Há casos e acasos, cursos e percursos. A vida humana está cheia deles. Por mais que a queiramos determinar, por melhor que a planeemos ou nos esforcemos por circunscrevê-la nos estreitos limites da agenda, ela sempre transborda ao sabor dos encontros fortuitos e inesperados. Quando tal acontece, o melhor, eticamente falando, é estar disponível para os integrar na teia complexa de que nos vamos fazendo. A disponibilidade para o outro deve merecer de cada um de nós o cuidado especial que nos torna verdadeiramente humanos. Essa aprendizagem devo-a não aos mestres do saber e da ciência; devo-a sobretudo a uma mestra da vida a quem chamo mãe, apesar de já ter morrido, e que por acaso era analfabeta. Presto-lhe, com estas palavras, a justa homenagem que em vida nunca lhe soube fazer. Obrigado por tudo.
Este pretende ser um espaço de opinião e de comentário, espaço onde o pensamento se quer divergente e crítico, onde o dizer não se transforme num mero eco da opinião maioritária. Mas também um espaço de expressão de outras vozes que em mim não consinto em calar.
domingo, junho 28, 2009
domingo, junho 21, 2009
a condenação de sócrates
Depois de um longo interregno e no antegozo das férias que não tardam, apetece-me escrever sobre Sócrates, de forma solta e ao correr da pena (literalmente ao correr do teclado). Refiro-me ao filósofo grego, de quem Nietzsche, na sua obra Crepúsculo dos Ídolos, traça o seguinte retrato: «Quanto à origem, Sócrates pertencia ao povo mais baixo: Sócrates era da populaça. Sabe-se, vê-se ainda, que ele era horroroso. A fealdade, já em si uma objecção, é para os gregos quase uma refutação. Era, de facto, Sócrates um grego? A fealdade é, com bastante frequência, a expressão de um desenvolvimento híbrido, obstruído pelo cruzamento. Noutros casos, surge como evolução decadente. Os criminalistas antropólogos dizem-nos que o delinquente típico é feio: monstrum in fronte, monstrum in animo. Mas o criminoso é um décadent. Era Sócrates um delinquente típico? – Pelo menos não o contradiz aquele famoso juízo de fisionomista, que tanto escandalizou os amigos de Sócrates. Um estrangeiro, que percebia de rostos, ao passar por Atenas, disse de caras a Sócrates que ele era um monstrum – que ele albergava em si todos os piores vícios e inclinações. E Sócrates limitou-se a responder: “Conheceis-me bem, senhor!”»
As teses do filósofo alemão sobre o seu antecessor grego são controversas. Desde a sua obra seminal O Nascimento da Tragédia até à sua obra terminal Ecce Homo, exceptuando algumas passagens das suas obras apolíneas – tais como Aurora e a Gaia Ciência – o juízo de Nietzsche sobre Sócrates é categórico: acusa-o de ter contribuído, ainda que indirectamente, para a morte da tragédia grega, e consequentemente, para a decadência da cultura ocidental. Sócrates seria, deste ponto de vista, o primeiro arauto do niilismo, essa genérica vontade de negatividade que caracteriza o homem da modernidade. Para Nietzsche, a condenação e morte de Sócrates, longe de constituir uma iniquidade, foi uma tentativa desesperada de recuperar uma vitalidade cultural e política que teria caracterizado a época dos pré-socráticos. Tratou-se, pois, de um julgamento por razões políticas. Nietzsche, fiel ao seu estilo e ao seu modo de filosofar – a golpes de martelo – nunca explicita as razões políticas da acusação de Sócrates, apenas as sugere.
Os testemunhos de Platão e de Xenofonte, excessivamente preocupados com a defesa do mestre, ocultam-nas mais do que as evidenciam. Nas suas apologias, dizem-nos ambos que Sócrates foi acusado de corromper a juventude e de não acreditar nos deuses da cidade. Ambas as fontes pretendem que Sócrates foi injustamente confundido com os sofistas, os quais, na época conturbada de finais do século V e início do século IV, na ressaca da guerra do Poloponeso, eram, aos olhos dos atenienses, os responsáveis pela degenerescência dos costumes e dos valores. Platão faz mesmo referência a acusadores mais antigos que Ânito, Meleto e Lícon – precisamente a Aristófanes, o primeiro, nas Nuvens, em 423 a.C., a referir-se a Sócrates como um sofista.
