sexta-feira, dezembro 03, 2010

“São os mercados, ó estúpido!”

“São os mercados, ó estúpido!” Esta foi a resposta que ouvi quando, displicentemente, perguntei aos associados da liga Anti-qualquer-coisa-que-nos-foda-o-juízo – da qual confesso fazer parte – quem eram os verdadeiros responsáveis pela situação a que chegáramos. A conversa girava, como não podia deixar de ser nos últimos repastos de quarta-feira à noite, em torno da política e de palavras como crise, austeridade, défice, dívida, rating, e por aí fora. A sua conjugação, nos tempos que correm, abre um horizonte ideológico de sentido que configura uma regra: a da necessidade de apertar o cinto. Necessidade não universal, entenda-se, pois existem excepções (pelo que se sabe, quadros da CGD, do BP e outros cuja identidade ainda se desconhece) que interessa abrigar da chuva dos mercados, não vá dar-se o caso de estes se constiparem e causarem um arrepio de febre nas agências internacionais de rating. “Quem anda à chuva, molha-se”, diz o ditado. E eu acrescento: a não ser que nos ofereçam a protecção de um guarda-chuva. O que não entendo, e talvez por isso mesmo mereça o epíteto de estúpido, é por que é que, ao mesmo tempo e sob o mesmo ponto de vista, se justificam a regra e a excepção. Se a necessidade das medidas de austeridade se deve às prescrições do mercado, por que razão pretende o governo atar as suas mãos invisíveis e impedir que elas deslizem para os bolsos de alguns privilegiados? Haja alguém que mo explique e me ajude a tornar-me mais esperto.      

segunda-feira, novembro 29, 2010

Hannah Arendt, a crise da educação e a necessidade de repensar o projecto da modernidade

I. O contributo de Hannah Arendt para o pensar a crise da educação

           “Na medida em que o passado se transmite sob a forma de tradição, possui autoridade; na medida em que a autoridade se apresenta historicamente, converte-se em tradição. Walter Benjamin sabia que a ruptura com a tradição e a perda da autoridade que se verificaram no seu tempo eram irreparáveis, e concluiu daí que era preciso descobrir novas formas de relações com o passado.”
Hannah Arendt, Homens em Tempos Sombrios


