domingo, maio 27, 2007

as borbulhas cruéis de uma adolescência

Os últimos anos têm dado a conhecer, sobretudo nos países desenvolvidos, um fenómeno social alarmante. Trata-se de uma nova patologia social que afecta um número crescente de famílias e cujas implicações, múltiplas e complexas, requerem de instituições como hospitais, tribunais, famílias e escolas respostas que vão para além daquilo que estamos habituados a procurar ao nível do senso comum. Refiro-me ao fenómeno de crianças e de adolescentes que maltratam os seus pais, chegando por vezes a recorrer à violência física, por motivos aparentemente fúteis e de difícil aceitação. Inaceitável e incompreensível, o comportamento dos fedelhos que vêm os pais como meros instrumentos de satisfação dos seus caprichos, como objectos das suas vontades patologicamente construídas, revela fundamentalmente o mal-estar vivido no seio de um tipo específico de civilização – a civilização que faz do consumo imediato o único fim que justifica a existência. Revela igualmente a importância de repensar o modo como os pais educam hoje em dia os seus filhos.
Javier Urra, autor do livro O pequeno ditador – da criança mimada ao adolescente agressivo, traçando o perfil desses adolescentes violentos, afirma ao Expresso: “ São jovens, entre os 14 e os 16 anos, que só conhecem o ‘aqui’ e o ‘agora’. Sempre tiveram tudo. Cresceram a exigir coisas, nunca foram contrariados, ninguém os obrigou a cumprir regras. Quando um miúdo evolui neste percurso, tem cada vez mais poder em casa. Entretanto, torna-se adolescente e só conhece aquela maneira de estar. Chega a um ponto em que a vida familiar se torna insuportável. E há um dia em que, quando a mãe o enfrenta, ele se vira: ‘Tu? Atreves-te a dizer não, a mim!?”
Este pequeno ditador (que pode exceder em tamanho a estatura dos progenitores) vai, ao longo da sua curta existência, desenvolver uma personalidade narcísica, profundamente egoísta, alicerçada numa mescla de incapacidades: de autonomia, de reconhecimento, de satisfação sadia e de ultrapassar as frustrações que decorrem das suas mesmas incapacidades.
Qual é a verdadeira dimensão do problema em Portugal? Os números que existem não são elucidativos, por razões compreensíveis – só em circunstâncias extremas os pais denunciam os seus rebentos; pelo contrário, tendem a desculpabilizá-los, por vezes de forma bizarra. No entanto, a situação é grave, porquanto tem vindo a aumentar nos últimos anos. Os dados da Associação de Apoio à Vítima (APAV) são os seguintes: “19 casos de pais vítimas de filhos menores de 18 anos, em 2004. Em 2006, foram apresentadas 26 queixas. Quando se fala em filhos maiores de idade, o número dispara de 229 para 394, entre 2004 e 2006.” Parecem irrisórios, os números. Mas sê-lo-ão de facto? Proponho a seguinte leitura, à falta de outra melhor: no que diz respeito aos ditadores mais jovens – e atendendo a que é justamente nestas idades que os pais mais relutância sentem em se queixar e mais prontos estão para desculpabilizar – os números reais devem ser efectivamente muito superiores aos registados; no que se refere aos ditadores já com o estatuto de maioridade, apesar de os números apresentados estarem mais próximos da realidade, ainda assim devem ser uma ficção. De qualquer modo, o crescimento de casos registados foi, respectivamente, de 27% e de 42%, nos dois últimos anos. Significativo? Indiscutivelmente. Preocupante? Sem dúvida.
