domingo, dezembro 04, 2011

Da democracia e da crítica que Platão lhe moveu

Recentemente, Grécia e Itália foram palco de uma encenação política que levou muita gente (eu incluído) a proclamar, com veemente indignação, aqui d’el rei que se tratava de uma tragédia à moda antiga, digna de um Ésquilo ou de Lívio Andronico. Em questão estava a substituição do primeiro-ministro Papandreu e do seu homónimo Berlusconi, eleitos por sufrágio popular, por Papademos e Monti, ambos tecnocratas de ofício e eurocratas convictos. A tragédia tinha um título – O crepúsculo da democracia.
            Porque a emoção é inimiga da reflexão, é proveitoso não nos deixarmos manipular pelo efeito comovente dos discursos (pathos) e, serenamente, sopesarmos os argumentos e decidirmo-nos por aqueles cuja força nos convença por maioria de razão.
            Foi Platão quem primeiro se debruçou sobre o assunto da melhor forma de governar. Curiosamente, da sua crítica à democracia podemos extrair o filão argumentativo que suporta a decisão de substituir políticos eleitos democraticamente por tecnocratas. Resumidamente, a argumentação platónica traduz-se no seguinte: se estivermos doentes e pretendermos curar-nos, confiamos no médico e não no voto da populaça a escolha do remédio eficaz; a ninguém lembraria confiar à assembleia de passageiros de um navio a arte de navegar em mar alto, tendo ali à mão a competência do comandante para impedir o naufrágio iminente; analogamente, só a cegueira mental justifica que entreguemos a uma turba de palradores ignorantes as decisões políticas. Por consequência, o poder de guiar a nau do estado deve ser dado àqueles que detêm o saber técnico para o efeito. Aqui deparamo-nos com o significado da palavra tecnocratas.
            À distância de vinte e quatro séculos, podemos ser tentados a subtrair créditos ao argumento de Platão, a desmerecê-lo mesmo, em razão das inclinações do filósofo por um género de tirania esclarecida, hoje por hoje desconsiderada à luz da mundividência ocidental. No entanto, os méritos da democracia, em tempos de incerteza e de angústia colectivas, correm o risco de ser depreciados por populações ansiosas à espera de um homem providencial e de retórica eficaz.
Se pretendemos acautelar o futuro da democracia não basta cantar loas às suas virtudes inquestionáveis, ou, como afirma Fareed Zakaria “não é felicitando-nos por viver em democracia que resolvemos os nossos problemas.” (O Futuro da liberdade, Gradiva). É necessário levar a sério o argumento de Platão e darmo-nos ao trabalho de desconstruir os seus fundamentos. E porque não aproveitá-lo para refundar os alicerces da democracia? É esse o objectivo do reputado jornalista e editor da Newsweek International, ex-professor de filosofia política em Harvard. “Actualmente o que temos necessidade em política, é de menos democracia, não de mais. Com isto não quero dizer que devemos apoiar autocratas ou ditadores, mas antes devemos interrogar-nos por que razão algumas instituições (…) funcionam mal.” Defende Zakaria que a solução para a uma democracia disfuncional é dotá-la de mecanismos de delegação, que permite que determinadas decisões não fiquem reféns de uma desregulação democrática, que é o que acontece quando os políticos decidem em função de interesses corporativos, sendo permeáveis ao nepotismo, aos favorecimentos, aos lobbies e à pressão eleitoralista. “O maior perigo de uma democracia sem entraves e disfuncional é que ela desacredite o sistema democrático em si, projectando uma sombra sobre toda e qualquer governação popular.” Delegar decisões e autoridade a instituições de reconhecida competência, sempre sob o controlo do Parlamento, é uma solução que retira ao argumento de Platão a dose de persuasão que, em tempos de crise democrática, lhe pode ser atribuída.     
              Afirmou um dia John Dewey: “O remédio para os males da democracia, é mais democracia”. Ao que me atrevo a acrescentar: sobretudo melhor democracia.    

Texto publicado originalmente no blog Jerusalém.