Quando, em 1957, H. Arendt publica um artigo com o título A crise na educação[1], propondo-se aí pensar sobre a experiência educativa da América nos anos 50, na Europa ainda não se vive, de forma significativa, nada que se assemelhe aos problemas característicos da educação americana. Por pouco tempo[2]. Uma década depois, o acontecimento Maio de 68, proclamando o slogan “é proibido proibir”, constitui-se, para além do mais, como um sinal de que a Europa não estará, por muito mais tempo, imune ao “vírus” cultural e político importado com o “sonho americano”. A americanização do mundo ocidental, após a queda do muro de Berlim e a derrocada do modelo soviético, tornou-se um dado adquirido, implicando a exigência de democratização do ensino – enquadrada num movimento geral de ruptura com a tradição e de rejeição da autoridade – exigência irrecusável porque se inscreve num processo irreversível da modernidade que tem nas ideias liberdade e igualdade os a priori de toda a inteligibilidade das relações humanas.     
O texto de H. Arendt, tal como aparece a público em 1961, insere-se com conjunto de ensaios/exercícios “escritos num mesmo tom ou em tons afins” (2006, p.29), que visam “obter experiência sobre como pensar” (2006, p.28) o hiato entre passado e futuro que se encontra ancorado no coração da modernidade.
A crise da educação é, prioritariamente, uma crise de outra ordem, mais abrangente e estrutural, nomeadamente axiológica, cultural e política. Ela manifesta-se na educação de modo tardio, mas nem por isso menos agudo. Pelo contrário, é na educação que a crise ganha contornos mais graves, porquanto é nas escolas que a vivência da desordem e da violência adquire o estatuto de drama social. Sem o explicitar, é esse o significado da expressão “crise na educação” usado por H. Arendt no título do seu ensaio.
Ao definir a essência da educação como natalidade, H. Arendt apresenta-nos o problema da crise que nela se dá no plano da sua nudez originária, forçando-nos a reflectir sobre a “experiência da realidade” educativa, já não com base nos preconceitos que contribuíram sobretudo para ocultar a natureza da crise e mesmo intensificá-la. No horizonte aberto por este reequacionar da questão, algumas ideias resultam que importa acentuar.
Em primeiro lugar, o ideal de democratização da sociedade, com o seu enfoque principal no princípio da igualdade de oportunidades, foi acompanhado, no domínio da educação, por pressupostos pedagógicos, de cariz “progressista” ou “pragmático”, cujo “carácter destrutivo”, ao ser reconhecido na actualidade, nos devolvem a representação de uma crise com contornos dramáticos. Neste contexto, H. Arendt recorre a “três ideias-base” para nos explicar as “medidas catastróficas” que terão precipitado a crise: 1) a absolutização do mundo infantil; 2) a pedagogização do ensino; 3) a instrumentalização e ludicização do ensino. As consequências profundamente nefastas da conjugação destas ideias traduzem-se numa clivagem cada vez mais acentuada entre os mundos infantil e adulto[3], no abandono dos alunos a si próprios, na deslegitimação da autoridade do professor e na “transformação das instituições de ensino geral em institutos profissionais” (2006, p.193). Em última análise, o resultado de tudo isto prende-se com questões relacionadas com as competências educativas e pedagógicas, respectivamente a uma concepção minimalista do ensino (em que já não se trata de ensinar um saber, mas de incutir uma saber-fazer) e uma concepção lúdica da aprendizagem (em que aprender aparece associado mais ao jogo do que trabalho). É neste sentido que se impõe perguntar, socraticamente: O que é ensinar? O que é aprender?
Em segundo lugar, o ideal rousseauniano de educação, ao fazer desta um “instrumento da política” e ao conceber a “actividade política (…) como uma forma de educação” (2006, p.186), confundindo o que não deve ser confundido, nomeadamente os espaços privado e público, conduz-nos quer ao risco de endoutrinamento , por parte do Estado, quer a uma perversão das relações de natureza política, pois, como afirma H. Arendt: “aqueles que se propõem educar adultos, o que realmente pretendem é agir como seus guardiões e afastá-los da actividade política. Como não é possível educar adultos, a palavra ‘educação’ tem uma ressonância perversa em política – há uma pretensão de educação quando, afinal, o propósito real é a coerção sem uso da força” (2006, p.187).
Por último, a conjugação dos ideais político e pedagógico, inscritos na matriz democrática do projecto da modernidade, determinou a construção de uma visão do mundo em que os conceitos de autoridade e de tradição, pilares estruturantes do mundo antigo, se esvaziaram de sentido e perderam a sua eficácia, tendo-se tornado mesmo objecto de suspeita. Ora, se esta suspeita é legítima e compreensível, quando o que está em causa é o modelo relacional subjacente ao espaço público e à política, o mesmo não se pode afirmar quando nos deparamos com modelo relacional pedagógico. Ao concebermos o projecto da modernidade como uma difusão histórica dos ideais de liberdade e de igualdade, alargada a todos os domínios das relações sociais e humanas, e acompanhada pela valorização progressiva do “novo”, somos confrontados com o surgimento de antinomias que estruturam a compreensão moderna da realidade – liberdade ou autonomia/autoridade, igualdade/diferença e inovação/tradição. É no coração destas antinomias que teremos de mergulhar, se quisermos pensar os problemas que a mundividência moderna nos coloca, em particular no domínio da educação. H. Arendt oferece-nos o problema com a seguinte formulação: “No mundo moderno, o problema da educação resulta pois do facto de, pela sua própria natureza, a educação não poder fazer economia nem da autoridade nem da tradição, sendo que, no entanto, essa mesma educação se deve efectuar num mundo que deixou de seu estruturado pela autoridade e pela tradição.” (2006, p.205)