Quem são os responsáveis pelo fenómeno? Que causas descortinamos a montante? Do meu ponto de vista, os pais e a sociedade de consumo. Os primeiros porque são permissivos e irresponsáveis. Confundem carências reais com virtuais e entregam à sociedade (a escola) uma tarefa que lhes cabe a eles, prioritariamente. Demitem-se de ensinar e são incapazes de contrariar, de forma sistemática e coerente, o os imperativos fictícios de uma sociedade consumista/hedonista que manipula o entendimento e a vontade dos seus filhos a seu bel-prazer. Enredados num sistema que aceitam acriticamente, no qual não reflectem por manifesta falta de tempo, afirmam: “Não podemos ser impositivos, não podemos ser traumáticos”. Os segundos porque encaram as pessoas como meios exponenciais de facturação de lucros, impondo a ideia de uma juventude orientada para o imediatismo do consumo como um valor absoluto e como um ideal incondicional de vida.
A propósito do assunto refere Javier Urra: “ Os casais têm filhos cada vez mais tarde. Em Espanha, a taxa de filhos únicos é elevadíssima: 76%. Passámos de famílias grandes para famílias pequenas e monoparentais. Os filhos ocupam o centro do universo familiar, e têm um papel desmesurado na vida do casal. Os pais têm pouco tempo para estar com eles e não partilham os seus problemas familiares nem as suas preocupações do quotidiano. Preservam-nos. Por outro lado, o sistema está totalmente montado para apelar ao consumo. Os pais protegem-nos da realidade e a realidade que absorvem é a transmitida pelos meios de comunicação e de consumo que fazem um discurso altamente valorativo da juventude.”
Podem os pais lutar contra o monstruoso sistema, esse capitalismo desenfreado faz da sociedade do espectáculo e do consumo a sua razão de ser e subsistir? Podem eles contrariar o primado do Ter sobre o Ser que tem constituído a espinha dorsal das sociedades contemporâneas altamente desenvolvidas? Apesar de “dois em cada cinco anúncios induzirem as crianças e os jovens ao consumo: ‘compra, precisas de ter” ; apesar disso e sobretudo por isso, é preciso ensinar as nossas crianças a mudar de perspectiva, a orientar o seu olhar para o mundo real e fazê-las participar na construção de uma realidade mais consentânea com o seu futuro de adultos responsáveis. Como se faz isso? Transmitindo-lhes “regras básicas. Cumprir obrigações, respeitar horários, penalizar a desobediência. (…) Pelo menos uma vez, um pai deve dizer ao filho: ‘um dia vais morrer, a vida não é eterna’. Também deve dizer: ‘És importante, mas não és mais importante do que eu, nem do que os teus avós, nem do que o teu professor.’ Levá-lo a um hospital para que vejam crianças doentes. E que os ensinem a repartir. A maioria destes jovens são filhos únicos. Só ajudando os outros é que se darão conta de que os seus problemas são pequenos.”
É urgente ensinar às nossas crianças coisas simples como: “é importante seres alguém, gostava que te esforçasses por seres melhor”. Tal como é urgente ajudá-los a desconstruir discursos e mensagens que apelam à ideia de que ter é a finalidade última da existência.
Termino com um testemunho de alguém que não conheço e que me escreveu estas palavras, a propósito de algo que eu escrevi sobre este mesmo assunto, no final do ano passado. Testemunho cruel mas verdadeiro, como muitas vezes assim é a vida. É a minha homenagem anónima a alguém anónimo que só queria desabafar:
“O que se pode dizer a uma mãe que tem filhos que não a amam? Que se aproximam só quando querem coisas? Que dizem palavras que magoam? Que dizem: ‘Este é o último Natal que quero passar contigo.’ Que dizem: ‘Gostava que fosses transparente, surda e muda!’ Que dizem sobre a infelicidade de uma colostomia: ‘Mãe, agora és um esgoto ambulante!’ Que dizem: ‘Amanhã faço anos! Espero que não me apareças pela frente!’ Não há palavras para exprimir quanta mágoa eu sinto. O cancro ou a colostomia comparativamente são uma pequena alegria quando alguém desconhecido nos conforta com uma palavra amiga no hospital.”

