quinta-feira, outubro 04, 2007

Tota o devorador de emoções

Há sete meses e pico que ele está a viver cá em casa. O mínimo que eu posso dizer é que a nossa vida mudou como da noite para o dia, ou vice-versa. Alteraram-se os hábitos e as rotinas, mudaram-se os comportamentos e os humores, o nosso pólo magnético rodou 180 º e as coordenadas da nossa existência viraram-se de tal modo do avesso que ainda hoje pergunto a mim mesmo onde pára o eixo das abcissas. O ele a quem me refiro chama-se Tota, tem dez meses, pertence à espécie canina.
O episódio que agora lembro ocorreu há mais ou menos trinta anos. Lembrá-lo hoje surpreende-me pela nitidez dos pormenores, sobretudo porque inúmeros outros vão permanecer na penumbra do esquecimento. Era ao entardecer de um dia igual a tantos outros. Num repente, ouvi o chiar dos pneus de um carro no atrito do asfalto e, de seguida, o som côncavo de um embate. Corri ao local onde se amontoava um magote de pessoas. Por entre pernas, braços, saias e calças avistei o pequeno Boneco estendido na calçada que ladeava a estrada. Contorcia-se no abraço da morte. Um fio de sangue espesso e escuro escorria-lhe do focinho e tingia o branco do calcário. Uma vizinha surgiu numa ânsia do desastre. “Quem foi atropelado?” – perguntou. “Foi o cão da vizinha Albertina” – respondeu-lhe o filho do sapateiro. “Então não foi ninguém? Foi um cão?” – tornou a interrogar desiludida. “Morreu, fodeu-se.” – Sentenciou ela categoricamente. E eu concordei em silêncio.
Menos cruamente, é certo, com um pouco mais de humanidade, sem dúvida, mas ainda assim foi esse o entendimento em relação aos bichos que me acompanhou pela vida fora. Um degrau acima das coisas, mas muitos abaixo das pessoas humanas.
Tudo mudou, no entanto, no dia em que o Tota entrou cá em casa, começando a contar, desde então, como um membro mais da família. À semelhança de um filho que, ao longo da sua meninice e adolescência, vai mudando sucessivamente o tipo de problemas que nos coloca, desafiando a nossa capacidade inventiva e persistência (e muitas vezes torrando-nos a paciência) no sentido de os resolver e tocar as coisas para a frente, o Tota porfia na invenção de situações problemáticas para as quais nenhum de nós se sentia preparado. A fase do xixi e do cocó, estrategicamente depostos pelos cantos da casa, já passou, felizmente. Aprendeu que tal género de dejectos não só não são comestíveis como têm o seu lugar natural de existência. Aprendeu também, para felicidade nossa, a sentar-se quando lho ordenam, a deitar-se ou a dar a patinha se lho exigem, e mesmo, qual número de circo, a erguer-se nas patas traseiras e tornar-se momentaneamente bípede quando ouve pronunciar a palavra “upa!” No entanto, continua muito longe de se tornar humano. Nos últimos dois meses deu-lhe para destruir os objectos mais singulares: óculos, sapatos, sandálias, chinelos, meias, calculadora, esferográficas, almofadas, a ombreira de uma porta, sofá, duas camas caninas, estantes, cadeirões, papéis e mesmo livros. Tudo lhe serve de objecto de brincadeira, sobretudo quando se apanha sozinho em casa. Esta está a transformar-se rapidamente num cenário de ataque de terrorismo. Este tem sido o nosso 11 de Setembro. E o Tota começa a parecer-se com um dos seguidores mais fiéis do Bin Laden. Democráticos como de facto somos, temos sido tolerantes. Mas a tolerância tem limites, como todos muito bem sabemos. Começamos a ponderar enviá-lo para Guantámano. O dilema está a tornar-se de tal modo agudo que quando venho a caminho de casa já sinto o coração aos sobressaltos. Este dilema formula-se assim: nem o Tota se tornou membro da família, nem nós nos tornámos membros da sua matilha. Por estas e por outras, se tivesse um pouco de fé, juro-vos que rezaria diariamente uma oração à virgem canina. Nestas situações não dá jeito nenhum ser ateu.
Termino estas linhas com o testemunho do jornalista Joaquim Fidalgo. Só tenho pena que o Tota, devorador de livros, jornais, esferográficas e resmas de papel, não o possa ler: “um cão gosta de nós e pronto. Não exige, contenta-se com tão pouquinho, com um mimo ou uma atenção, com uma velha bola de ténis, com um pauzinho apanhado na praia. E gosta de nós sem querer saber se somos ricos ou pobres, brancos ou pretos, conhecidos ou anónimos, do Porto ou do Benfica, altos ou baixos, lindos ou feios…Gosta de nós e pronto. E só quer que gostemos dele. Que não lhe façamos mal. Que o tratemos com carinho. Que lhe façamos festas. Que brinquemos com ele. Que o mimemos. Só isso.”E já agora acrescento: sabes bem, Tota, o quanto gostamos de ti.

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