II.  A questão da legitimidade da autoridade ou o repensar a autoridade em educação no horizonte da modernidade democrática

                                                                                                  “Quando se dá a um homem ou a uma mulher o poder de ensinar outro ser     humano, onde reside a fonte da autoridade?”
George Steiner, As lições dos mestres 


Mesmo reconhecendo, como natural e legítimo, o desaparecimento da autoridade[6] na esfera política, em virtude do carácter relacional próprio do domínio público, e admitindo e existência de “uma estreita conexão entre a perda da autoridade na vida pública e privada e o seu desaparecimento nos domínios pré-políticos da família e da escola” (2006, p.200), ainda assim H. Arendt reclama para a educação um estatuto de excepção em relação à ampla “dinâmica de decomposição da autoridade”[7] (2005, p. 44) que percorre todos os domínios da vida social. Isso justifica-se por diversas razões, a saber: a escola não é a família, que pertence ao domínio da vida privada, nem pode pretender substituir-se-lhe nas suas funções de a proteger “contra o aspecto público do mundo” (2006, p.196); a escola está no mundo mas não é o mundo, tendo por isso mesmo por função ajudar os jovens a fazer a passagem (ritual iniciático cada vez mais demorado, sobretudo nas sociedades democráticas) da vida privada para a vida pública.
Deste ponto de vista, “a escola representa de certa forma o mundo” (2006, p.199), e o professor, enquanto seu representante deve assumir a responsabilidade – escorada na sua competência, que consiste no conhecimento e transmissão do mundo – porque lhe “compete estabelecer a mediação entre o antigo e o novo” (2006, p.199). Esta responsabilidade vai em dois sentidos: preservar o mundo face à irreverência revolucionária e criadora da criança, que pode constituir um perigo de destruição das tradições que o sustentam; e preservar a criança do peso excessivo da tradição, matando à partida a criatividade e o espírito crítico que constituem o motor de renovação do mundo, sempre em devir.
“Conservadorismo” e “atitude conservadora” são expressões usadas por H. Arendt para designar “a essência mesma da actividade educativa” (2006, p.202). Compreende-se o porquê de tal asserção, atendendo a que a educação não pode prescindir de um “mínimo de conservação e de atitude de conservação” (2006, p.203) nem abdicar da autoridade e de tradição. No entanto, a propósito disso importa perguntar duas coisas. Que modelo pedagógico está pressuposto no discurso arendtiano? É esse discurso aceitável no contexto da lógica de democratização que sustenta as relações humanas nas sociedades modernas?   
Ao rejeitar em absoluto as pedagogias modernas, em razão do seu “carácter destrutivo”, H. Arendt parece preconizar um modelo pedagógico tradicional que reduz a tarefa de ensinar à mera transmissão de conhecimentos e de valores, e a de aprender à assimilação, ainda que criativa, dos mesmos. É isso mesmo que se subentende com as noções de “conservadorismo” e de “atitude conservadora”. Para além do mais: o discurso arendtiano, pelas propostas que avança, se bem que cauteloso e reconhecendo as extremas dificuldades que em si mesmo encerra, assume contornos reaccionários e anti-modernistas inaceitáveis face à mundividência dominante no mundo ocidental, não só porque constitui um retrocesso em relação às conquistas do projecto da modernidade, ancorado nos ideais iluministas do séc. XVIII, mas sobretudo porque se revela pouco digno de crédito, ao inscrever no seio da existência e consciência do cidadão moderno comum conflitos axiológicos[8] inaceitáveis.
Bibliografia
ARENDT, H., (2006), Entre o Passado e o Futuro, Lisboa, Relógio D’Água.
BARBER, B., (2007), Comment le capitalisme nous infantilise, La Flèche, Fayard.
RENAUT, A., (2005), O Fim da autoridade. Lisboa, Instituto Piaget.
REBOUL, O., (2000), A Filosofia da Educação, Lisboa, Edições 70.