sábado, maio 26, 2007

três filmes, um texto e algumas preocupações de momento

Irreverência e inquietação são dois conceitos que costumamos associar à adolescência. Quem não se lembra de, nos anos oitenta, ter assistido à exibição do filme Rumble Fish (Juventude Inquieta), realizado por Francis Ford Copolla e que conta no seu elenco com nomes como Mickey Rourke, Matt Dillon e Nicolas Cage? Ou então de ver The Outsiders (Os Marginais) do mesmo realizador? Quem não recorda o clássico de Nicholas Ray (Fúria de Viver) protagonizado pelos inesquecíveis James Dean e Natalie Wood? Cada um destes filmes, a seu modo – independentemente da respectiva qualidade estética – retrata a juventude naquilo que melhor a parece caracterizar: essa mesma fúria de viver num confronto aberto com as instituições (pais, escola, etc.) e os preconceitos que as consubstanciam. As atitudes de desafio à moralidade instituída, o assumir uma certa dose de marginalidade face aos padrões e normas socialmente aceitáveis podem ser encaradas como formas saudáveis de crescimento, precisamente porque pressupõem um tipo de aprendizagem do mundo que se não limita a consentir o passado. Pelo contrário, assimila-o na justa medida em que o faz dele objecto de uma crise e de uma crítica renovadoras. Ser irreverente, acordar pela manhã com o sentimento de insatisfação a transbordar da alma, viver na inquietação de um futuro por fazer – aos quinze ou dezoito anos – é a marca d’água de uma etapa da nossa vida que recordamos com apreço e alguma nostalgia.
Será que podemos na actualidade atribuir à juventude estes mesmos predicados? Nalguns casos, sem dúvida. Mas na generalidade, tenho as minhas dúvidas. Sem ter à mão estudos de opinião e dados estatísticos sérios, deixo-me guiar pelo impressionismo das minhas vivências, grande parte das quais resultam do contacto quotidiano que venho mantendo com os jovens das nossas escolas. Para além disso, guio-me também por um texto: A educação enquanto problema do nosso tempo, de Eric Weil.
Mais do que irreverência e inquietação, a adolescência parece viver hoje em dia sob o signo de uma insatisfação doentia, aquele tipo de insatisfação que se tece com as malhas do tédio, do fastio e do aborrecimento, sentimentos que frequentemente conduzem à violência gratuita, quando uma educação descuidada e permissiva tornam o fenómeno quase inevitável.
No mundo ocidental, séculos de progresso material fizeram-nos acreditar que o acesso generalizado à instrução consistia por si só um factor decisivo, no que à formação do ser humano diz respeito. O homem e a mulher instruídos eram sinónimo não apenas de maior riqueza, de mais tempo livre, de bem-estar, mas igualmente de maior liberdade e educação. Saciado o estômago, dispondo do ócio para o exercício da liberdade, restaria apenas a satisfação de poder dar significado, valor e sentido à sua vida. Todavia, não se contou com um imponderável: o surgimento do tédio e da consequente violência gratuita como fenómeno civilizacional.
A propósito dele diz-nos Eric Weil o seguinte: “Mas, se uma civilização inteira for atingida pelo tédio, este pode tornar-se uma coisa efectivamente séria até porque, nesse caso, não existiria ninguém para dizer aos outros porque razão se aborreciam e o que seria necessário fazer para remediar a situação. Se, obtido tudo o que razoavelmente se pode desejar, as pessoas estão ainda insatisfeitas e se todo o mundo partilha do mesmo sentimento de insatisfação, pode então desencadear-se o recurso a coisas não razoáveis. Estamos todos certamente de acordo num ponto comum, a saber: que a violência é o único verdadeiro passatempo. (…) Mas a violência desinteressada, aquela que é, ela mesma, o seu próprio fim, quer seja dirigida contra os outros quer contra si mesmo, está a espalhar-se cada vez mais. A percentagem não é a mesma em todo o lado e, aqui e além, as tradições servem de dique. Mas servir de dique é uma ocupação fastidiosa, particularmente quando os diques estão a desaparecer e os construtores de diques são cada vez mais raros.”
Será possível inverter esta tendência civilizacional? A resposta, por afirmativa que seja, não parece tarefa fácil, sobretudo porque o que se exige é um investimento sério e profundo na educação para o exercício responsável da liberdade, pois “uma vez ganha a batalha da instrução, o problema de uma educação para a liberdade adquire estatuto de primeiro plano”. “Todas as comunidades que põem a eficácia acima de tudo e consideram a liberdade como um brinquedo acabam por ficar submetidas a um mestre. (…) O perigo futuro poderá traduzir-se numa ameaça muito maior: o perigo de uma humanidade liberta da necessidade e do constrangimento exterior mas impreparada para dar conteúdo à sua liberdade. Neste sentido, não seria exagerado afirmar que não existe nenhum problema mais importante, mais urgente, que o da educação.”

quinta-feira, maio 24, 2007

Gafe...ou nem por isso

Num discurso proferido para os imigrantes -a quem foram entregues os diplomas de não sei o quê e a cidadania portuguesa - o primeiro-ministro cometeu uma gafe, porventura fruto do desgaste a que nos últimos tempos tem sido sujeito.
"Quero deixar-vos também uma palavra de confiança, confiança em vós, nas vossas famílias, e a certeza que cada um de nós dará o seu melhor para um país mais justo,para um país mais pobre...perdão, para um país mais solidário, mais próspero, mais evoluído."
É certo que o discurso era de circunstância e a gafe cometida não tem a importância de outras conhecidas. Mas é um sintoma de cansaço acumulado e desgaste corrosivo. O poder corrompe e também corrói um indivíduo por dentro. Para além de sintoma a gafe é um sinal de que o cidadão José Sócrates não será o mesmo.
Como diz o povo: fugiu-lhe a boca para a verdade.

