes no dealbar da modernidade.

Inserindo-se ainda no seio da tradição, Descartes é o protagonista (em parte involuntário) mais representativo de um movimento cada vez mais abrangente de suspeita em relação às verdades metafísicas que no passado eram tomadas como evidentes, quer no plano filosófico quer no plano religioso da revelação divina. Deste movimento emerge a ciência moderna que, paulatinamente, vai assumindo o lugar outrora ocupado pelos sistemas metafísicos de representação do mundo, sem contudo assumir o seu papel de assegurar a consistência ontológica da realidade.

“Desde o surgimento das ciências, cujo espírito se traduz na filosofia cartesiana da dúvida e da desconfiança, o quadro conceptual da tradição da tradição deixou de estar seguro. (...) Uma vez desaparecida a confiança em que a realidade se nos mostrava tal como é, o conceito de verdade como revelação tornou-se duvidoso, e com ele a fé inquestionável num Deus objecto de revelação. O sentido do conceito de ‘teoria’ alterou-se: já não significava um sistema de verdades racionalmente articuladas (...), passou antes a significar a teoria científica moderna, ou seja, uma hipótese de trabalho passível de ser alterada consoante os resultados que produz e cuja validade depende não daquilo que ‘revela’ mas do facto de ‘funcionar’.” (E.P.F. p.53)

Os protagonistas que por último aceleraram o referido processo de transição e de ruptura, foram, segundo Hannah Arendt: Kierkegaard, Marx e Nietzsche. Estes filósofos da suspeita “situam-se no final da tradição, justamente antes de se dar a ruptura” (E.P.F., p.41). Cada um a seu modo vai lançar o seu repto à tradição, contribuindo para a reviravolta decisiva e radical que caracteriza a modernidade.

“Kierkegaard, Marx e Nietzsche são para nós como balizas indicadoras de um passado que perdeu a sua autoridade. Foram eles os primeiros a atreverem-se a pensar sem a orientação de nenhuma autoridade. (...) Kierkegaard, ao saltar da dúvida para a fé, trouxe a dúvida para o interior da religião. (...) Marx trouxe as teorias da dialéctica para o campo da acção . (...) O platonismo invertido de Nietzsche (...) terminou naquilo a que hoje chamamos o niilismo.” (E.P.F., pp.42-44)

2. O hiato entre o passado e o futuro

No prefácio do Entre o Passado e o Futuro, intitulado “O hiato entre o passado e o futuro” (1967), encontramos uma citação do poeta René Char – “a nossa herança não foi precedida por nenhum testamento” (p. 17) – e outra de Tocqueville – “Desde que o passado deixou de projectar a sua luz sobre o futuro, a mente humana vagueia nas trevas” (p. 20). Em ambas podemos detectar, por um lado, a noção de abismo, inscrita no coração da modernidade, e por outro lado, a urgência de uma interrogação sobre o sentido dessa ausência de testamento.

“Seja como for, é ao facto de o tesouro perdido não ter nome que o poeta alude quando afirma que a nossa herança não foi precedida de nenhum testamento. O testamento, que indica ao herdeiro aquilo que legitimamente lhe pertence, transmite ao futuro os bens do passado. Sem testamento ou, para aclarar a metáfora, sem a tradição – que escolhe e nomeia, que transmite e preserva, que indica onde se encontram os tesouros e qual o seu valor – é como se não existisse continuidade no tempo e como se, por conseguinte, não houvesse nem passado nem futuro, em termos humanos, mas apenas a perpétua mudança do mundo e o ciclo biológico dos seres vivos.” (E.P.F. p.19)

O que se perdeu, na era moderna, foi o próprio espaço onde a liberdade pública se podia manifestar, o espaço que “se constitui com o agir conjunto”, porque a razão de ser da política “é a liberdade e o seu campo de experiência é a acção”.

Quando o fio da tradição se rompeu, de modo absoluto e radical, no século XX, os seres humanos confrontaram-se com situações inéditas como a desolação extrema, a atomização social e o “eclipse do mundo comum”. Qual é o significado dessa perda da tradição? Como pensar numa situação inédita, na brecha entre passado e futuro, provocada pelo desaparecimento da tradição? Como pensar num mundo em que se consumou “o divórcio existente entre pensamento e realidade, que se tornou opaca à luz do pensamento e que este, já não ligado ao acontecimento (...), está sujeito (...) a converter-se em algo totalmente esvaziado de significado”?) (E.P.F. p. 20).