[1] Artigo publicado originalmente na Partisan Review (1957, 25, 4) e republicado em Between Past and Future: Six Exercices in Political Thought (1961). Este último foi traduzido em francês com o título La Crise de la culture (1972). Em língua portuguesa o artigo está disponível em Hannah Arendt, Eric Weil, Bertrand Russell, Ortega y Gasset, Quatro textos excêntricos, Lisboa, Relógio d’Água, 2000, e em Entre o passado e o futuro: oito exercícios sobre o pensamento político, Lisboa, Relógio d’Água, 2006. As referências e citações do texto remetem para este último.   
[2] H. Arendt, contrariando a convicção comum de que os problemas inerentes à crise da educação se circunscrevem no tempo e no espaço, parece vaticinar o seu alargamento à escala mundial e enunciar, avant la lettre, um princípio de globalização hoje amplamente reconhecido: “Pelo contrário, podemos tomar como regra geral da nossa época que tudo o que pode acontecer num país pode também, num futuro previsível, acontecer em qualquer outro país.” (2006, p.184) 
[3] Apesar de H. Arendt não o ter previsto, a absolutização do mundo infantil transformou-se, nos dias de hoje, no fenómeno de infantilização dos adultos, fenómeno potenciado pelas estratégias depredatórias do neo-capitalismo. Ver a este propósito a obra de Barber, B., (2007), Comment le capitalisme nous infantilise, La Flèche, Fayard.
[4] Seria interessante cruzar a concepção arendtiana de endoutrinamento, presumivelmente presente nos textos em que trata de analisar as origens do totalitarismo ou a articulação dos conceitos de política e de verdade, com a de Olivier Reboul. Contudo, dadas as limitações impostas pelos objectivos subjacentes a este trabalho, essa tarefa não é exequível.
[5] É evidente que H. Arendt, com base nos seus pressupostos problemáticos e conceptuais, concebe as relações que se estabelecem entre adultos, na construção do espaço público, a partir de um modelo de horizontalidade relacional em que a acção discursiva percorre os agentes tomados como iguais entre si. O mesmo não se passa na relação entre adultos e crianças, em geral, ou, em particular, na relação pedagógica, de natureza hierárquica e desnivelada, assente no modelo de verticalidade relacional. Aliás, o carácter de acuidade inerente à crise da educação, para a filósofa judia, tem que ver com o nivelamento operado na relação educativa. Cf. Arendt, H., (2006). Entre o passado e o futuro, Lisboa, Relógio D’Àgua, p.190. “Deste modo, o que faz com que a crise da educação seja tão especialmente aguda ente nós é o temperamento político do país, o qual luta, por si próprio, por igualar ou apagar tanto quanto possível a diferença entre novos e velhos, entre dotados e não dotados, enfim, entre crianças e adultos, em particular, entre alunos e professores. É óbvio que este nivelamento só pode ser efectivamente alcançado à custa da autoridade do professor e em detrimento dos estudantes mais dotados”.   
[6] O conceito de autoridade mereceu, por parte de H. Arendt, uma análise aprofundada no artigo publicado originalmente, em língua alemã, com o título “was ist Autorität” (Der Monat, 8, 1955-1956, nº 89, pp. 29-44) e retomado em Between Past and Future: Six Exercices in Political Thought (1961). Em língua portuguesa foi publicado em Entre o passado e o futuro: oito exercícios sobre o pensamento político, Lisboa, Relógio d’Água, 2006, pp. 105-154. Este texto constitui-se ainda hoje como uma referência na tematização da autoridade, no qual H. Arendt procede a uma espécie de genealogia do conceito, centrando-se fundamentalmente nas etapas do mundo pré-moderno (gregos, romanos e idade média). É com a Igreja, na idade média, que a estabilidade dos pilares do mundo antigo – tradição, autoridade e religião – é maior. A partir de então, como se depreende: “sempre que um dos elementos da trindade romana composta por religião, autoridade e tradição fosse posta em dúvida ou eliminada, as outras duas sofriam um forte abalo.” Cf. Arendt, H., Entre o passado e o futuro, Lisboa, Relógio D’Água, 2006, p. 141.
[7] A expressão empregue por Alain Renaut, em O Fim da Autoridade, é duplamente feliz: por um lado, porque dá conta de um movimento, o da modernidade, que ocorre tendo como base em forças intrínsecas, configurando os seus a priori históricos da democraticidade (liberdade e igualdade); e por outro lado, porque remete para a ideia do fim da autoridade como um atrofiamento de um órgão, no interior de um sistema morfológico, por falência da própria função.
[8] “Considerar então, para escapar a esta inverosimilhança, que a relação educativa pudesse permanecer como uma espécie como uma espécie de ilhéu de universo tradicional num mundo em que se afirmavam em todas as outras áreas os valores da igualdade e da liberdade, é substituir a primeira inverosimilhança por uma outra. A hipótese acarinhada tão frequentemente pelo antimodernismo educativo, em particular quando se apela a tornar a escola santuário para a subtrair ao que rege o resto do mundo humano, parece-se desta vez como uma ilusão retrospectiva: como poderiam os pais e educadores ter sido e, a fortiori, como poderiam hoje em dia ser animados, nas suas actividades de pais e educadores, por outros valores que não os que os progressivamente animaram como cidadãos, depois como trabalhadores ou empregadores, ou como homens e mulheres no seio do casal e fora dele? A hipótese de transformar em santuário o espaço educativo equivaleria, de facto, a expor as nossas existências e as nossas consciências a incessantes conflitos internos entre os valores em que nos inspiramos na grande sociedade e aqueles segundo os quais nos regularíamos na micro sociedade familiar e escolar.” Cf. Renaut, A. (2005). O Fim da autoridade. Lisboa: Instituto Piaget, pp.114-115.

Todo o discurso é ideológico

Todo o discurso é ideológico. Particularmente o político, no sentido em que declara opções e selecciona alternativas. E, em nome de uma específica concepção do bem comum, decide-se por uma configuração do mundo que considera preferível às demais. Fazendo-o, elege, entre outras coisas, um modelo de justiça, assim como o modo como se distribui a riqueza. Também o discurso da economia não é imune à ideologia. Por isso é plural e, como não podia deixar de ser, enuncia coisas diferentes, em função de diversos entendimentos acerca de como produzir e repartir a abundância ou a escassez dos bens disponíveis. Por conseguinte, não surpreende encontrar diferenças entre os discursos keynesiano e hayekiano, ou entre o daqueles que defendem as virtudes de uma economia regulada (pelo Estado) ou auto-regulada (pelo mercado). Isto para não falar de um discurso heterodoxo, que apela para a necessidade urgente, para garantir a sustentabilidade do planeta, de se optar pela via do decrescimento económico.
Apesar disso, assiste-se hoje à hegemonia de um discurso económico, que pretende constituir-se como uma dogmática a caucionar. Apresenta-se a si próprio com a roupagem asséptica da evidência matemática, moldada por argumentos de inevitabilidade que dispensam controvérsia. Sobretudo exibe-se como isenta de ideologia, quando na verdade esconde uma ideologia bem definida. Acabar com as políticas sociais ou reduzi-las ao insignificante e, de certo modo, com a necessidade de decisões democráticas, fazendo passar opinião pública (manipulada) por espaço público de discussão, está no ADN da ideologia económica hoje dominante. O problema é que também assistimos à submissão total do discurso político a este tipo de discurso, que ambiciona passar por único se diz portador da verdade indisputável.