terça-feira, maio 22, 2007

Propostas em tom de brincadeira séria

No anedotário nacional faltava mais esta. Segundo foi noticiado pelo Público, na edição de sábado passado, um professor de inglês foi objecto de acção disciplinar e suspenso das funções que exercia há 19 anos e pico na Direcção Regional de Educação do Norte. Pelo que consta terá dito uma piada (porventura em português do mais castiço) retirada do anedotário nacional do caso Sócrates/Independente. O incidente passou-se no seu gabinete e a mensagem tinha como receptor um colega de serviço.
As afirmações da directora regional Margarida Moreira são elucidativas quanto ao zelo com que alguns funcionários públicos passaram a desempenhar as suas funções: "insulto feito no interior da DREN, durante o horário de trabalho" (...) "extremamente grave e inaceitável" (...) "Os funcionários públicos, têm de estar acima de muitas coisas. O sr. primeiro-ministro é o primeiro-ministro de Portugal" (...) "Uma coisa é um comentário ou uma anedota outra coisa é um insulto" (...) "Não tomei a decisão de ânimo leve, foi ponderada" (...) "o inquérito será justo, não aceitará pressões de ninguém. Se o professor estiver inocente e tiver que ser ressarcido, será" (...) "Suspendo-o preventivamente, instauro-lhe processo disciplinar, participo ao Ministério Público".
Tudo leva a crer ter sido criado à escala nacional um serviço informal de bufaria. Proponho um nome pomposo e sonante, que é o que convém nas presentes circunstâncias: Serviço Secreto de Voluntários de Delação Espontânea (S.S.V.D.E.). Proponho igualmente que os elementos que mais se destacarem, ao longo do ano, venham a ser condecorados com a medalha de mérito e diploma, entregues em cerimónia festiva presidida pelo Presidente da República e pelo Primeiro-Ministro, devidamente acompanhados pelos seus acólitos, representantes das Forças Armadas e das Polícias, ao som da música tocada pela Banda da Guarda Nacional Republicana. Proponho um dia para o efeito: que tal o 25 de Abril? Sempre se revitalizariam as festividades do feriado. Ou então o 5 de Outubro. Proponho também que os ditos condecorados, por inestimáveis serviços prestados de interesse público, sejam designados como cidadãos exemplares e publicados os seus nomes no Diário da República, passando a encabeçar a lista dos possíveis recrutáveis para as carreiras do funcionalismo público. Proponho ainda, para os infractores que se não retratem da acção ignominiosa praticada, a seguinte pena: o encarceramento no simbólico Forte de Peniche e outros estabelecimentos afins, por será certo que para o efeito a capacidade deste não será suficiente.
Com estas palavras e no contexto da lei da rolha nos últimos tempos revisitada, ainda um dia destes me habilito a passar uns tempos à sombra não de uma azinheira mas do chilindró. Mas garanto que hei-de passar os meus dias a cantar a Grândola Vila Morena.

