domingo, junho 03, 2007

Nietzsche ou o profecta de todos os desertos

Apesar de ser talvez o filósofo mais comentado e venerado do mundo ocidental, Nietzsche não é certamente o melhor compreendido, por variadas razões, nomeadamente pelo carácter assistemático e errante do seu pensamento, pela forma aforística dos seus textos mais conhecidos e pelo tom irónico e profético da sua voz.
Obras com o título Assim falava Zaratustra, Anti-cristo, Para além do bem e do mal e O crepúsculo dos ídolos – ou conceitos do quilate dos super-homem, eterno retorno e vontade de poder constituem, nas palavras que delimitam os seus contornos, um apelo e uma sugestividade que justificam o êxito enorme que teve logo após a sua morte. Se lhe acrescentarmos a figura austera, o semblante carregado, a bigodaça farfalhuda de piaçá, bem como o facto de se ter dirigido explicitamente ao homem do porvir, com promessas de uma redenção suspeitamente envenenada, percebe-se o quanto a sua filosofia pode ter de atractivo aos olhos e ao entendimento (ou sua falta) dos biliões de pessoas que vivem hoje sob o signo do prognosticado niilismo, ainda o século XIX não se tinha cumprido de todo.
Nietszche é o filósofo que levou a crítica ao paroxismo do seu estatuto filosófico mais autêntico. Radicalizou-a, conduzindo-a às suas consequências mais extremas e perigosas – objectivamente, à suspeição dos pilares ou valores em que assenta a civilização ocidental; subjectivamente, ao trilho da loucura que o encerrou onze longos anos no silêncio da inocência. Nos escombros desse silêncio prenunciava-se o deserto que cresceu e inunda hoje os nossos dias. É o vento desse deserto que urge escutar, decifrando nele os sentidos múltiplos daquela voz que precisava de se mascarar para enunciar verdades que ferem como punhais assassinos.

Nenhum comentário: