sábado, maio 05, 2007

Alguns intelectuais da nossa praça, ancorados porventura numa mundividência sociológica de raiz marxista (por exemplo, Maria Filomena Mónica), defendem uma tese com a qual simpatizo mas da qual discordo. Paradoxal? Não de todo. Pode-se simpatizar com uma tese por se considerar que ela é persuasiva ou mesmo auto-consistente, mas, em contrapartida, discordar dela por acharmos que não se adequa cabalmente à realidade que pretende explicar, ou então por considerarmos que existem razões mais profundas e argumentos mais fortes a apoiar outras teses concorrentes.
A tese afirma grosso modo o seguinte: é o bem estar económico, o acesso mais generalizado à riqueza, por parte das massas, que permitirá a um povo elevar o seu nível cultural (em função do tempo e da educação), possibilitando-lhe desenvolver capacidades básicas de apreciação crítica ou estética. Dizendo a coisa de outro modo: logo que a barriguinha estiver cheia, o povoléu tratará de se preocupar com os assuntos do espírito.
A ideia é atractiva, não o nego, e está assente numa certa crença muito difundida do que foi o movimento da modernidade nos últimos três séculos na Europa e no mundo ocidental - o iluminismo, a revolução industrial, as revoluções americana e francesa, o capitalismo, a democratização do direitos, a massificação do ensino e da cultura. Por mais sedutora que seja, a ideia não me convence. Outra ideia existe que me parece mais de acordo com a realidade. Essa ideia fui buscá-la a um texto escrito por Hannah Arendt, em 1960, com o sugestivo título A crise na cultura.
Segundo a autora, se é verdade que a "cultura de massas" deriva da "sociedade de massas", tal não implica necessariamente uma elevação do nível cultural das mesmas. São os seus traços psicológicos que não o permitem: "o seu abandono (...); a sua agitação e a sua ausência de modelos; a sua aptidão para o consumo a par da incapacidade de fazer juízos, ou até distinções". Por outro lado, a cultura de massas traduz um movimento de "intelectualização do kitsch" que irá perdurar em virtude quer do seu apetite consumista quer da transformação operada no próprio objecto cultural, tornando-se no seu oposto - um objecto funcional. Daqui resulta que a cultura de massas se assume como cultura de entretenimento, o que significa a destruição da própria cultura. Para finalizar, um par de citações permite-nos acompanhar este fio de raciocínio que, apesar de não linear (pelo menos na aparência), não deixa de ser consistente com o fenómeno a ser compreendido:
"A cultura de massas aparece quando a sociedade de massas se apropria dos objectos culturais, e o seu perigo está em que o processo vital da sociedade (...) irá literalmente consumir os objectos culturais, irá devorá-los e destruí-los. Com isto não me estou a referir, claro , à difusão massiva desses objectos. Quando os livros ou as reproduções de quadros são lançados no mercado a baixo preço e vendidos em quantidades elevadas, isso não afecta a sua natureza. A sua natureza é afectada, isso sim, quando os próprios objectos são modificados: reescritos, condensados, digeridos, reduzidos a 'kitsch' para reprodução ou adaptação cinematográfica. Aqui, deparamo-nos não com um processo de extensão da cultura às massas, mas de destruição da mesma em prol do entretenimento. (...) Há muitos grandes autores do passado que, tendo sobrevivido a séculos de esquecimento e de negligência, talvez não sobrevivam às versões recreativas do que eles têm para dizer.
A cultura diz respeito a objectos e é um fenómeno do mundo; o entretenimento diz respeito a pessoas e é um fenómeno da vida. Um objecto é cultural na medida em que é capaz de perdurar; a sua durabilidade representa o exacto oposto da funcionalidade, que é a qualidade que o faz desaparecer novamente do mundo fenoménico depois de ter sido usado e desgastado.
(...) O que daqui resulta não é, claro, uma cultura de massas - a qual, estritamente falando, nem sequer existe - mas um entretenimento de massas que se alimenta dos objectos culturais do mundo. A creditar que uma sociedade acabará por se tornar 'mais cultivada' à medida que o tempo for passando e a educação for desempenhando o seu papel, constitui, a meu ver, um erro fatal. A questão é que uma sociedade de consumidores é possivelmente incapaz de defender um mundo e as coisas que pertencem exclusivamente ao espaço do aparecer no mundo, já que a sua atitude predominante em relação a todos os objectos, a atitude de consumo, condena à ruína aquilo em que toca."

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