quarta-feira, maio 16, 2007

breve apontamento sobre a educação

O diagnóstico quanto ao estado da educação em Portugal, no pós 25 de Abril, está traçado, retraçado, definido, redefinido e repetido até à exaustão: sistema ineficaz e moribundo. Os indicadores, respigados dos mais competentes estudos académicos, justificados em estatísticas e amostragens que cobrem realidades nacionais e internacionais, não deixam margem para dúvidas ou manobras de escamoteamento. Os professores não ensinam ou fazem-no mal; os alunos não aprendem ou aprendem sem eficiência; os pais não têm tempo para educar ou educam sem convicções éticas. Bem sei que há excepções, mas elas não constam das estatísticas e estão ausentes dos indicadores de aprendizagem com que avaliamos a saúde da nossa paideia.
Com o 25 de Abril herdámos sistemas pedagógicos de vanguarda, importados da Europa progressista e moderna. Ele deu-nos a oportunidade de experimentar didácticas de vanguarda, fundamentadas em teorias confirmadas além fronteiras e rematadas numa nomenclatura que faz dos “ismos” a sua razão de ser e a sua marca de excelência. Os ideais de liberdade e igualdade foram-nos servidos em bandejas do metal mais nobre: o ouro da democracia.
Como povo de credos prontos e de aspirações longamente reprimidas, acreditámos que os ideais por si sós bastam para promover o bem-estar e a riqueza material e espiritual. Como estávamos enganados! No decurso dos últimos 30 anos acumulámos erros, dentre os quais talvez o maior tenha sido não termos apercebido que a massificação do ensino, essa exigência e essa consequência natural da democracia, devia andar a par com uma revolução plena e integrada das mentalidades. O urgente foi sendo adiado a troco de promessas de desafogo económico, que a integração na Comunidade Europeia e a adesão ao Euro vieram cimentar.
A desilusão face ao processo educativo é hoje um lugar comum, uma inquestionável certeza que nos deixa reféns sobretudo dos nossos sonhos mais do que legítimos. Sintoma evidente disso são os debates sobre debates, televisivos ou outros, a que assistimos nos anos mais recentes, com que nos alienamos e com que alinhamos no coro da desgraça.
Dos professores pode dizer-se que são fruto a cair de podre de um sistema minado por interesses corporativos, por indecisões políticas e por falta de coragem, desconfortavelmente instalados mas ainda assim instalados num funcionalismo público retrógrado e avesso a mudanças que tardam a concretizar-se. Dos alunos afirma-se que são um bando de adolescentes que se recusam a assumir a responsabilidade e o esforço de uma aprendizagem da cidadania, que vá para além da pele do hedonismo com que se vestem dia após dia, porque o que está a dar “é curtir bué” e sempre, ámen. Dos pais apetece dizer que o cuidado que as suas crianças merecem exige um outro olhar, mais crítico e vigilante, e não apenas um embarcar na cultura do sucesso fácil e de visibilidade imediata com que os media engravidam de ilusões os seus rebentos. Ao substituir o critério da excelência pelo da massificação, aquilo que se ganhou em número dos que têm acesso ao sistema ensino, perdeu-se em exigência de qualidade, o que teve como efeito um nivelamento por baixo nos padrões de ensinabilidade. Todos nós nos devemos responsabilizar pelo facto. A todos cabe a dolorosa pergunta: é isto que quero para o futuro do meu país?

confrontos em matéria educativa

É triste. De tão triste que é, torna-se patético, confrangedor. Refiro-me ao debate sub-reptício que colocou em confronto - faz já algum tempo e por isso talvez convenha recordar - a Sra. Ministra da Educação, a professora Maria de Lurdes Rodrigues, e o Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, o professor Nuno Crato, autor de algumas das páginas mais críticas e esclarecedores que se têm escrito a propósito das questões educativas da actualidade. É necessário precisar. Quando recorro à adjectivação, atribuo-a integralmente às palavras da primeira opositora ao debate e não às do segundo. Porque é de avaliar as palavras que se trata. Mas detenhamo-nos no que de essencial revela a contenda.
O professor Nuno Crato, a propósito da proposta de alteração ao Estatuto da Carreira Docente, afirma que “a palavra ensinar não aparece uma única vez no documento”. Chama-lhe uma curiosidade. Convém lembrar que a curiosidade é a alma da investigação e um inequívoco sintoma de atitude crítica. O que revela esta curiosidade? No entender do professor, a referida ausência reflecte “uma orientação pedagógica vincada”, talvez mesmo uma orientação ideológica, que transparece no “eduques” do Ministério. É conhecida a postura fundamentadamente crítica do investigador no que concerne às políticas e ao jargão pedagógicos dominantes, alicerçados em pressupostos românticos e construtivistas. Neste contexto é que a análise hermenêutica do professor deve ser avaliada, na sua tentativa de expor na sua nudez mais simples o sentido e a pertinência da actual política educativa. Que sentido e que pertinência? O do vazio e da ausência de políticas reformistas sérias em matéria de educação, as únicas capazes de enfrentar os problemas reais subjacentes ao sistema de ensino e de dotar o país de autênticas perspectivas de futuro.
Não é este o entendimento da Sra. Ministra da Educação, ela que se tem caracterizado por uma postura rígida, fechada ao diálogo e por um voluntarismo dogmático que já não se usa, passados que estão 32 anos depois da ditadura. Vontade a mais e entendimento a menos. Vontade cega, que é a mais nociva das vontades. É por isso que o seu discurso é triste, patético e confrangedor. De tão cego, não enxerga as próprias contradições. E são tantas, que só uma opinião pública, intoxicada por medias subservientes e acríticos, não consegue entrever. As suas afirmações são disso testemunho. Basta pegar na entrevista que deu à Visão de 22 de Junho de 2006 e respigar duas ou três. “Não tenho por objectivo refundar nem efectuar reformas, mas sim fazer cumprir determinados desígnios e objectivos”, em prol de “uma grande mudança”. Como disse? Será possível fazer uma grande mudança na educação do país sem efectuar reformas profundas? O antigo sistema de avaliação (…) não avaliava (…) ninguém sabe quem são os bons, os maus ou os excelentes.(…) Os conselhos executivos sabem quem são os bons professores das suas escolas.” Como disse? Alguns sabem não contradiz ninguém sabe? Semelhante erro básico de lógica, poucos alunos do ensino secundário cometem, Sra. Ministra. Relativamente ao facto do termo ensinar estar ausente do Estatuto proposto: “Não é verdade. Aparece várias vezes”. Como disse? Será que ignora o documento? Ou trata-se de má-fé? E porquê acrescentar: “Acho que as questões técnicas da pedagogia não devem vir para a esfera da actividade política.” O que quis dizer exactamente? Será que a actividade política não tem competência para abordar aquelas questões? E hão-de tê-la os pais? Com tamanha falta de entendimento em questões pedagógico-educativas, sem vontade reformista séria e consequente (quando urgia que ela se fizesse, em benefício de todos), sem atitude crítica, não se percebe como pode a Sra. Maria de Lurdes Rodrigues continuar teimosamente a exercer um cargo para o qual alguns lhe reconhecem competência. Felizmente menos, à medida que o tempo passa.

