O meu cão já não é um cachorro. É agora um ser adulto da espécie canina. Está prestes a fazer dois anos e, inevitavelmente, perdeu alguma da graça que tinha. Graça que tem tudo o que é pequenino, imaturo e desinquieto. O que perdeu em vivacidade e espontaneidade, ganhou em continência (física e psicológica). Nas perdas e ganhos do crescimento, nessa passagem quase iniciática de uma ordem do ser para outra, muitas transformações se foram operando: deixou de fazer as suas necessidades em casa (um drama mais humano que canino), deixou de olhar para os pequenos rolos de merda que acabava de depositar no chão da casa como apetitosos croquetes de carne, perdeu a mania de roer tudo o que se encontrasse à distância de um abocanhar e de carpinteirar os móveis da sala e do hall, amenizou a ânsia de perder os donos quando estes se ausentavam de casa mesmo por breves instantes; ganhou estabilidade emocional nas ausências quotidianas dos membros mais velhos da matilha (nós), ganhou algum tino na sua exigência de brincar a toda a hora, dorme mais.
As mudanças mais significativas, porém, ocorreram nos momentos imediatamente posteriores às suas estadias forçadas em canis. Por cada temporada passada nos seus campos de férias, mesmo quando não excedia dois a três dias, levava algum tempo até que recuperava a confiança. Por uma ocasião perdeu mesmo a voz: deixou de vocalizar alguns sons característicos que, por antropomorfização, interpretávamos como próximos do linguarejar humano. Hoje em dia é um cão diferente. Mas continua feliz, sobretudo quando passa temporadas numa aldeia do norte. Aí só tem por limites os territórios marcados por outros cães que ele fareja à distância, o cajado do pastor que não lhe permite aproximar-se do rebanho que pastoreia nos prados verdes, e a noite que ele sabe que é o momento de regressar ao seio da matilha. Por vezes depara-se com o inesperado de um cão hirsuto que, inopinadamente, lhe rasga o casado de pêlo preto que nunca despe. Tudo o resto é liberdade à solta. Liberdade para ladrar aos forasteiros que se avizinham da casa onde a matilha se acolhe. Liberdade para trotar pelos lameiros, saltar muros, atravessar milheirais, brincar horas a fio com outros cães que já aprenderam a vir rondar os muros do jardim como quem o vem chamar para uma ronda de circunstância. Afeiçoou-se à canzoada que o distingue como um dos seus.
Entre as demais transformações que o meu cão sofreu, a mais profunda é a de consciência (não alinho na proverbial distinção que separa os humanos racionais dos bichos irracionais). O meu cão é um cão com consciência de classe – ou da falta dela, rafeiro como é. Detesta cães classificados com pedigree: dálmatas, caniches, cockers, etc. Até parece conhecer a cartilha marxista de uma ponta à outra quando se depara com qualquer cão a passear maneirismos de nobreza de sangue ou burguesia de espírito. Quando assim acontece, o meu cão rafeiro tem a mania que é doberman ou roteweiller. Eriça a pelagem do cachaço, arreganha os dentes, espeta o rabo, e o todo o seu corpo se inteiriça e ganha tamanho, como se num repente a sua memória ancestral de lobo predatório tomasse conta de todas as células do seu ser. Nesses momentos, torna-se um problema bicudo segurá-lo, ao ponto do couro de que é feita a trela parecer que se vai desfazer em tiras. Apesar disso, continua a ser um cão lindo. O mais lindo cão do mundo.
As mudanças mais significativas, porém, ocorreram nos momentos imediatamente posteriores às suas estadias forçadas em canis. Por cada temporada passada nos seus campos de férias, mesmo quando não excedia dois a três dias, levava algum tempo até que recuperava a confiança. Por uma ocasião perdeu mesmo a voz: deixou de vocalizar alguns sons característicos que, por antropomorfização, interpretávamos como próximos do linguarejar humano. Hoje em dia é um cão diferente. Mas continua feliz, sobretudo quando passa temporadas numa aldeia do norte. Aí só tem por limites os territórios marcados por outros cães que ele fareja à distância, o cajado do pastor que não lhe permite aproximar-se do rebanho que pastoreia nos prados verdes, e a noite que ele sabe que é o momento de regressar ao seio da matilha. Por vezes depara-se com o inesperado de um cão hirsuto que, inopinadamente, lhe rasga o casado de pêlo preto que nunca despe. Tudo o resto é liberdade à solta. Liberdade para ladrar aos forasteiros que se avizinham da casa onde a matilha se acolhe. Liberdade para trotar pelos lameiros, saltar muros, atravessar milheirais, brincar horas a fio com outros cães que já aprenderam a vir rondar os muros do jardim como quem o vem chamar para uma ronda de circunstância. Afeiçoou-se à canzoada que o distingue como um dos seus.
Entre as demais transformações que o meu cão sofreu, a mais profunda é a de consciência (não alinho na proverbial distinção que separa os humanos racionais dos bichos irracionais). O meu cão é um cão com consciência de classe – ou da falta dela, rafeiro como é. Detesta cães classificados com pedigree: dálmatas, caniches, cockers, etc. Até parece conhecer a cartilha marxista de uma ponta à outra quando se depara com qualquer cão a passear maneirismos de nobreza de sangue ou burguesia de espírito. Quando assim acontece, o meu cão rafeiro tem a mania que é doberman ou roteweiller. Eriça a pelagem do cachaço, arreganha os dentes, espeta o rabo, e o todo o seu corpo se inteiriça e ganha tamanho, como se num repente a sua memória ancestral de lobo predatório tomasse conta de todas as células do seu ser. Nesses momentos, torna-se um problema bicudo segurá-lo, ao ponto do couro de que é feita a trela parecer que se vai desfazer em tiras. Apesar disso, continua a ser um cão lindo. O mais lindo cão do mundo.
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