“O problema, contudo, reside no facto de não parecermos estar nem equipados nem preparados para esta actividade de pensar, de nos estabelecermos nesse hiato entre passado e futuro. Durante períodos muito longos da nossa história, na verdade, durante os milhares de anos que se seguiram à fundação de Roma e que foram determinados pelos conceitos romanos, esse hiato foi vencido pela ponte daquilo que, graças aos romanos, denominámos tradição. Que esta tradição se foi desgastando mais e mais à medida que avançámos pela Idade moderna não é segredo para ninguém. Quando o fio da tradição por fim se rompeu, o hiato entre o passado e o futuro deixou de ser uma condição própria apenas da actividade de pensar e uma experiência restrita àqueles poucos que faziam do pensamento a sua actividade fundamental, para se converter numa realidade tangível e numa fonte de perplexidade comum: ou seja, tornou-se um facto de relevância política.” (E.P.F. p.27)

O que foi a autoridade?

Na sua obra Entre o Passado e o Futuro, educação e autoridade são conceitos fundamentais. Este último está penhe de equivocidade.

Pode identificar-se com o conceito de poder ou então ser usado para definir uma relação hierárquica legítima, em nenhum dos casos se trata de uma relação de dominação. No seu sentido mais autêntico, a autoridade opõe-se ao autoritarismo político.

Existe poder sem autoridade, mas o inverso não é possível. O poder, sendo a condição necessária da autoridade, não é todavia a condição suficiente. Para que o poder se transforme em autoridade, é preciso que aquele sofra uma modificação.

“Assim o recurso à autoridade intervém quando um poder, por razões diversas, tem necessidade, a fim de cumprir eficazmente a função que é a sua e de obter a obediência daqueles sobre quem se exerce, de um acrescento de justificação ou de fundamentação: quando precisa, poderíamos dizer, de um ‘superpoder’ que já não pode consistir simplesmente em juntar-lhe mais poder, mas sim em modificar a natureza ou o próprio teor desse poder. (...)
Mais precisamente, graças ao superpoder que é o único a poder conferir autoridade, a submissão que o poder conseguia por si mesmo obter daqueles que ele comandava que agissem de tal ou tal maneira transforma-se numa obediência propriamente dita, numa obediência voluntária que permite à dominação não usar violância e ao comando ser incontestado. Um poder a que se acrescenta uma dimensão de autoridade é um poder que não se discute.”
Alain Renaut, O Fim da autoridade, Instituto Piaget, p.34

É no artigo O que é a autoridade? (1955), redigido antes de A crise na educação (1958), que Hannah Arendt constrói o conceito de autoridade. O seu modus operandi é sobretudo negativo, isto é, ao distinguir a autoridade de outras formas de relações humanas que com ela podem ser confundidas, vai-a definindo por aquilo que ela não é, pondo a nu o facto da autoridade já não existir. É este o modo que Hannah Arendt adopta em A crise na educação.
Apesar do artigo de Hannah Arendt se intitular O que é a autoridade?, a questão mais adequada seria “O que foi a autoridade?”, em virtude do conceito, outrora fundamental para a teoria política, ter desaparecido do mundo moderno.

“Que experiências políticas que corresponderam ao conceito de autoridade e qual a sua origem? Qual é a natureza de um mundo público político constituído pela autoridade? Será verdade que a afirmação de Platão e Aristóteles, de que qualquer comunidade bem ordenada é constituída por governantes e governados, foi sempre tida por válida no período anterior à época moderna?” (E.P.F. pp. 117-118).

1. Os Gregos

Arendt defende que a autoridade não tem lugar na experiência política grega, só a persuasão e a força preenchem aí uma função. A ausência de autoridade, na realidade política grega, teria assim conduzido Platão e Aristóteles a tentar introduzi-la na sua filosofia política.

