domingo, maio 27, 2007

as borbulhas cruéis de uma adolescência

Os últimos anos têm dado a conhecer, sobretudo nos países desenvolvidos, um fenómeno social alarmante. Trata-se de uma nova patologia social que afecta um número crescente de famílias e cujas implicações, múltiplas e complexas, requerem de instituições como hospitais, tribunais, famílias e escolas respostas que vão para além daquilo que estamos habituados a procurar ao nível do senso comum. Refiro-me ao fenómeno de crianças e de adolescentes que maltratam os seus pais, chegando por vezes a recorrer à violência física, por motivos aparentemente fúteis e de difícil aceitação. Inaceitável e incompreensível, o comportamento dos fedelhos que vêm os pais como meros instrumentos de satisfação dos seus caprichos, como objectos das suas vontades patologicamente construídas, revela fundamentalmente o mal-estar vivido no seio de um tipo específico de civilização – a civilização que faz do consumo imediato o único fim que justifica a existência. Revela igualmente a importância de repensar o modo como os pais educam hoje em dia os seus filhos.
Javier Urra, autor do livro O pequeno ditador – da criança mimada ao adolescente agressivo, traçando o perfil desses adolescentes violentos, afirma ao Expresso: “ São jovens, entre os 14 e os 16 anos, que só conhecem o ‘aqui’ e o ‘agora’. Sempre tiveram tudo. Cresceram a exigir coisas, nunca foram contrariados, ninguém os obrigou a cumprir regras. Quando um miúdo evolui neste percurso, tem cada vez mais poder em casa. Entretanto, torna-se adolescente e só conhece aquela maneira de estar. Chega a um ponto em que a vida familiar se torna insuportável. E há um dia em que, quando a mãe o enfrenta, ele se vira: ‘Tu? Atreves-te a dizer não, a mim!?”
Este pequeno ditador (que pode exceder em tamanho a estatura dos progenitores) vai, ao longo da sua curta existência, desenvolver uma personalidade narcísica, profundamente egoísta, alicerçada numa mescla de incapacidades: de autonomia, de reconhecimento, de satisfação sadia e de ultrapassar as frustrações que decorrem das suas mesmas incapacidades.
Qual é a verdadeira dimensão do problema em Portugal? Os números que existem não são elucidativos, por razões compreensíveis – só em circunstâncias extremas os pais denunciam os seus rebentos; pelo contrário, tendem a desculpabilizá-los, por vezes de forma bizarra. No entanto, a situação é grave, porquanto tem vindo a aumentar nos últimos anos. Os dados da Associação de Apoio à Vítima (APAV) são os seguintes: “19 casos de pais vítimas de filhos menores de 18 anos, em 2004. Em 2006, foram apresentadas 26 queixas. Quando se fala em filhos maiores de idade, o número dispara de 229 para 394, entre 2004 e 2006.” Parecem irrisórios, os números. Mas sê-lo-ão de facto? Proponho a seguinte leitura, à falta de outra melhor: no que diz respeito aos ditadores mais jovens – e atendendo a que é justamente nestas idades que os pais mais relutância sentem em se queixar e mais prontos estão para desculpabilizar – os números reais devem ser efectivamente muito superiores aos registados; no que se refere aos ditadores já com o estatuto de maioridade, apesar de os números apresentados estarem mais próximos da realidade, ainda assim devem ser uma ficção. De qualquer modo, o crescimento de casos registados foi, respectivamente, de 27% e de 42%, nos dois últimos anos. Significativo? Indiscutivelmente. Preocupante? Sem dúvida.
