sexta-feira, maio 04, 2007

Preso por ter cão

Afirmar que o cão é o melhor amigo do homem traduz, à semelhança do que acontece com todos os provérbios populares, a pretensão de enunciar um saber que, por ser empírico - o tal saber de experiências feito, por Camões referido -, é necessariamente verdadeiro. Ora, tal não é o caso. Para que assim fosse, não se achariam contra-exemplos capazes de o refutar. Mas o facto é que achá-los não é tarefa impossível, nem pouco mais ou menos. Por maioria de razão, tão verdadeiro é dizer que o cão é o melhor amigo do homem como apregoar que o homem é o melhor amigo do cão. Ambas são verdades apenas circunstanciais e não lógicas, mas eu prefiro a segunda. Porquê? Nem que mais não seja porque o cão, enquanto espécie, deve a sua existência ao próprio homem. Para além disso (e essa é a principal razão que me levou a escrever estas coisas ) eu agora tenho um cão e sei bem quem é o melhor amigo de quem. Senão vejamos:
O sonho de ter um cão era um sonho antigo cá em casa, um sonho sempre diferido, sempre adiado, por isto e por aquilo. Porque viver num apartamento não era o mais adequado; porque era mais uma despesa a somar às demais, dificultando a já complicada gestão do orçamento; porque a ordem de trabalhos diária estava tão saturada de tarefas e afazeres que não se compadecia com nem que fosse um ponto mais extra; porque havia uma série de pequenas liberdades não abdicáveis que não se compatibilizariam com a realidade de partilhar a vida com um elemento da espécie canina, por mais desejável e sedutora que fosse a ideia; etc. Enfim, por uma soma enorme de incompatibilidades e um ror de circunstâncias ínvias estava mais do que decidido que ter um cão era quase a mesma coisa que sair-nos a lotaria ou o euromilhões.
O certo é que a sorte nada quis connosco, mas a ideia concretizou-se quando menos esperávamos. Um belo dia soubemos que uma colega da minha consorte foi ao canil municipal e adoptou um cão. Rejubilava de tamanha felicidade, apesar da experiência ter a curta duração de uma só semana. Num repente, todos os contras se esfumaram. No outro dia, sábado, corremos ao dito canil e saímos de lá com um cão nos braços, um rafeiro ladino de idade indefinida (apesar de cachorro), com uma doença de pele vulgarmente designada por "tinha", o último de uma ninhada que (por razões óbvias) tinha sido preterido em relação aos seus irmãos.
A partir daí, a nossa vida mudou. Durante um mês e pico o cachorro não poderia sair de casa (sentença da veterinária). O tratamento da "tinha" era lento e requeria paciência, muita paciência. Só depois desse período de quase quarentena seria possível vaciná-lo (e por doses). Em suma, somente ao fim de um mês e meio é que o cachorro pôs pé firme na rua. As consenquências foram inúmeras, algumas delas de todo imprevisíveis. O pior de tudo nem foi uma semana mal dormida, nem sequer as despesas directas (pomadas, desparazitações internas ou externas, vacinas e o diabo a sete) ou indirectas (ração recomendada pelos mais consagrados veterinários), nem mesmo a liberdade cerceada. O pior foi que o cão se habituou a fazer o seu xixi e o seu cócó em casa (nem sempre no sítio certo) e, já vai pra mais de um mês de passeios e passeatas (sempre com o saquinho no bolso para apanhar as necessidades sólidas do canino) e nada. Pode o passeio durar duas, três ou seis horas. O raio do cachorro é estóico. Aguenta firme. Mas mal chega a casa, corre direitinho e zás. Já está. É caso para dizer, mesmo não sendo uma verdade inquestionável: preso por ter cão...

Um comentário:

Anônimo disse...

Talvez o cão tenha que seguir o programa eleitoral de José Socrates: "Novas Fronteiras"
Chico da Popeline