Os Gregos apenas conheciam a tirania ou a guerra como formas de governo assentes na relação de comando e obediência. É por isso que Platão e Aristóteles se voltaram para a estrutura familiar, no seio da qual o chefe de família governava, como déspota, a família e os escravos. No entanto, a autoridade implica uma obediência na qual os homens conservam a sua liberdade.

Platão

Platão alicerça a sua “aspiração a um governo autoritário” numa concepção da razão que, mais do que autoritária, acaba por se revelar despótica. Esse despotismo da razão (protagonizado pelo filósofo-rei), por se alicerçar em exemplos e analogias retirados da esfera privada – a qual “assenta na desigualdade natural entre quem governa e quem é governado” (E.P.F. p. 122) – vai traduzir-se numa dificuldade incontornável de legitimação da sua filosofia política, sobretudo tendo em conta a indesejável ligação entre este e a tirania (Aristóteles) e entre o poder que sempre corrompe e a autonomia do pensar (Kant).

“A semelhança fatal entre o filósofo-rei de Platão e o tirano grego, assim como o potencial prejuízo para a esfera política que esta concepção de governo implicaria, parece ter sido reconhecida por Aristótesles; mas que essa combinação de domínio e razão implicou um perigo também para a filosofia é algo que, tanto quanto sei, só foi apontado por Kant”. (E.P.F. p. 121-122)

Considerando os processos persuasivos e argumentativos insuficientes “para a condução dos homens” – rejeita-os liminarmente em virtude da condenação à morte de Sócrates – e procurando uma alternativa que não passasse pelo “recurso a meios externos de violência”, o que destruiria a vida política, Platão encontra na verdade auto-evidente à razão o meio eficaz de governar. O estabelecimento de uma “tirania da razão”, encabeçada pelo filósofo-rei, não está contudo isenta de problemas. De facto, a legislação imposta pelo filósofo, não pode deixar de ser despótica, assim como o consentimento dos cidadãos não é senão uma “servidão voluntária”.

Apesar da coerção imposta pela razão não necessitar do recurso à violência para que resulte eficaz, e ainda que a sua força seja deveras superior à da persuasão e argumentação, ela não constrange o maior número mas apenas uma minoria. A multiplicidade dos cidadãos que compõem a comunidade política, recinto das opiniões que se requerem disputadas, não é susceptível de se submeter às ordens da razão, sem alienação da sua maioridade política. Eis a principal dificuldade da filosofia política de Platão. A solução encontrada na República consiste na invenção do mito para consumo da multidão, que se traduz na afirmação de um além onde recompensas e castigos seriam distribuídos, desempenhando para aquela uma papel equivalente ao que desempenha a alegoria da caverna para o filósofo. Esta doutrina de um além com castigos e recompensas assume-se, pois, como uma doutrina de natureza política, que virá a ser recuperada pelo cristianismo.

“O ser político, o viver numa polis, significa que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força ou violência. Para os gregos, forçar alguém pela violência, ordenar em vez de persuadir, eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da polis, característicos do lar e da vida em família, na qual o chefe da casa imperava com poderes incontestados, ou da vida nos imperios bárbaros da Ásia, cujo despotismo era frequentemente comparado à organização doméstica.” (C.H. pp. 41-42)

“Uma vez que a autoridade exige sempre obediência, é muitas vezes confundida com alguma forma de poder ou violência. Mas o facto é que a autoridade exclui o uso de meios exteriores de coacção; quando se usa a força, isso significa que a autoridade falhou. Por outro lado, a autoridade é incompatível com a persuasão, já que esta pressupõe uma paridade e funciona através de um processo de argumentação. Quando se utilizam argumentos, a autoridade é deixada em suspenso. Contra a ordem paritária da persuasão, temos a ordem autoritária, que é sempre hierárquica. Assim, se temos de definir a autoridade, esta é algo que se opõe tanto à coação pela força, como à persuasão mediante argumentos. (A relação autoritária entre quem comanda e quem obedece não assenta nem numa razão comum nem no poder daquele que comanda; aquilo que ambos partilham é a hierarquia em si, cuja justiça e legitimidade ambos reconhecem e dentro das quais possuem o seu lugar fixo e prederterminado.)” (E.P.F., pp. 106-107)

O conflito entre filosofia e política, a sua radicalização, é um tema recorrente de Hannah Arendt a propósito do pensamento platónico. Trata-se de uma forma embrionária da oposição aristotélica entre “vida teórica” e “vida prática”, bem como da subordinação da segunda em relação à primeira, o que trará consequências decisivas para a desvalorização da político ao longo da tradição filosófica e política.