domingo, novembro 20, 2011

Impressões de leitura - Tony Judt

Tony Judt morreu o ano passado, vítima de uma doença degenerativa – esclerose lateral amiotrópica. A doença, diagnosticada em 2008, não lhe deixava margens para prognósticos esperançosos. A curto prazo, ficaria reduzido a um estado de mobilidade mínima do pescoço para cima. Daí para baixo, sem ajuda de terceiros, a imobilidade seria absoluta. Fisicamente prisioneiro de um corpo inabilitado, restar-lhe-ia uma mente livre para reflectir sobre acontecimentos e situações que a memória armazenou e lhos devolveria então, na penumbra nocturna, nítidos e em sequências narrativas concluídas. “Já doente há uns meses, percebi que, durante a noite, escrevia histórias completas durante a noite.” (O chalet da memória) Foi já nesse estado neurovegetativo avançado que escreveu dois belos livros: Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos e O chalet da memória, ambos publicados em 2010 (em Abril e Outubro de 2011 em língua portuguesa, pelas edições 70). São livros diferentes, arquitectados a partir de distintos pontos de vista. Mais intimista este, aquele mais didáctico. Percebe-se, ao lê-los, que o propósito de um e de outro divergem. Enquanto o primeiro tem uma natureza ensaística, o segundo reveste-se de um carácter testemunhal. No entanto, o pano de fundo permanece o mesmo: as mudanças sociais e políticas que ocorreram no mundo ocidental ao longo do século XX.
É sobre os acontecimentos deste último século que interessa reflectir, antes que nos deixemos conduzir pelos perigosos caminhos da “servidão voluntária” que nos querem impor os novos arautos da ideologia da inevitabilidade. “Acima de tudo, a servidão em que uma ideologia mantém a sua gente mede-se melhor pela sua incapacidade colectiva para imaginar alternativas. Sabemos muito bem que a fé ilimitada nos mercados desregulados mata: a aplicação estrita do que até há pouco tempo, em países em desenvolvimento vulneráveis, se chamava ‘o consenso de Washington – que punha a sua tónica numa política fiscal rigorosa, privatizações, tarifas baixas e desregulamentação – destruiu milhões de meios de subsistência. Entretanto, os ‘termos comerciais’ rígidos em que estes remédios são disponibilizados reduziram drasticamente a esperança de vida em muitos locais. Mas, na expressão letal de Margaret Thatcher, ‘não há alternativa’.” (O chalet da memória)
Se há característica predominante capaz de definir significativamente esta nossa época de modernidade globalizada, é o esquecimento do passado, logo abandonado e esquecido. Para além deste esquecimento, somos prisioneiros de um presente tecido com os fios da frágil imediatez e de um futuro incerto que nos devolve o medo de existir. A conjugação destes factores coloca-nos perante a reedição de cenários que a perda de memória potencia. A descrença na democracia como eficaz sistema de liberdade política e de justiça social, e o medo perante a incerteza do amanhã, alicerçados na ideologia economicista que proclama como horizonte único o dogma da inevitabilidade, abrem espaço ao aparecimento regimes políticos musculados e de figuras autoritárias e tutelares dos totalitarismos.
Só a memória do passado nos pode preservar do erro simples que consiste em acreditar em formulações do tipo: “não há alternativa”. A atitude profiláctica certa é a desconfiança. “Deveríamos desconfiar de proclamações do género. A ‘globalização’ é uma actualização de uma intensa fé modernista na tecnologia e na gestão racional que marcaram os entusiasmos dos decénios do pós-guerra. Como estes, ela exclui implicitamente a política como um palco de escolha: os sistemas de relações económicas são, como costumavam dizer os fisiocratas do séc. XVIII, determinados pela natureza. Logo que tenham sido identificados e correctamente entendidos, resta-nos apenas viver segundo as suas leis.” (Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos) Sem memória não passamos de “mentes cativas” e de sujeitos de uma “servidão voluntária”. Acreditamos ser esta a única alternativa?


Texto publicado originalmente no blog Jerusalém.

Portugal ou o canil da Europa

Com a certeza de que quem nos governa não mora neste recanto de angústias a que chamamos Portugal, li a entrevista que Poul Thomsen deu ao Expresso (19/11/2011). Todas as minhas suspeitas se viram confirmadas, preto no branco. Mas também tive surpresas. A ilustre personagem, que tem por missão resgatar a economia portuguesa do ciclo vicioso em que caiu (espiral de deficit e desequilíbrio das contas) e conduzir-nos para o caminho da virtude, mostra ter tantas certezas quanto o cidadão comum depois de ter feito exames médicos para saber qual a estirpe do cancro que lhe foi diagnosticado: “Depende da economia”, “Penso que é possível”, “Vamos ver como a economia responde”, “Se voltarmos e virmos a economia a afundar-se mais do que o previsto (…) então poderemos reconsiderar”, “Acredito que é possível se as reformas forem feitas”. Para navegar neste mar de incertezas era preciso mais do que uma bússola avariada.
A propósito da anunciada austeridade e da percentagem expectável da queda da economia para 2012 (3, 4, 5 por cento?) a resposta do senhor FMI, como alguma comunicação social gosta de lhe chamar, merece pontificar nos anais dessa ciência a que chamamos economia: “Esperemos não chegar a esse ponto. Queremos evitar ser um cão a correr atrás da própria cauda, no sentido em que uma economia mais fraca precisa de mais austeridade, o que por sua vez agrava a recessão, etc.” A imagem não podia ser mais certeira. Não é preciso ser-se um expert em psicologia canina para saber que esse comportamento obsessivo resulta de acumulação não de capital mas de stress, frustração e ausência de estímulos causados pela falta de liberdade. Temo que em breve Portugal se venha a transformar-se num canil para animais doentes por falta desse estímulo apelidado liberdade. Talvez este país tenha futuro como canil da Europa. 




