sexta-feira, maio 11, 2007

Consumo, logo existo

Vivemos submersos por uma onda consumista que se abateu sobre a cabeça de todos nós. O acto de consumir transformou-se, entre os portugueses, em mais do que um hábito. É um vício de tal modo enraizado que mais parece uma dependência de heroína que nenhuma metadona consegue substituir ou enganar. E tudo isto em pouco tempo. Década e meia? Vinte anos, se tanto. No período antecedente ainda éramos definidos como um povo de gente poupada, gastando apenas o que podia e aforrando alguns tostões, de forma a prevenir eventuais despesas imprevistas e necessárias. Num instante tudo mudou. Tornámo-nos europeus, começámos a fazer parte do pelotão dos ricos e não quisemos esbanjar a oportunidade de agir em conformidade. Os anos que imediatamente se seguiram à nossa adesão à União Europeia deram-nos a ilusão de termos acedido a uma patamar de desenvolvimento económico irreversível. Pura ilusão. O desengano não tardou. Mas era tarde. De tão viviados estarmos, confundimos tudo e não quisemos abdicar do bem-estar e da prosperidade (ainda que aparentes) longamente sonhados na era das vacas magras. O pior foi quando o Banco Central Europeu, esses gajos lá da Europa - é assim que nos referimos a quem nos estraga a vidinha, simulando a distância - desataram a tomar medidas para relançar a economia. Num repente, o euro virou o mais negro dos nossos pesadelos e começámos todos a ter saudades do escudo que sempre chegou para os arremedeios.
É evidente que a fúria consumista que nos consome o tutano é como o Toyota - "veio para ficar". Ela instalou-se no âmago do nosso existir, ao ponto de substituir a nossa epiderme e de fazer parte da nossa corrente sanguínea. Se o ponto arquimediano de Descartes era o Cogito - o famoso "penso, logo existo" -, o nosso traduz-se no Consumo - "consumo, logo existo". Nada há a fazer, não haja ilusões. Não podemos ao mesmo tempo acreditar nas promessas do Neoliberalismo e do Mercado Livre e fechar-lhe os olhos e a alma. Vendemos a alma ao diabo, a cobrança era inevitável. E as suas exigências são proporcionais às suas necessidades: quanto mais felicidade assente no consumo desenfreado mais trabalho e produtividade temos de exibir. Contas são contas. Mudar de valores significa mudar padrões de vida. Nem que para isso tenhamos que deixar as nossas crianças ao deus-dará, entregues quiçá ao orfanato da cultura de entretenimento que lhes promete a felicidade ali mesmo à mão de semear - à distância de um clic - e nos devolve, anos volvidos, adultos formatados para o consumo a todo o preço. É por isso que cada vez mais o orçamento mensal das famílias portuguesas, qualquer que sejam as suas posses, se vê sobrecarregado com mesadas e reforços das mesmas, com gastos e mais gastos, ora para isto ora para mais aquilo, numa irresponsabilidade que os bancos agradecem e aplaudem. O incentivo ao consumo faz hoje parte de uma realidade transversal e os mais jovens - nem sequer os pais destes - não têm armas para travar esse combate desigual. É preciso não esquecer que David só venceu Golias num universo da ficção bíblica e enquadrado num paradigma mental de que hoje só nos resta uma vaga reminiscência. E não será usando uma funda que se derrubará o gigante que se reproduz e cresce dando-se ao consumo.

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