quarta-feira, maio 16, 2007

uma leitura da crise da educação

A reflexão que Hannah Arendt leva a cabo no curto texto A crise da educação increve-se num contexto específico, o norte americano dos anos 50, o qual assume as proporções de problema político, associado aos “perigos decorrentes de uma baixa constante dos padrões elementares ao longo de todo o sistema escolar”. Podemos questionar a pertinência desta análise, circunscrevendo-a ao seu contexto histórico e geográfico. Todavia, é a própria autora que nos adverte contra o erro de tal crença, ao enunciar como “regra geral da nossa época que tudo o que pode acontecer num país pode também, num futuro previsível, acontecer em qualquer outro país”. Não estaremos perante a antecipação de um dos princípios da era da globalização?
Segundo Hannah Arendt a investigação da crise da educação só poderá dar frutos se nos descartarmos dos preconceitos e encararmos o problema da educação do ponto de vista da sua essência, a qual se traduz na “natalidade, o facto de os seres humanos nascerem no mundo”.
Constatando que, na América, a educação desempenha um papel diferente, fortemente politizado, cuja explicação se enraíza no facto desta ter sido sempre uma terra de imigrantes, a autora remete-nos para a imagem do que o país representa: “Uma Nova Ordem no Mundo. Os imigrantes, os recém-chegados, constituem para o país a garantia de que ele representa de facto a nova ordem. O sentido desta nova ordem, desta criação de um novo mundo em oposição ao antigo, era, e continua a ser, abolir a pobreza e a opressão.”
Este pathos do novo, articulado com a confiança numa “perfectibilidade indefinida”, vai traduzir-se num ideal de educação em que se são visíveis influências marcadamente rousseauianas, com consequências profundas na vida americana em geral e no seu sistema educativo em particular. “Ora, no que diz respeito à educação ela mesma, só no nosso século é que a ilusão emergente do pathos do novo produziu as suas mais sérias consequências. Em primeiro lugar, permitiu que essa mistura de modernas teorias educativas (…) que consiste numa espantosa salganhada de coisas com sentido e sem sentido, revolucionasse todo o sistema de educação sob a bandeira do progresso (…) uma transformação completa no que diz respeito às tradições e aos métodos de ensino e de aprendizagem. O facto mais significativo é que, em virtude de certas teorias, boas ou más, todas as regras da saudável razão humana foram postas de parte. O desaparecimento do senso comum que hoje se verifica é pois o sinal mais seguro da actual crise.”
É numa sociedade de massas que os problemas de educação se agudizam, transformando-se num fracasso, "quando são aceites de forma tão servil e acrítica as mais modernas teorias pedagógicas". A crise revela-se mais grave ainda em virtude do “papel que o conceito de igualdade desempenha e sempre desempenhou na vida americana. Trata-se de uma noção na qual está envolvida muito mais do que igualdade perante a lei; mais também do que o nivelamento das distinções de classe; mais mesmo do que aquilo que a expressão ‘igualdade de oportunidades’ designa.”
Num país ideologicamente igualitário, é impensável impor um sistema educativo alicerçado em princípios meritocráticos, de talento que sejam e já não de classe, como é o caso da Inglaterra. A consequência imediata resulta no nivelamento por baixo das exigências ao nível dos conhecimentos e a transformação do ensino secundário num prolongamento do ensino primário acessível a todos. As consequências mais mediatas traduzem-se numa crise da educação cada vez mais aguda, estruturalmente inscritas no “temperamento político do país, o qual luta, por si próprio, por igualar ou apagar tanto quanto possível a diferença entre novos e velhos, entre dotados e não dotados, enfim, entre crianças e adultos, em particular, entre alunos e professores. É óbvio que este nivelamento só pode ser efectivamente alcançado à custa da autoridade do professor e em detrimento dos estudantes mais dotados.”
Hannah Arendt apresenta-nos três ideias-chave que permitem explicar o efeito catastrófico das medidas político-educativas:
1 – Consiste na autonomização e absolutização do mundo das crianças, o que conduz à limitação da autoridade dos adultos, ao alargamento do fosso dos dois mundos (o dos adultos e o das crianças), e ao aparecimento tirania da maioria constituída pelo grupo dos seus pares. “A primeira é a de que existe um mundo da criança e uma sociedade formada pelas crianças; que estas são seres autónomos e que, na medida do possível, se devem deixar governar a si próprias. O papel dos adultos deve então consistir em limitar-se a assistir a esse processo. É o grupo de crianças ele mesmo que detém a autoridade que vai permitir dizer a cada criança o que ela deve ou não deve fazer. Entre outras consequências, isto cria uma situação na qual o adulto, não só se encontra desamparado face à criança tomada individualmente, como fica privado de todo o contacto com ela. (…) Emancipada face à autoridade dos adultos, a criança não foi portanto libertada mas antes submetida a uma autoridade muito mais feroz e verdadeiramente tirânica: a tirania da maioria. (…) A reacção das crianças a esta pressão tende a ser ou o conformismo ou a delinquência juvenil e, na maior parte das vezes, uma mistura das duas coisas.”