“No início, portanto, não da nossa história política ou filosófica, mas da nossa tradição de filosofia política, encontra-se o desprezo de Platão pela política, a sua convicção de que ‘os assuntos e acções dos homens (ta tōn anthrōpōn pragmata) não merece atenção demasiado séria’ e de que a única razão pela qual o filósofo tem de se lhes referir consiste no infeliz facto de a filosofia – ou, como um pouco mais tarde diria Aristóteles, uma vida a ela dedicada, o bios theōrētikos – ser materialmente impossível sem uma composição pelo menos em parte razoável do conjunto dos assuntos que preocupam os homens na medida em que vivem em companhia uns dos outros. No começo da tradição, a política existe porque os homens vivem e são mortais, enquanto a filosofia se preocupa com aspectos que são eternos, como o universo.” (P.P., p. 73)
Aristóteles

Ainda que pressuponha a relação de governantes-governados, a filosofia política de Aristóteles não acompanha a de Platão num ponto essencial: não existe a figura do filósofo-rei, nem a correlativa ideia da superioridade de um especialista (o filósofo) nos assuntos relativos ao governo da cidade-estado.

Na sua obra A Política, Aristóteles justifica a diferença entre jovens e velhos e entre governantes e governados pela natureza. Esta tese naturalista é, segundo Arendt, contraditória com o ideal grego de polis.
De facto, a tese aristotélica é problemática por duas razões: a primeira prende-se com a contradição entre a esfera pré-política da ideia de governação, assente numa assimetria natural entre governantes e governados, e o princípio de igualdade que subjaz à definição da polis como “comunidade de iguais”; a segunda deve-se o facto de Aristóteles defender que “a diferença entre governantes e governados é derivada da diferença natural entre os mais novos e os mais velhos”, quando na realidade existe um desfazamento temporal entre a instrução e a política.

“A própria ideia de governação, assim como a distinção entre governantes e governados, é algo que pertence a um domínio que precede a esfera política, e aquilo que distingue esta última do domínio ‘económico’ da família é que a pólis se baseia num princípio de igualdade e desconhece qualquer diferenciação entre governantes e governados.” (E.P.F., p. 130).

“A incoerência do seu empreendimento é perceptível (porque) a diferença entre governantes e governados é derivada da diferença natural entre os mais novos e os mais velhos. (...) No terreno político lidamos sempre com adultos que, propriamente falando, deixaram para trás o tempo da instrução, e a política ou o direito de participar nos assuntos públicos começa precisamente quando a educação está terminada. (...) Na educação, pelo contrário, lidamos sempre com pessoas que não podem ainda ascender à política e à igualdade porque estão numa fase de preparação para isso.” (E.P.F., p. 132).

“Para Aristóteles, o termo politikon era um adjectivo que se aplicava à organização da pólis e não a simples designação de qualquer forma de vida em comum (...). Queria dizer, sim, que é um traço único do homem o de este poder viver numa pólis, e também que a pólis organizada é a mais alta forma de vida humana em comum.” (P.P., p. 101)

“As grandiosas tentativas da filosofia grega para encontrar um conceito de autoridade que impedisse a deterioração da pólis e preservasse a vida do filósofo fracassaram pelo facto de no âmbito da vida política grega não existir uma noção de autoridade baseada numa experiência política imediata” (E.P.F., p. 133).


2. Os Romanos

É com os Romanos, segundo Hannah Arendt, que o conceito de “autoridade pode adquirir um carácter educacional” sem perder a sua consistência política. Para eles, “os antepassados, em qualquer circunstância, representam exemplos de grandeza para cada nova geração, (...) eles são os maiores, os melhores por definição. Onde quer que o modelo de educação pela autoridade, sem esta convicção fundamental, tenha sido imposto na esfera pública (...), o seu objectivo consistiu antes de mais em obscurecer reais ou camufladas aspirações de poder, e fingir educar quando na verdade pretendia apenas submeter.” (E.P.F., p. 133).