Quais as razões autênticas da acusação contra Sócrates? Talvez nunca o venhamos a saber. Existe uma pista. Ténue, sem dúvida. Mas dá que pensar. Ela remete-nos para um panfleto perdido do sofista Polícrates que, por volta de 393 ou 394 a.C. – meia dúzia de anos após a morte de Sócrates – terá sido do conhecimento público da “inteligentia” ateniense, e que pretensamente reproduziria o verdadeiro discurso de acusação. Nela se faria referência aos fatídicos discípulos de Sócrates – Alcibíades e Crítias, que tiveram atitudes de desprezo pelas leis da cidade e estiveram associados ao período de revolta antidemocrática e de vigência da tirania dos trinta –, ao desprezo socrático pelo povo e pelo regime de sorteio característico da magistratura e democracia atenienses. A ser verdade, percebe-se melhor as razões por que Sócrates foi condenado à morte. No rescaldo da humilhação sofrida às mãos de Esparta, adversários da democracia imperialista de Atenas, atitudes e juízos declaradamente antidemocráticos só poderiam ter como resultado uma reacção de animosidade crescente contra um indivíduo que assumiu para si mesmo a missão de reformar a sua cidade. A cidade interpretou isso como um fardo (mais um) demasiado pesado para suportar sobre os seus ombros já cansados. E castigou o filósofo duramente, dando a beber a cicuta que o imortalizou.
As teses do filósofo alemão sobre o seu antecessor grego são controversas. Desde a sua obra seminal O Nascimento da Tragédia até à sua obra terminal Ecce Homo, exceptuando algumas passagens das suas obras apolíneas – tais como Aurora e a Gaia Ciência – o juízo de Nietzsche sobre Sócrates é categórico: acusa-o de ter contribuído, ainda que indirectamente, para a morte da tragédia grega, e consequentemente, para a decadência da cultura ocidental. Sócrates seria, deste ponto de vista, o primeiro arauto do niilismo, essa genérica vontade de negatividade que caracteriza o homem da modernidade. Para Nietzsche, a condenação e morte de Sócrates, longe de constituir uma iniquidade, foi uma tentativa desesperada de recuperar uma vitalidade cultural e política que teria caracterizado a época dos pré-socráticos. Tratou-se, pois, de um julgamento por razões políticas. Nietzsche, fiel ao seu estilo e ao seu modo de filosofar – a golpes de martelo – nunca explicita as razões políticas da acusação de Sócrates, apenas as sugere.
Os testemunhos de Platão e de Xenofonte, excessivamente preocupados com a defesa do mestre, ocultam-nas mais do que as evidenciam. Nas suas apologias, dizem-nos ambos que Sócrates foi acusado de corromper a juventude e de não acreditar nos deuses da cidade. Ambas as fontes pretendem que Sócrates foi injustamente confundido com os sofistas, os quais, na época conturbada de finais do século V e início do século IV, na ressaca da guerra do Poloponeso, eram, aos olhos dos atenienses, os responsáveis pela degenerescência dos costumes e dos valores. Platão faz mesmo referência a acusadores mais antigos que Ânito, Meleto e Lícon – precisamente a Aristófanes, o primeiro, nas Nuvens, em 423 a.C., a referir-se a Sócrates como um sofista.
Quais as razões autênticas da acusação contra Sócrates? Talvez nunca o venhamos a saber. Existe uma pista. Ténue, sem dúvida. Mas dá que pensar. Ela remete-nos para um panfleto perdido do sofista Polícrates que, por volta de 393 ou 394 a.C. – meia dúzia de anos após a morte de Sócrates – terá sido do conhecimento público da “inteligentia” ateniense, e que pretensamente reproduziria o verdadeiro discurso de acusação. Nela se faria referência aos fatídicos discípulos de Sócrates – Alcibíades e Crítias, que tiveram atitudes de desprezo pelas leis da cidade e estiveram associados ao período de revolta antidemocrática e de vigência da tirania dos trinta –, ao desprezo socrático pelo povo e pelo regime de sorteio característico da magistratura e democracia atenienses. A ser verdade, percebe-se melhor as razões por que Sócrates foi condenado à morte. No rescaldo da humilhação sofrida às mãos de Esparta, adversários da democracia imperialista de Atenas, atitudes e juízos declaradamente antidemocráticos só poderiam ter como resultado uma reacção de animosidade crescente contra um indivíduo que assumiu para si mesmo a missão de reformar a sua cidade. A cidade interpretou isso como um fardo (mais um) demasiado pesado para suportar sobre os seus ombros já cansados. E castigou o filósofo duramente, dando a beber a cicuta que o imortalizou.
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