Texto publicado originalmente no blog Jerusalém. 

sábado, outubro 15, 2011

jerusalém

Escrever é normalmente um acto solitário. Cada texto, bom ou mau que seja, tem a marca do seu autor. A opinião que se pretende crítica, parte sempre de uma perspectica única e pessoal, ainda que enquadrada por uma tradição ou por um sistema de crenças partilhadas, pano de fundo ideológico de onde irrompe a voz individual. Mas não se partilham somente crenças. Quando se partilham-se algumas ideias e sentimentos comuns, pode-se partilhar também a vontade de conjugar as vozes e formar uma espécie de coro. Foi o que sucedeu com três amigos. Assim nasceu um blog. Chama-se Jerusalém. Este post é um convite à sua visita.

sábado, março 19, 2011

Mestre do desenrascanço

Mestre do desenrascanço, perito da chica-espertice, eis como o português se classificou a si próprio durante décadas a fio. Desde que me lembro, sempre o português se olhou como um artista do engenho fácil, um finório que espreita a oportunidade de pôr em prática o imperativo do “desenrasca”, por não saber proceder de outro modo, ou simplesmente por que lhe está na massa do sangue.
Expressões comuns como “vê lá se me desenrascas isso”, “estou num enrascanço que só tu me podes valer”, “eu dou-lhe um toque, pode ser que os tipos te desenrasquem essa merda”, revelam bem a importância que o verbo desenrascar assumiu na formação do nosso ethos. Poderíamos mesmo defini-lo, recorrendo à fórmula cartesiana, como o princípio ontológico e normativo da existência do português – “desenrasco-me, logo existo.”
Camões, a quem A Fortuna me traz peregrinando, / Novos trabalhos vendo e novos danos (Lusíadas, Canto VII, estância 79), é o protótipo do português que pede às Ninfas os favores necessários para se livrar do aperto em que se sente: Pois logo, em tantos males, é forçado/ Que só vosso favor me não faleça, (83) para assim poder cantar esses “engenhos de senhores” , que servirão de exemplo às gerações futuras para neles “espertar engenhos curiosos” (82).
O engenho camoniano, que é outra forma substantiva de expressar a arte do desenrascanço, por mais glorificado que mereça ser, é a razão de ser da nossa peregrinação de séculos. Não somos metódicos nem sistemáticos. Na ressaca das descobertas, passámos a viver de engenhos mesquinhos, expedientes apressados, na esperança de sobrevivermos amanhã que depois logo se verá. E assim nos vamos desenrascando nessa arte que é bem nossa.
A manifestação recente da “geração à rasca”, que mobilizou milhares de portugueses para as ruas, pela sua transversalidade etária e mesmo social, expressa bem esse sentimento que nos define. Saberemos nós recorrer a outra arte que não a do desenrascanço?

Precisamos de utopias como de pão para a boca

Precisamos de utopias como de pão para a boca. Numa época em que o neo-capitalismo de rosto consumista se mundializa – escorado num ultraliberalismo sem freio e num hedonismo de apetite insaciável – não se descortina, no horizonte imediato, um rasgo no céu da política capaz de nos redimir do pecado do individualismo radical ou do egoísmo ético que configuram o espírito do tempo e nos moldam o carácter.
A weltanschauung dominante da modernidade tardia em que nos cabe viver identifica-se com aquilo a que Max Weber designa por “espírito do capitalismo”. Se despojarmos este espírito da sua dimensão religiosa – da ética protestante e ascética – descobriremos um dos seus traços característicos que é precisamente a crença num progresso irreversível da acumulação de capital, de onde procede a mobilização da força do trabalho como força produtiva da riqueza geral da sociedade. O combustível desta dinâmica de crescimento de consumo chama-se publicidade comercial, ou melhor ainda, propaganda ideológica, pois o objecto que se vende é, antes do mais, uma mercadoria revestida de uma ideologia: o capitalismo consumista. Sob a ética consumista o poder da publicidade assume tendências totalitárias, tomando conta de todas as dimensões da vida humana e encerrando-a numa “jaula de ferro”. No entanto, o móbil de crescimento ilimitado que subjaz à ideologia do capitalismo consumista esbarra com o espectro de um futuro sem história, porque sem homens. Ao limite, este “totalitarismo publicitário” conduzir-nos-á (se é que já não nos conduziu) a um beco sem saída, até onde caminhará o “último homem”, incapaz de se superar a si mesmo.
Só uma utopia concretizável nos facultará um guia para sair do beco para onde nos fomos conduzindo. É disso mesmo que nos fala Serge Latouche no seu livro Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno (Edições 70, 2011). Partindo da convicção de que “o capitalismo generalizado não pode deixar de destruir o planeta tal como destruiu a sociedade e tudo o que é colectivo”, este arauto do “decrescimento sereno” considera que a sua concepção de uma “sociedade do decrescimento não é nem um retorno ao passado, nem uma acomodação ao capitalismo”, mas sobretudo uma “superação (…) da modernidade”. Resta saber se esta utopia é concretizável, isto é, se o futuro a acolherá como condição de possibilidade para superação do “último homem”.