quarta-feira, outubro 22, 2008

ministra sinistra

No passado dia 16 de Outubro saiu na Visão uma entrevista de Maria de Lurdes Rodrigues, ministra da educação, ao jornalista Paulo Chitas. O mínimo que se pode dizer, em comentário, é que se trata de mais do mesmo. O máximo, é que a senhora pronuncia um chorrilho de palavras ocas e de aleivosias indignas do lugar que ocupa.
Destaco apenas dois momentos da entrevista:
À pergunta do jornalista “acha normal que uma criança de 14 anos tenha este (36 horas lectivas semanais) horário escolar?”, Maria de Lurdes Rodrigues responde com outra pergunta “e o que é que retirava? (…) qual é a alternativa?” E justifica com a ideia da escola a tempo inteiro, etc., etc. Vale a pena ler na íntegra para percebermos o quanto as medidas tecnocráticas se sobrepõem à reflexão ponderada acerca da natureza das crianças e dos fins da educação.
Conheço um adolescente de 14 anos, que estuda na Escola Secundária de Palmela. Tem 36 horas lectivas semanais: aulas de Ciências da Natureza, Físico-Química, Educação Física, Educação Visual, Francês, Inglês, Geografia e História, Língua Portuguesa, Matemática, Expressão Plástica, Área de Projecto, Estudo Acompanhado e Formação Cívica e Introdução às Tecnologias de Informação e Comunicação. Tem aulas todos os dias das 8 às 18 horas, excepto durante duas manhãs. Acha normal que uma criança de 14 anos tenha este horário escolar?
E o que é que retirava?
Não sei. A senhora é que é a ministra da Educação.
Mas o que é que retirava? Retira o Inglês ou as línguas estrangeiras? A Matemática? O Português?
Para não iludirmos a pergunta, o que pretendo saber é se acha adequada esta carga horária para uma criança de 14 anos.
Mas qual é a alternativa? Quais são as práticas internacionais? É retirar? É encolher a escola? E o que é que resta aos alunos se se encolher a escola? Não é dramático que os alunos não tenham música ou desporto na escola, se os pais lhes puderem proporcionar essa formação.
É essa a prática internacional?
Portugal não faz coisas muito diferentes do que fazem os outros países. E, depois, a questão é sempre a mesma: o que é que se retira? Estão preparados estudos para se fazer uma revisão do ensino básico, à semelhança do ajustamento que se fez no secundário. No básico, nós não fizemos nenhuma alteração de fundo, digamos assim, mas há vários problemas com a reforma do básico, como a transição entre o 1.º e 2.º ciclos, que melhorámos muito, ao ter introduzido o Inglês, a Educação Física e a Música no 1.º ciclo. Já diversificámos o contacto dos alunos com os adultos e, portanto, a transição é menos brusca. Agora precisamos de fazer o contrário, que é reduzir o leque de... A reforma já previa que, por exemplo, a Matemática e as Ciências pudessem ser dadas por um único professor. Mas há outros problemas, que resultam da maneira como as coisas se concretizam a nível da escola, no quadro da sua autonomia.
Mantenho o essencial: estamos a falar de um horário de trabalho de adulto.
Ouça. Qual é a alternativa?
Brincar. Ir correr para a rua, com os amigos, ter outro género de actividades...
Esta história do tempo para brincar é uma história nova, que surge agora com a escola a tempo inteiro. É uma espécie de resposta à escola a tempo inteiro. O ministério criou as actividades do 1.º ciclo, que respondem a várias necessidades das famílias e das crianças, criou a escola a tempo inteiro e as crianças, de facto, estão lá a tempo inteiro. Ou melhor, a escola tem de funcionar a tempo inteiro, se as crianças lá estão ou não é uma opção das famílias. Mas, repare, como é que era no passado? No passado era uma escola pública reduzida a mínimos absolutamente intoleráveis, uma escola que funcionava das nove à uma. Em que se dava às crianças o mínimo. Mas o País pode dar mais, pode dar Inglês às crianças do 1.º ciclo, dar-lhes Educação Física, Música. O que acontecia às crianças que estavam nessa escola pública de manhã? À tarde tinham a privada, tinham os ATL. Mas eram só para as famílias que podiam pagar, não eram para todas as crianças.
Mas o grau de autonomia de uma criança do 1.º ciclo é diferente do de uma de 14 anos.
