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domingo, maio 20, 2012

Da fenomenologia da crise ou o ócio como oportunidade de… exclusão social

A palavra crise entrou, definitivamente, do léxico corrente. Toda a gente fala da crise … almoça crise, janta crise e dorme com a crise. Tornou-se uma inevitabilidade. Muitas são as evidências disso, umas mais óbvias que outras.
           Duas notícias recentes evidenciam o modo como, nestes tempos, o fenómeno da crise é vivido pelos portugueses. Sobremaneira importa realçar o sentido, necessariamente diverso, que os seus diferentes actores lhe conferem. Para isso basta cruzar as duas notícias, cada qual a apontar para sectores opostos da soberania democrática e retirar desse cruzamento as justas ilações. Avancemos para a primeira.   
Pedro Passos Coelho, o representante máximo da soberania política logo após o Presidente da República, lançou recentemente um desafio aos desempregados deste país: encarem a crise como uma «oportunidade para mudar de vida». Para além do mal-estar que tal afirmação provocou no seio da oposição, que logo aproveitou para dela retirar os dividendos políticos possíveis, ela atingiu em cheio a dignidade pessoal dos milhares de pessoas (há quem garanta que já ultrapassam o milhão) que engrossam já as fileiras dos verdadeiros excluídos da sociedade. Pode o primeiro-ministro apregoar que falar verdade aos portugueses é a sua verdadeira missão como político, pretendendo com isso escudar-se na imagem de um José Sócrates rotulado de Pinóquio e de campeão das “inverdades”, das trapalhadas e das promessas não cumpridas. Com o tempo de nada lhe valerá. O kairós – o sentido da oportunidade – ensinaram-no os sofistas como Górgias, é a alma de um político. A inoportunidade de Pedro Passos Coelho foi, neste caso, gritante, como aliás em outras circunstâncias similares em que não só se mostrou insensível perante o drama daqueles para quem a situação de desempregados lhes devolve o significado de párias e de inúteis (recorde-se o episódio ainda recente em que aconselhou os jovem a emigrar) como demonstrou que não tem soluções para responder aos desafios mais prementes da actual política nacional. Incinerando, deste modo, a alma de quase um milhão de compatriotas, a acreditar nos números oficiais do desemprego, parece condenado a perder a sua.
Como interpretar as palavras do primeiro-ministro? Que sentido político retirar delas? Independentemente da inegável afronta que elas constituem para os visados, associar desemprego forçado com oportunidade apenas pode significar uma coisa: a existência de uma leitura ideológica – claramente assumida e patente na reiteração do dito, por parte do primeiro-ministro – do infortúnio que constitui a situação de desemprego. A ideologia ultraliberal interpreta o desemprego como uma oportunidade para o desempregado, uma oportunidade para este mudar de vida. Que cenário vislumbra ele com a concretização desta mudança? Tornar-se competitivo, isto é, tornar-se empreendedor, fazendo uso do seu engenho ou da sua capacidade empresarial e montar um negócio, criando postos de trabalho, ou então aceitar salários ao nível dos praticados em países como a China ou a Índia. Numa frase: sucesso ou miséria. De qualquer modo, a permanência na situação de desemprego assume, para a ideologia neoliberal, a ideia de um fracasso pessoal de que o único culpado é o desempregado. É por sua exclusiva responsabilidade que a mudança de vida não se concretiza. Quanto ao Estado, este não deve interferir em questões que apenas dizem respeito aos mercados e aos indivíduos, questões que têm que ver com a liberdade, lavando o governo as sua mãos como Pilatos. Em razão disso, decide abandonar os desempregados à sua sorte, que se traduz na lotaria do darwinismo social cujo espelho é este capitalismo selvagem de que são vítimas. A par do ferrete da “exclusão social”, mácula sem redenção num mundo que se guia pelos imperativos do consumo – em que o valor da existência mede-se pelo valor do consumo – ganha o desempregado um ócio forçado. Esse ócio – como afirmou Eduardo Lourenço em O Esplendor do Caos -, filho mimado do esplendor liberal, que nos asseguraria a todos uma vida de permanente gozo virtual, de que a droga é a grosseira antecipação, não põe termo, como nas utopias, ao famoso “estado de necessidade”. É precisamente o contrário, a prisão perfeita onde ninguém nos encerra, feita unicamente da nossa diferença com aquela “humanidade-outra”, que detém – ou pensa deter – o poder de separar os que têm direito “a trabalhar” dos que serão – ou já são – condenados ao gozo demente do ócio obrigatório. Só que esta nova espécie de ócio se chama desemprego.”  
Passemos à segunda notícia que deu conta de um facto curioso ocorrido no santuário de Fátima, no sábado passado. Nestes tempos de crise, as velas vendidas e queimadas na tradicional procissão nocturna ascendeu, em peso bruto, às dezanove toneladas, oito das quais até à hora de almoço, quando em anos anteriores na parte da manhã eram derretidas apenas duas toneladas. Não se tratando de um argumento de peso para fazer valer a ideia de um acréscimo de fiéis ao catolicismo, desmentido por estudos e relatórios que os media a propósito referiram, somente pode significar outra coisa bem mais prosaica, a saber, que o povo entregou nas mãos de Nossa Senhora de Fátima, isto é, à sua fé na providência divina, a solução dos seus problemas terrenos, ao invés de a entregar nas mãos daqueles em quem um dia terá delegado a esperança num amanhã mais risonho. Substituir assim os políticos por Deus revela, inequivocamente, o sentido da descrença generalizada na representatividade política.       
Destas duas notícias resulta uma espécie de fenomenologia da crise, que nos mostra, entre outras coisas, que está em causa o problema da representação democrática. Quando os políticos, em acções e palavras, se apartam do povo, e quando simultaneamente os cidadãos não se reconhecem quer nas decisões quer nos discursos políticos, ou não se veem representados pelos políticos que elegeram, o que vai dar ao mesmo, é o próprio paradigma da democracia representativa que está em crise. As consequências estão à vista. Em Portugal, o afluxo de gente ao Santuário de Fátima, impelida por promessas em que apenas a sua fé lhes confere algum crédito; noutros países da Europa, a emergência de partidos políticos de configuração neonazi, que rompem com a matriz democrática decadente que lhes deu alento e razão de existir. Por que caminhos nos conduzirão amanhã os nossos passos hesitantes?

Publicado originalmente em http://jerusalem-ljj.blogspot.pt/