sábado, maio 05, 2007

Um mal nunca vem só

Apesar do valor lógico dos provérbios populares ser questionável, o qual decorre do seu enraizamento num mundo em si contraditório e na experiência irredutivelmente subjectiva que as circunstâncias permitem aos homens viver, não poderemos descartá-los em absoluto. Pelo contrário, visto que neles se condensa uma sabedoria que o tempo e o uso cristalizaram. São, pois, cristais de sabedoria a que podemos recorrer para dar significado ou ilustrar situações vividas ou expectáveis.
O uso que lhes dou - à medida que o tempo passa e a maturidade rima cada vez mais com o espectro da terceira idade - vai-se tornando frequente. Sobretudo nos casos em que a minha própria experiência é escassa, como, por exemplo, no que diz respeito à responsabilidade que é ser dono de um cão. Já me referi num post anterior ao caso, o que, diga-se em abono da verdade, é sintomático de uma preocupação que já dá sinais de estado obsessivo. Mas o facto é que a saga continua. Poderia intitulá-la Um mal nunca vem só, mas como não sou um pessimista empedernido prefiro Não há mal que sempre dure, nem bem que se não acabe. Mas vamos de imediato à narração dos factos:
O Tota - é assim que o meu cão se chama - é um cão rafeiro que nasceu num canil e foi por mim adoptado quando tinha três meses. Para além disso tinha tinha, o que o impediu de sair à rua durante mais de um mês e meio. Resultado: aprendeu a fazer as suas necessidades em casa e tornou-se mestre nessa arte. Uma vez aprendido, sempre aprendido ou, como reza o ditado Aprende e serás mestre. Mas o problema maior é que o idiota tem a mania de comer as próprias fezes, felizmente não sempre, mas ainda assim com uma frequência que me deixa sem apetite. Entretanto fui ontem visitar a veterinária (pela quarta ou quinta vez em cerca de dois meses). Não se tratou de uma visita de cortesia, não senhor. Estava agendada a consulta e confirmei-a telefonicamente dois dias antes, que a senhora doutora não tem mãos a medir. Para lá da despesa - que somada às anteriores já perfaz o equivalente a uma semana em Porto Galinhas com pensão completa para duas pessoas - fiquei a saber que o cão está com as amígdalas inflamadas, fruto de um resfriado ou de uma constipação intempestiva. Antes que me apresentassem a factura que suspeitava poder ascender, números redondos, a três algarismos (ficou aquém, valha-nos isso - 88 euros e 50 cêntimos) resolvi colocar o meu problema à dita doutora (o tal problema das fezes que se tornaram comestíveis para o cachorro). Assim, sempre podia desabafar, caramba! O seu conselho pareceu-me genial (como é que não tinha pensado nisso?): "quando ele voltar a fazer cócó, enche os excrementos de pimenta. Vai ver, mal se aproxime para os cheirar, é remédio santo". Logo que cheguei a casa pus-me à coca, reprimindo o riso num gozo antecipado da malvadeza. Mal o vi deslocar-se em direcção ao local do crime, corri célere, não fosse ele antecipar-se. O cócó lá estava, tipo croquete acabadinho de fritar. Saquei do saco de pimenta e despejei o suficiente até lhe dar um aspecto de panadinho. O danado do cão aproximou-se, cheirou-o e zás, abocanhou-se de uma assentada. Gritei-lhe desesperado. Chamei-lhe nomes que não chamaria nem ao pior dos inimigos. Ele fugiu e foi-se esconder debaixo da mesa da sala, como sempre faz quando tem consciência do mal feito. Olhou para mim com um olhar doce, a pedir clemência, o sacana do bicho. E lambia os beiços, não sei se de satisfação ou se para aplacar o ardor que certamente lhe mordia a boca e a língua. Tive piedade do animal. Afinal de contas é o meu cão, o membro mais novo da família. Entre cem virtudes a piedade filial é a principal.

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