Quem são os responsáveis pelo fenómeno? Que causas descortinamos a montante? Do meu ponto de vista, os pais e a sociedade de consumo. Os primeiros porque são permissivos e irresponsáveis. Confundem carências reais com virtuais e entregam à sociedade (a escola) uma tarefa que lhes cabe a eles, prioritariamente. Demitem-se de ensinar e são incapazes de contrariar, de forma sistemática e coerente, o os imperativos fictícios de uma sociedade consumista/hedonista que manipula o entendimento e a vontade dos seus filhos a seu bel-prazer. Enredados num sistema que aceitam acriticamente, no qual não reflectem por manifesta falta de tempo, afirmam: “Não podemos ser impositivos, não podemos ser traumáticos”. Os segundos porque encaram as pessoas como meios exponenciais de facturação de lucros, impondo a ideia de uma juventude orientada para o imediatismo do consumo como um valor absoluto e como um ideal incondicional de vida.
A propósito do assunto refere Javier Urra: “ Os casais têm filhos cada vez mais tarde. Em Espanha, a taxa de filhos únicos é elevadíssima: 76%. Passámos de famílias grandes para famílias pequenas e monoparentais. Os filhos ocupam o centro do universo familiar, e têm um papel desmesurado na vida do casal. Os pais têm pouco tempo para estar com eles e não partilham os seus problemas familiares nem as suas preocupações do quotidiano. Preservam-nos. Por outro lado, o sistema está totalmente montado para apelar ao consumo. Os pais protegem-nos da realidade e a realidade que absorvem é a transmitida pelos meios de comunicação e de consumo que fazem um discurso altamente valorativo da juventude.”
Podem os pais lutar contra o monstruoso sistema, esse capitalismo desenfreado faz da sociedade do espectáculo e do consumo a sua razão de ser e subsistir? Podem eles contrariar o primado do Ter sobre o Ser que tem constituído a espinha dorsal das sociedades contemporâneas altamente desenvolvidas? Apesar de “dois em cada cinco anúncios induzirem as crianças e os jovens ao consumo: ‘compra, precisas de ter” ; apesar disso e sobretudo por isso, é preciso ensinar as nossas crianças a mudar de perspectiva, a orientar o seu olhar para o mundo real e fazê-las participar na construção de uma realidade mais consentânea com o seu futuro de adultos responsáveis. Como se faz isso? Transmitindo-lhes “regras básicas. Cumprir obrigações, respeitar horários, penalizar a desobediência. (…) Pelo menos uma vez, um pai deve dizer ao filho: ‘um dia vais morrer, a vida não é eterna’. Também deve dizer: ‘És importante, mas não és mais importante do que eu, nem do que os teus avós, nem do que o teu professor.’ Levá-lo a um hospital para que vejam crianças doentes. E que os ensinem a repartir. A maioria destes jovens são filhos únicos. Só ajudando os outros é que se darão conta de que os seus problemas são pequenos.”
É urgente ensinar às nossas crianças coisas simples como: “é importante seres alguém, gostava que te esforçasses por seres melhor”. Tal como é urgente ajudá-los a desconstruir discursos e mensagens que apelam à ideia de que ter é a finalidade última da existência.
Termino com um testemunho de alguém que não conheço e que me escreveu estas palavras, a propósito de algo que eu escrevi sobre este mesmo assunto, no final do ano passado. Testemunho cruel mas verdadeiro, como muitas vezes assim é a vida. É a minha homenagem anónima a alguém anónimo que só queria desabafar:
“O que se pode dizer a uma mãe que tem filhos que não a amam? Que se aproximam só quando querem coisas? Que dizem palavras que magoam? Que dizem: ‘Este é o último Natal que quero passar contigo.’ Que dizem: ‘Gostava que fosses transparente, surda e muda!’ Que dizem sobre a infelicidade de uma colostomia: ‘Mãe, agora és um esgoto ambulante!’ Que dizem: ‘Amanhã faço anos! Espero que não me apareças pela frente!’ Não há palavras para exprimir quanta mágoa eu sinto. O cancro ou a colostomia comparativamente são uma pequena alegria quando alguém desconhecido nos conforta com uma palavra amiga no hospital.”

2 comentários:

popeline disse...

passa neste momento um programa num canal francês sobre os filhos que põe os pai em tribunal para lhes sacar cobres alegando maus tratos. Há sinais sombrios que se desenham nos céus.

Anônimo disse...

Obrigado por Blog intiresny