terça-feira, julho 03, 2007

o filósofo andarilho ou o viajante e a sua sombra

A leitura de algumas cartas de Nietzsche – que cobrem um intervalo temporal de vinte anos, isto é desde o período em que conhece Richard Wagner, em Novembro de 1968, até aos primeiros dias de 1889, imediatamente antes de sucumbir à loucura – provocou em mim uma amálgama de sentimentos contraditórios, da quase exaltação à quase angústia. Homem íntegro e absolutamente coerente com as suas convicções, amigo incondicional e inimigo impiedoso, generoso na dádiva extrema de si próprio, desbravador do insondável da alma humana, “dinamite” como de definiu um dia. Foi sempre um pensador no fio da navalha, implacável e acerado no bisturi da crítica, que o haveria de conduzir à mais radical das suspeitas – a de que a civilização ocidental, no somatório dos seus vinte e cinco séculos, assenta no erro terrível que degenerou em decadência e niilismo, esse veneno que asfixia o homem e produz uma cultura anémica. Jovem catedrático em filologia clássica, leccionou durante dez anos em Basileia, até que a doença, o sofrimento e a descrença o fizeram abandonar os círculos académicos, em 1878, e enveredar pela aventura quase solitária de uma vida errante. Passou a ser, a partir de então, o Viajante e a sua sombra. Daí para diante, o filósofo andarilho produziu grande parte da sua obra escrevendo a lápis em caderninhos pequenos, enquanto marchava. O vigor da marcha que o conduzia aos cumes, que o levava a pelos bosques e vales verdejantes, esse mesmo vigor cadenciava os seus pensamentos, servia de dínamo às ideias e intuições fulgurantes que ia registando com esforço. Em carta endereçada a seu amigo Peter Gast, de 5 de Outubro de 1879, num dos períodos mais sofridos da sua existência atribulada, escrevia: “Com excepção de algumas linhas, o total foi concebido ao ritmo da marcha e esboçado com lápis em seis caderninhos: a transcrição dava-me náuseas. Tive de deixar passar uma vintena de encadeamentos mais extensos, desafortunadamente alguns dos mais essenciais, porque nunca tinha tempo suficiente para extrai-los da horrível garatuja produzida a lápis: o que já me sucedeu o Verão passado. Depois disso, o encadeamento dos pensamentos escapa à minha memória: com efeito, tenho de arrebatar os minutos e os quartos de hora à “energia do cérebro” de que você fala, arrancando-os de um cérebro que sofre. Por vezes, parece-me que não poderei fazê-lo jamais. Leio a cópia e custa-me entender-me a mim mesmo, de tão angustiada que está a minha cabeça.” Dos primeiros dias de Janeiro de 1889 até meados de Agosto de 1900, o filósofo do Assim falava Zaratustra viveu submerso por uma loucura porventura de origem congénita.

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