Só os Romanos conseguiram estabelecer uma autoridade política sem recorrer ao constrangimento exterior ou a uma ordem imposta. Por isso, o termo e o conceito de autoridade são originários de Roma, reenviando para o modelo da sua fundação. A autoridade encontra o seu fundamento no passado, passado sempre presente na vida da cidade e que é necessário conservar. Conservar a sua memória é um acto de amor e de responsabilidade quer para com o mundo legado pelos antepassados, quer para com o mundo perpectuado pelas gerações futuras.

A auctoritas dos Romanos provém do verbo augere e significa aumentar a fundação do passado. É necessário distinguir autoridade e poder. A autoridade, ao contrário do poder, enraiza-se no passado e deriva da própria autoridade dos fundadores, dos auctores.

Enquanto o poder pertence ao povo, é o Senado que detém a autoridade. A autoridade dos senadores provém da sua ligação ininterrupta à tradição, inaugurada pelos fundadores da cidade, ou mesmo por Rómulo, depositário da autoridade divina.

“Onde a vontade popular era considerada como susceptível de errar, como pode errar a vontade das crianças que não vivem senão no presente mais imediato, a aprovação senatorial, (...) atribuía aos actos públicos dos eleitos, detentores do poder legal, como que uma confirmação vinda dos tempos mais longínquos, que só por si lhes dava plenamente força de direito e aumentava consequentemente, decisivamente, o seu poder de acção.”
Alain Renaut, O Fim da autoridade, Instituto Piaget, p.38


Hannah Arendt apresenta-nos a imagem de pirâmide invertida, cujo topo não se situa no céu das ideias ou da transcendência divina, mas mergulha na profundidade do passado e na transcendência da tradição. A reverência para com os anciãos explica-se pelo facto de estarem mais próximos dos antepassados, cabendo-lhes pois, enquanto testemunhas da fundação sagrada, transmitir-nos os valores sagrados da tradição e servir de elo de ligação – religio, de religare, significa estar ligado ao passado – a eles.
“A religião romana, assente na fundação, tornou um dever sagrado preservar o que fora outrora transmitido pelos antepassados ou maiores. A tradição tornou-se, portanto, sagrada (...). Preservava e transmitia a sua autoridade, baseada no testemunho dos antepassados que tinham assistido à fundação sagrada. A religião, a autoridade e a tradição tornaram-se assim inseparáveis umas das outras, exprimindo a força sagrada vinculativa de um começo autorizado ao qual cada um continuava ligado graças ao vigor da tradição.” (P.P., p. 46)

É com a derrocada do Império Romano que, para Hannah Arendt, se precipita o desaparecimento da vida política, o que constitui o acontecimento mais decisivo da história política ocidental. A crise da autoridade inicia-se então com a desvalorização da trindade romana da tradição, autoridade e religião, sendo que a queda de um dos seus pilares desencadeia necessariamente a queda dos outros. Esse é já o cenário da modernidade.

3. O Cristianismo

A partir do momento em que a Igreja Cristã se romanizou, com o imperador Constantino, “a herança política e espiritual de Roma passou para as mãos do cristianismo (...), a Igreja tornou-se tão ‘romana’ e adaptou-se de tal modo ao pensamento romano em assuntos políticos, que fez da morte e ressurreição de Cristo a pedra basilar de uma nova fundação, erguendo sobre ela uma instituição humana nova e tremendamente perdurável. (...) Como testemunhas desse acontecimento, os Apóstolos puderam converter-se nos ‘pais fundadores’ da Igreja, dos quais esta derivava a sua própria autoridade enquanto pudesse continuar a transmitir de geração em geração o seu testemunho através da tradição.” (E.P.F., pp.138-139)

Paralelamente, o cristianismo, a partir do momento em que assume o papado como centro privilegiado do poder temporal (séc V), incorpora na sua estrutura conceptual a doutrina platónica de um além de recompensas e castigos , a qual, segundo Arendt, tem um horizonte político.