sexta-feira, novembro 26, 2010

Miguel Sousa Tavares dixit, e eu até concordo

Nem sempre estou de acordo com o que escreve o jornalista Miguel Sousa Tavares. Por vezes, o meu desacordo é quase total. Contudo, revejo-me inteiramente nas suas palavras publicadas na mais recente edição do Expresso: “estou farto dos mercados!” Farto dessa conversa “da constante ameaça dos mercados.” Em primeiro lugar, porque se fala dos mercados com aquela reverência asinina com que outrora se genuflectia diante a imagem do divino. Bem sei que foi Adam Smith, o pai do liberalismo económico, a apelar para a “mão invisível de Deus” para designar um poder sem rosto de auto-regulação dos mercados. Só que a mão é hoje bem visível e tem um rosto – o rosto da ditadura em que se transformou este “capitalismo moralmente pervertido e socialmente insustentável.” Em segundo lugar, porque o discurso unanimista que por aí prolifera, ancorado num argumento da inevitabilidade de pouco sólidas bases, não é por ser repetido ad nauseam que se torna válido. Pelo contrário, a falácia é evidente: em política, as alternativas existem. É possível enveredar por outros caminhos. Não sendo assim, mais vale riscar dos dicionários a definição de política e de democracia. Revejo-me sobretudo no que escreve MST: “A falência óbvia do socialismo foi o caminho aberto para a libertinagem, sem regras, sem princípios morais e sem qualquer preocupação de que a economia sirva os povos, em lugar de os sugar.” Mas de tanto os sugar, um dia destes a coisa dá para o torto. E depois vai ser o bom e o bonito. Até lá, vamo-nos empenhando contrafeitos neste estranho exercício quotidiano de empobrecimento quase voluntário que nos querem impor como inevitável.

É preciso muito descaramento e… pouca imaginação.

O que aconteceria se um professor, ao ler dois trabalhos escritos por outros tantos alunos seus, no intervalo de umas horas, verificasse que ambos textos compartilhavam cerca de 80 % das palavras? Em princípio, nada. Talvez constatasse apenas que pessoas com a mesma afinidade etária, social e ideológica comungam de um léxico comum. No entanto, comparados os textos, se o professor aferisse que partilhavam 80 % das frases, com pequenas modificações apenas no início e fim das mesmas, concluiria certamente estar perante um acto fraudulento, a merecer, no mínimo, uma punição exemplar. Situação análoga foi descrita por dois jornalistas do Expresso, de 20 de Novembro de 2010: afirmam que o ministro das Obras Públicas, António Mendonça, e o seu secretário de estado, Paulo Campos, no 20º Congresso das Comunicações, do dia 18 de Novembro, proferiram discurso idêntico, na mesma sala, com um hiato de horas, provocando na assistência um autêntico efeito de déjà vu, de tal modo a réplica se assemelha ao original. Confrontado com o sucedido, o Ministério das Obras Públicas declarou “que a semelhança dos discursos se deve ao facto de a política do Governo ser a mesma.” No telejornal da RTP1, pude confirmar a constrangedora verdade da notícia. Dois oradores lêem, sem alma, um mesmo discurso desalmado, enaltecendo as virtudes das TIC para um putativo ganho económico do país, no futuro. Desta vez a justificação é outra: tudo de deveu a um lapso de envio de ficheiros. É caso para perguntar: terão sido traídos pelo choque tecnológico?

segunda-feira, março 22, 2010

sociedade do conhecimento e da informação - um lugar-comum

É corrente, hoje em dia, depararmo-nos com a designação “sociedade do conhecimento e da informação”. Tropeçamos nela com frequência, em todos os géneros de discurso, orais ou escritos. Tornou-se um lugar-comum, uma ideia feita, um preconceito. Como todos os conceitos - que vão perdendo o seu valor facial original à medida se transformam em moeda de uso (e abuso) corrente – também este se vulgarizou e passou a ocupar esse espaço não físico onde se alojam as ideias que nos habituámos a não questionar e onde se desenvolve uma imunidade ao problematizável. Poderíamos em rigor designá-lo como espaço mental do inquestionável. Existe uma semelhança entre o lugar-comum e o dogma religioso. A natureza do dogma religioso remete-nos para o domínio mental da crença incontestada, cuja intencionalidade pode ser descrita como um movimento de adesão total a uma ideia. Por norma, a crença incontestada traduz-se num enunciado que pressupomos ser incondicionalmente verdadeiro, seja porque não existem condições empíricas susceptíveis de o verificar, seja porque estamos perante um axioma que fundamenta a coerência interna do próprio sistema lógico ou teológico.
Ao ouvirmos ou lermos a expressão “sociedade do conhecimento e da informação”, aplicada à sociedade tecnologicamente desenvolvida em que nos vemos obrigados a viver, sob pena de cairmos numa espécie de marginalização sem retorno, não ousamos esboçar a mais pequena dúvida. Não ousamos formular, por exemplo, as seguintes questões: existiram sociedades que não fossem do conhecimento e da informação? Quais? É possível a existência de uma sociedade sem troca de informação e sem partilha de conhecimento? O que significa a designação “sociedade do conhecimento e da informação” por contraposição a outras sociedades que o não são? É uma questão de diferença de grau de conhecimento e de informação? De natureza dos mesmos?