2 – Consiste no predomínio da pedagogia sobre os outros saberes em matéria de ensino, fruto da influência da psicologia moderna e das doutrinas pragmáticas. A sobrevalorização da pedagogia e a desvalorização das disciplinas curriculares conduz, a médio prazo, a um desinvestimento nas competências científicas do professor e a uma limitação da sua autoridade. “O professor (…) é aquele que é capaz de ensinar qualquer coisa. A formação que recebe é em ensino e não no domínio de um assunto particular. (…) O que daqui decorre é que, não somente os alunos são abandonados aos seus próprios meios, como ao professor é retirada a fonte mais legítima da sua autoridade enquanto professor. Pense-se o que se pensar, o professor é ainda aquele que sabe mais e que é mais competente. Em consequência, o professor não autoritário, aquele que, contando com a autoridade que a sua competência lhe poderia conferir, quereria abster-se de todo o autoritarismo, deixa de poder existir.”
3 – Consiste na sobrevalorização da cultura da ludicidade em detrimento da cultura do esforço, assente no pressuposto “de que se não pode saber senão aquilo que se faz por si próprio” e na redução do aprender ao fazer. Para além da alteração do papel do professor, visto já não como um mestre do ensino mas como um indutor de aprendizagens, a sobrevalorização do lúdico no processo ensino aprendizagem contribui ainda mais para a infantilização do adolescente e para autonomização e absolutização da infância. “Considera-se pouco importante que o professor domine a sua disciplina porque se pretende compelir o professor ao exercício de uma actividade de constante aprendizagem para que, como se diz, não transmita um “saber morto” mas, ao contrário, demonstre constantemente como se adquire esse saber. (…) Considera-se o jogo o mais vivo modo de expressão e a maneira mais apropriada para a criança de se conduzir no mundo, a única actividade que brota espontaneamente da sua existência de criança. Só aquilo que se pode aprender através do jogo corresponde à sua vivacidade. (…) Deixando de lado a questão de saber se isso é ou não possível (…) é perfeitamente claro que este método procura deliberadamente manter a criança mais velha, tanto quanto possível, num nível infantil. Aquilo que, precisamente, deveria preparar a criança para o mundo dos adultos, o hábito adquirido pouco a pouco de trabalhar em vez de jogar, é suprimido em favor da autonomia do mundo da infância.”
Diagnosticadas as causas e as consequências da crise, impõe-se a necessidade de reformulação do sistema de educação. Mas tal reformulação deve ser precedida de uma “reflexão sobre o papel que a educação desempenha em todas as civilizações”.
A reflexão da autora remete-nos para um plano de fundo do qual emergem um conjunto de ideias que configuram as seguintes teses: a criança e o mundo pertencem a mundos distintos e conflituantes – o privado e o público – perante os quais os adultos em geral têm responsabilidades diferentes; o esquecimento e a supressão destas diferenças têm repercussões negativas no processo de amadurecimento das crianças; o papel da escola é o de mediador, isto é, o de contribuir para a introdução gradual da criança no mundo, ajudá-la a amadurecer e a transformar-se num ser responsável pelo mundo; a difícil tarefa de educar é correlativa da recuperação do respeito pela tradição e pela autoridade – “No mundo moderno, o problema da educação resulta pois do facto de, pela sua própria natureza, a educação não poder fazer economia nem da autoridade nem da tradição, sendo que, no entanto, essa mesma educação se deve efectuar num mundo que deixou de ser estruturado pela autoridade e unido pela tradição” – ; a impossibilidade de educar sem ensinar – “uma educação sem ensino é vazia e degenera com grande facilidade numa retórica emocional e moral” – ; a educação é um caso de amor/cuidado pela conservação e renovação do mundo, o qual passa necessariamente pelo amor/cuidado que as crianças merecem, no sentido de as preparar e convocar “para a tarefa de renovação de um mundo comum”.

4 comentários:

Unknown disse...

Parabéns pela resenha sobre o texto de Arendt. Nesse link, encontra uma outra resenha igualmente interessante:

http://pt.shvoong.com/humanities/h_philosophy/1744609-crise-na-educação/

Germano disse...

Caro colega,
Estou procurando o livro correto que contém esse texto. Cai em um golpe pela editora UFJF. Qual a editora do seu livro?
Pode me responder pelo e-mail carlosgermano@gmail.com

Germano disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Germano disse...

Caro colega,
Estou procurando o livro correto que contém esse texto. Cai em um golpe pela editora UFJF. Qual a editora do seu livro?
Pode me responder pelo e-mail carlosgermano@gmail.com