“Tendo incorporado a filosofia grega na estrutura das suas doutinas e credos dogmáticos, a Igreja Católica fundiu o romano conceito político de autoridade, inevitavelmente baseado num começo, com a noção grega de parâmetros e medidas transcendentes. (...) Dificilmente encontramos algo que se tenha afirmado com maior autoridade e com consequências de mais longo alcance do que esta fusão.” (E.P.F. p.141)

A consequência da incorporação da filosofia grega no edifício teórico do cristianismo traduziu-se, por um lado, na “diluição do conceito romano de autoridade” e, por outro lado, na assimilação do elemento de violência subentendido nas teorias políticas dos filósofos gregos, sobretudo de Platão.
Outra consequência, não menos importante, tem que ver com o facto do cristianismo, desenraizado agora da tradição política dos romanos, que fazia da autoridade um acrescento de legitimação do poder, abriu não só portas à tirania e ao despotismo, inerentes à fundamentação política dos gregos, como permitiu que por elas entrasse a ideia grega da subalternização da “vida activa” em relação à “vida contemplativa”.

“O cristianismo, com a sua crença num outro mundo cujas alegrias se pronunciam nos deleites da contemplação, conferiu sanção religiosa ao rebaixamento da vida activa à sua posição subalterna e secundária; mas a determinação dessa mesma hierarquia coincidiu com a descoberta da contemplação (theōria) como faculdade humana, acentuadamente diversa do pensamento e do raciocínio, que ocorreu na escola socrática e que, desde então, vem orientando o pensamento metafísico e político de toda a nossa tradição.” (C.H., p.28)

Contudo, a consequência decisiva prende-se sobretudo com a secularização inerente à modernidade. Esta implicou não apenas a descrença no além, onde “o medo do inferno já não se conta entre os motivos capazes de impedir ou de estimular os actos da multidão” mas, inevitavelmente, “a separação entre a esfera política e a esfera religiosa da vida; e, assim sendo, a religião não podia senão perder o seu elemento político, tal como a vida pública estava destinada a perder a sanção religiosa por parte de uma autoridade transcendente.” (E.P.F., p.148)

Assim, sem a “fonte da autoridade transcendente”, as pessoas vêem-se confrontadas “com os problemas mais elementares da convivência humana.” (E.P.F., p.154)

A romanização da Igreja cristã permitiu a longevidade de uma tradição alicerçada nas fundações da autoridade assentes na religião. A ruptura decisiva dá-se quando a Igreja Católica (universal) se vê abalada nos seus alicerces pela Reforma, contestatária da sua autoridade, assim como pelo criticismo moderno que minou as raizes da crença religiosa.

“Sem a sanção da crença religiosa, nem a autoridade nem a tradição continuam seguras. Sem o apoio dos instrumentos tradicionais de interpretação e de juízo, tanto a religião como a autoridade começaram a vacilar.” (P.P., p. 48)

Crise da educação ou crise na educação?

O sentido pedagógico do termo tradição encontra-se indissociavelmente ligado ao seu sentido político originário, que é romano: “Fazer ser novo aquilo que foi”. A modernidade recobriu e adulterou esta significação.
Hannah Arendt recupera o uso que Quintiliano fazia do conceito quando recorreu ao termo traditio para designar o ensino. Segundo Quintiliano, educar é tradere (remeter uma herança) e transmittere (remeter essa herança de tal maneira que o herdeiro a faça sua, a conserve e lhe dê vida).

A crise da educação que se manifesta na actualidade é o resultado de uma crise mais vasta e profunda, que tem as suas raizes na modernidade. Esta preenche por inteiro a brecha que se abriu entre o passado e o futuro, por onde se sumiram a tradição e a autoridade.