domingo, março 21, 2010

dias

Começou ontem a primavera. O equinócio trouxe-nos, uma vez mais, noite e dia com a mesma duração. Hoje já o dia ganha avanço sobre a noite. É dia da árvore e dia da poesia. Hoje plantei uma árvore e li um poema. A árvore - uma tília - será multiplamente centanária, se a deixarem. O poema será certamente eterno. O poema intitula-se a "voz da tília" e a voz que primeiramente o cantou pertence a Florbela Espanca. e a voz canta assim:
A VOZ DA TÍLIA
Diz-me a tília a cantar: "Eu sou sincera,
Eu sou isto que vês: o sonho, a graça;
Deu ao meu corpo, o vento, quando passa,
Este ar escultural de bayadera ...
E de manhã o Sol é uma cratera,
Uma serpente de oiro que me enlaça...
Trago nas mãos as mãos da Primevera...
E é para mim que em noites de desgraça
Toca o vento Mozart, triste e solene,
E à minha alma vibrante, posta a nu,
Diz a chuva sonetos de Verlaine..."
E, ao ver-me triste, a tília murmurou:
"Já fui um dia poeta como tu...
Ainda hás-de ser tília como eu sou..."

quinta-feira, janeiro 07, 2010

Para reflectir (1)

"A questão do papel da publicidade na geração do consumismo ganha maior pertinência à medida que este modo de vida se torna ostensivamente patológico. Em princípio, a satisfação põe fim ao consumo. Mas no consumismo tudo sucede como como se não houvesse fim possível. O consumo torna-se insaciável e converte-se num objectivo em si mesmo. Já não se consome para satisfazer umas necessidades determinadas, mas por consumir. O shoping é o estádio definitivo do consumismo. A ânsia compulsiva e a necessidade de comprar sustentam a necessidade das coisas que há que comprar. O consumismo é uma droga, uma bulimia de mercado que nada parece poder limitar, nem sequer o facto de se tornar obeso."
Grupo Marcuse - Da miséria humana no meio publicitário

Sócrates socialista?

Há já muito tempo que, em Portugal, muitas pessoas de esquerda afirmam que o seu primeiro ministro, José Sócrates, secretário geral do PS, não é socialista. Afirmar que José Sócrates, à excepção das questões fracturantes, "meteu o socialismo na gaveta" tornou-se até um lugar-comum. O que se não esperava é o que o chefe de Estado francês, Nicolas Sarkozy, tivesse a ousadia de o demonstar inequivocamente quase por redutio ad absurdum. A demonstração teve lugar perante as estações de televisão de todo o mundo no simpósio "Novo Mundo, novo Capitalismo", que está a decorrer por terras de Astérix, para o qual Sarkozy convidou Sócrates. As palavras daquele a propósito deste foram grosso modo as seguintes. "Ele diz que é socialista. Eu não sou. No entanto, estamos de acordo em quase tudo." Logo,... Em consequência, fica o convite para extrair a conclusão. Não é difícil.