Havia uma escola a tempo inteiro para as crianças que podiam pagar. Nunca ouvi uma crítica ao tempo para brincar das crianças cujos pais andam com elas para a escola de música, para o ginásio, para a explicação, para aqui e para ali. São crianças também sobreocupadas, porque os pais procuram dar-lhes o melhor. Olhe para os colégios privados de referência. As crianças estão lá quantas horas? Têm lá a música? Têm. Têm lá o ballet? Têm. Têm lá o Inglês? Têm. Têm lá, às vezes, a segunda língua estrangeira? Têm. Têm tudo dentro da escola. E as crianças estão lá. Não brincam? Brincam. Diz-se, numa atitude romântica, que «não há tempo para as crianças brincarem». Acho que só mentes muito perversas é que podem pensar que o facto de estar na escola corresponde a uma jornada de trabalho. Em Portugal, a maior parte das mulheres trabalham. E precisam absolutamente que a escola seja um espaço seguro e qualificado, ao qual possam confiar as suas crianças.”
Outra pergunta, outra resposta do mesmo género, desta vez não se coibindo de lançar um ataque aos profissionais do ensino, ainda que de forma velada.
"Porque é que há uma corrida dos professores à reforma - 700 só no próximo mês?
O aumento da idade de reforma e a alteração do estatuto de carreira do docente acarretaram, sobretudo para os professores em fim de carreira, uma mudança. Alguns iam à escola quatro horas por semana. Foi preciso dizer aos professores que as outras horas de trabalho, que o País paga, são precisas nas escolas, que os alunos precisam delas. Imagine um professor que ia oito horas à escola e que, de repente, passa a estar lá 25! Pessoas que acumulavam nos colégios privados, deixaram de poder acumular. Isto é dramático? Do ponto de vista do sistema, não é dramático. Hoje, o País tem milhares de jovens diplomados a querer entrar no sistema de ensino."
Neste último excerto, a ministra faz uso do discurso com uma única intenção: manipular a opinião pública, envenená-la, pondo em causa, uma vez mais, a dignidade de uma classe que tinha por obrigação acarinhar. Faz precisamente o que sempre tem feito, desde que tomou posse do cargo que ainda ocupa, mas que em nada a dignifica, nem como ministra nem como pessoa.
Selamos claros. O que ela quer dizer é mais ou menos o seguinte: Os professores, grande parte deles, estavam acostumados a pouco ou nada fazer ao serviço do sistema, usando-o em proveito próprio (acumulações); obrigados, agora, a permanecer mais tempo na escola, abandonam o barco como ratos.
A falsidade do que diz não se detecta a olho nu. Mas basta pensar um poucochinho e não se deixar levar pela propaganda orquestrada, nos últimos anos, com o objectivo de denegrir a imagem dos professores, rotulando-os como um bando de malfeitores que se não querem moldar ao sistema de benfeitorias que pretende ser o ministério da educação actualmente.
Primeira falsidade: os professores em fim de carreira, habituados ao bem-bom que era passar quatro horas na escola, não querem mudar de vida e pedem a reforma. Num instante, passa das quatro para as oito horas (em que ficamos?), reforçando a ideia de que a dificuldade em aceitar a mudança se deve ao facto de, repentinamente, deixarem de poder servir-se das benesses do sistema antigo em benefício próprio.
Segunda falsidade: os professores passam agora 25 horas na sua escola. Vinte e cinco? A senhora ministra pretende lavar o cérebro a quem? Qual é o professor que passa hoje em dia menos de trinta horas semanais no seu estabelecimento de ensino? E as reuniões? E a reunite que começou aguda e se está a transformar em doença crónica? E a burocracia? E os papéis cujo preenchimento obrigatório (e não facultativo) constituem a lógica de um sistema irracional? E as horas que os professores passam em casa a preparar aulas, reuniões, a elaborar e corrigir fichas, testes (diagnósticos, formativos, sumativos, e o mais que imaginar se possa), a magicar estratégias de ensino, a congeminar soluções mágicas para desbloquear carências de motivações profundas (nem que para tal se tenha de mascarar de psicanalista ou padre), a fazer de mãe, pai, padrasto ou avó, num acumular de especializações que ninguém, com o mais pequeno bom senso, considera possível. Isso convém-lhe omitir?
E depois vem a tirada retórica – “acha isto dramático?” Sim, senhora ministra. E o drama está a alastrar de tal modo que não há quem possa aguentar. Por isso pedem a reforma. E muitos mais pediriam se em condições de o fazer estivessem.
Termina a ministra, a quem já chamam sinistra, com uma ameaça: “Hoje, o País tem milhares de jovens diplomados a querer entrar no sistema de ensino”. Por quanto tempo? A tudo isto se chama manipular. Ora, manipular não é sinónimo de convencer. Ao primeiro pertence o discurso que visa mover as pessoas pela emoção, numa manifestação de degeneração ética do emissor e do receptor. Só ao segundo pertence o discurso que visa a elevação da inteligência de quem escuta ou lê, contribuindo para a construção ética de qualquer pessoa.

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