“A crise de autoridade na educação está intimamente ligada com a crise da tradição, isto é, com a crise da nossa atitude face a tudo o que é passado.” (E.P.F., p.203)

“No mundo moderno, o problema da educação resulta pois do facto de, pela sua própria natureza, a educação não poder fazer economia nem da autoridade nem da tradição, sendo que, no entanto, essa mesma educação se deve efectuar num mundo que deixou de ser estruturado pela autoridade e unido pela tradição.” (E.P.F., p.205)

No mundo pré-moderno, passado e futuro estavam ligados pelo fio da tradição que garantia a continuidade e a persistência do mundo. No entanto, a partir do momento em que o edifício da autoridade ruiu e o fio da tradição se rompeu, irreversivelmente, a crise irrompeu e todos os domínios da vida humana se viram por ela envolvidos. A crise da educação é, antes de mais, uma crise que se manifesta na educação, sendo portanto esta o lugar privilegiado de onde devemos retomar as questões essenciais, as quais nos poderão encaminhar para respostas já não enraizadas em preconceitos e ideias feitas no coração da modernidade.

Bibliografia

ARENDT, Hannah, Entre o Passado e o Futuro, Relógio D’Água, 2006
ARENDT, Hannah, Homens em Tempos Sombrios, Relógio D’Água, 1991
ARENDT, Hannah, A Condição Humana, Relógio D’Água, 2001
ARENDT, Hannah, A Promessa da Política, Relógio D’Água, 2007
COURTINE-DÉNAMY, Hannah Arendt, Instituto Piaget, 1994
RENAUT, Alain, O Fim da Autoridade, Instituto Piaget, 2005



quarta-feira, junho 25, 2008

Aonde já chega a crise?

Aonde já chega a crise? Fundo, muito fundo. Ela torna-se visível não tanto quando é sentida pelas pessoas dos estratos sociais economicamente mais carenciados – quem quer saber dos pobres, senão do ponto de vista das estatísticas? –, mas a partir do momento em que fustiga as classes médias. Então sim, é que ela ganha verdadeira visibilidade.
A um pobre, tudo o que ultrapasse o seu magríssimo pecúlio é demasiado, tanto faz que seja 50 ou 100 euros. Quem vive com pouco e esse pouco não lhe chega, o que lhe sobra em miséria é sempre demais. O acréscimo de miséria é ainda e sempre miséria. Não existem graduações nem quantitativos. Abaixo do limiar da pobreza, apenas há uma qualidade e condição: a de ser miserável. Ao contrário do que acontece com os imensamente ricos, em que é possível e usual graduar e quantificar o pecúlio (os cem mais ricos, os quinhentos mais ricos), nenhuma outra classe está sujeita a ordem de grandeza. É um absurdo pensar estabelecer o ranking dos mais pobres, ou dos mais remediados. Parece uma contradição nos termos. A ordenação da riqueza só faz sentido relativamente à quantificação do muitíssimo. Só a partir de uma quantia avultada se justifica graduar por ordem de grandeza. O mesmo não se passa em relação a quem vivia com o suficiente ou mesmo com mais do que o suficiente – que podiam aplicá-lo em pequenos luxos ou em pequenas poupanças – mas que agora já não chega para esconder o espectro do empobrecimento. É na classe média que a crise financeira mais se evidencia, em razão dos empréstimos acumulados em tempo de vacas gordas. Basta estar atento ao pormenores do quotidiano. É o automóvel que permanece na garagem semanas a fio, o pronto a vestir cuja visita se adia até que dias melhores venham, o arranjo e a pintura do cabelo que se disfarça como se pode (fugindo-se o espelho como o diabo da cruz), as consultas ao ginecologista ou ao dentista que se desmarcam a pretexto de qualquer impossibilidade de agenda, as viagens de férias que se transferem para o imaginário de um programa assistido pela televisão, ou, na pior das hipóteses, o bife de alcatra ou do lombo que é substituído pelo fígado de porco adornado de cebolada, as t-shirts de marca que se vêem substituídas pelas suas homólogas compradas na feira de domingo de manhã, os cêntimos recontados que se empilham disfarçadamente no balcão da pastelaria para pagar o café que nos há-de tirar o sono mais à noitinha, precisamente quando aproveitamos a insónia para conjugar os dias que faltam no mês com os magros euros que dificilmente chegarão para cobrir as despesas correntes. Um sufoco. Que o diga quem não tiver vergonha, como o vizinho empresário da construção que, por falta de empreitadas, decidiu comprar o passe de metro e juntar-se, manhã cedíssimo, aos inúmeros utentes do mesmo, engrossando o número daqueles que vêem, de dia para dia, crescer o contingente os pedintes.