sábado, janeiro 02, 2010

Um Natal sem magia

Ainda que não se trate de um escritor genial, David Lodge é um autor que merece ser lido. Sem estar ao nível dos grandes mestres da literatura - quer do ponto de vista estilístico quer do ponto de vista da construção narrativa -, os seus romances são dotados de uma sensibilidade tipicamente britânica, que transformam o insustentável peso do ser numa sustentável leveza do existir. Aliviadas da densidade dramática excessiva, as suas personagens piscam o olho ao leitor, num convite inteligente à identificação com os seus sentimentos e pensamentos. Sempre que li os romances de David Lodge, fico com a sensação de estar perante um escritor que escreve com base numa experiência profunda do seu quotidiano. A sua vida é o laboratório onde ensaia as peripécias, o enredo e as personagens que cria com uma imaginação temperada com a mais fina ironia. O seu último romance - A vida em surdina - é uma boa oportunidade para ler sorrindo. Dele extraio um excerto que vem a propósito do que sinto em relação ao Natal.
"4 de Dezembro. Oh, como eu detesto o Natal! E não é só a data em si, mas também a própria ideia de que o Natal se aproxima, que nos é impingida cada vez mais cedo a cada ano que passa. Há semanas que um corredor inteiro do Sainsbury's foi reservado para as decorações de Natal, papel de embrulho de Natal, crackers, guardanapos de Natal, Pais Natal de gesso, renas de plástico e prendas de design horroroso e utilidade duvidosa, a maior parte delas fabricada na China não-cristã. (...)
Qual é a explicação para esta praga do Natal que brota em toda a parte? Quando eu era miúdo, o dia de Natal era feriado e depois a vida voltava ao normal, mas agora o Natal prolonga-se sem interrupções até ao fim do ano, uma festividade ainda mais sem sentido, o que significa que o país inteiro fica paralisado durante pelo menos dez dias, estupidificado por ter bebido demais, dispéctico por ter comido demais, falido por ter gasto demais em prendas inúteis, entediado e irritadiço por ter estado trancado em casa com familiares chatos e crianças rabugentas, e com os olhos com a forma do écran de tanto ver filmes antigos na televisão. É a pior altura do ano para se ter umas férias prolongadas à força, sendo as condições metereológicas mais tristes do que nunca e estando as horas de luz solar reduzidas ao mínimo. O Scrooge é o meu herói - isto é, o incorrigível Scrooge da primeira parte de 'Um Conto de Natal'. 'Pff, que disparate!' Ele tinha toda a razão. que pena ele ter mudado de ideias."

credo pagão

Passadas que foram as comemorações natalícias e os festejos de fim de ano, eis-nos de novo presos à realidade do quotidiano. Realidade que ninguém queria, aposto.
O Natal correu sob o signo do consumismo desenfreado, como tem sido timbre nas últimas décadas. Nem mesmo o estafadíssimo discurso da crise fez conter a febre despesista que se apoderou de todos nós, nas derradeiras semanas do ano de 2009. Ao primeiro sinal de uma retoma que se adivinha anémica, foi um ver se te avias. Tomados de uma volúpia insana, muitos portugueses sacaram dos cartões de crédito, de débito e das notas e vai de gastar que se faz tarde. Quem teve a desdita de percorrer as ruas e alamedas das grandes superfícies do consumo hodierno, nos dias que antecederam o vigésimo quarto de Dezembro, viu-se subitamente empurrado por uma onda de gente que desembocava nas catedrais de culto posmoderno.
O fim de ano não se ficou atrás. A maioria dos hotéis e dos restaurantes, dos bares e das discotecas, tiveram ocupação plena ou quase, como há muito tempo se não via. Nem o rigor excessivo de um inverno destemperado demoveu a nova crença dos fiéis do novo milénio.
Para tudo isso terá certamente contribuído a redução substantiva das despesas com os créditos à habitação e a inflação negativa, que aligeiraram o sufoco com que viveram muitas famílias nos idos de 2008.
Entretanto, tudo começa agora a regressar à normalidade, que é como quem diz, à costumeira mediocridade. Resta-nos pouco mais do que rezar a todos santinhos para que intercedam por nós junto do altar da divindade económica. Eu por mim já hoje comecei a entoar o credo pagão que me há-de redimir ao longo do ano: fui a uma loja e paguei com cartão de crédito. Abençoado seja.