terça-feira, maio 08, 2007

a actualidade de Eça ou a inactualidade do país

Dedicado ao amigo Chico da Popeline, autor de um dos blogues mais bem dispostos da blogosfera escrita na língua de Camões (http://tirem-me-deste-filme.blogspot.com/).
As Farpas constituem um projecto a dois - decorria o ano de 1870 - e resultava duma parceria de Eça de Queirós com Ramalho Ortigão, que se vai consubstanciar num conjunto de crónicas mensais. Um ano e pico mais tarde, Eça abandona o projecto, por ter sido colocado como cônsul em Havana. Vinte anos depois as ter escrito, o autor, já então consagrado, decide reunir as suas num volume intitulado Uma campanha alegre. Já em Paris, em Outubro de 1890, escreve numa Advertência à publicação desta:
"As páginas deste livro são aquelas com que outrora concorri para as FARPAS, quando Ramalho Ortigão e eu, convencidos, como o Poeta, que a 'tolice tem a cabeça de touro', decidimos farpear até à morte a alimária pesada e temerosa."
Quando em Junho 1871 é publicada, em letra de forma, a primeira d'As Farpas da autoria de Eça de Queirós, a sociedade portuguesa está longe de imaginar que nascia um talento puro na arte de farpear com a pena, que nascia um mestre da caricatura desenhada pela palavra, pela qual surgiriam personagens e costumes expostos no seu ridículo e que são ainda hoje um espelho de nós próprios. Leiamos uma só página:
" O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. a classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. o desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Todo o vier espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce... O comércio definha. A indústria enfraquece. O salário diminui. a renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e como um inimigo.
Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o lucro.
De resto a ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. O número das escolas só por si é dramático. O professor tornou-se um empregado de eleições. A população dos campos, arruinada, vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinha e de ervas, trabalhando só para o imposto por meio de uma agricultura decadente, leva uma vida de misérias, entrecortada de penhoras. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do País. Apenas a devoção perturba o silêncio da opinião, com padre-nossos maquinais.
Não é uma existência, é uma expiação.
(...)
Vamos rir, pois. O riso é uma filosofia. Muitas vezes o riso é uma salvação. E em política constitucional, pelo menos, o riso é uma opinião."
Na boa tradição vicentina do ridendo castigat mores, Eça convida-nos ao juízo mais eficaz de todos, à opinião que provoca o riso mas igualmente à reflexão. Bem hajas, Eça! Bem hajam todos quantos fazem desta Filosofia do riso a sua Filosofia da existência.

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