uma leitura da crise da educação

A reflexão que Hannah Arendt leva a cabo no curto texto A crise da educação increve-se num contexto específico, o norte americano dos anos 50, o qual assume as proporções de problema político, associado aos “perigos decorrentes de uma baixa constante dos padrões elementares ao longo de todo o sistema escolar”. Podemos questionar a pertinência desta análise, circunscrevendo-a ao seu contexto histórico e geográfico. Todavia, é a própria autora que nos adverte contra o erro de tal crença, ao enunciar como “regra geral da nossa época que tudo o que pode acontecer num país pode também, num futuro previsível, acontecer em qualquer outro país”. Não estaremos perante a antecipação de um dos princípios da era da globalização?
Segundo Hannah Arendt a investigação da crise da educação só poderá dar frutos se nos descartarmos dos preconceitos e encararmos o problema da educação do ponto de vista da sua essência, a qual se traduz na “natalidade, o facto de os seres humanos nascerem no mundo”.
Constatando que, na América, a educação desempenha um papel diferente, fortemente politizado, cuja explicação se enraíza no facto desta ter sido sempre uma terra de imigrantes, a autora remete-nos para a imagem do que o país representa: “Uma Nova Ordem no Mundo. Os imigrantes, os recém-chegados, constituem para o país a garantia de que ele representa de facto a nova ordem. O sentido desta nova ordem, desta criação de um novo mundo em oposição ao antigo, era, e continua a ser, abolir a pobreza e a opressão.”
Este pathos do novo, articulado com a confiança numa “perfectibilidade indefinida”, vai traduzir-se num ideal de educação em que se são visíveis influências marcadamente rousseauianas, com consequências profundas na vida americana em geral e no seu sistema educativo em particular. “Ora, no que diz respeito à educação ela mesma, só no nosso século é que a ilusão emergente do pathos do novo produziu as suas mais sérias consequências. Em primeiro lugar, permitiu que essa mistura de modernas teorias educativas (…) que consiste numa espantosa salganhada de coisas com sentido e sem sentido, revolucionasse todo o sistema de educação sob a bandeira do progresso (…) uma transformação completa no que diz respeito às tradições e aos métodos de ensino e de aprendizagem. O facto mais significativo é que, em virtude de certas teorias, boas ou más, todas as regras da saudável razão humana foram postas de parte. O desaparecimento do senso comum que hoje se verifica é pois o sinal mais seguro da actual crise.”
É numa sociedade de massas que os problemas de educação se agudizam, transformando-se num fracasso, "quando são aceites de forma tão servil e acrítica as mais modernas teorias pedagógicas". A crise revela-se mais grave ainda em virtude do “papel que o conceito de igualdade desempenha e sempre desempenhou na vida americana. Trata-se de uma noção na qual está envolvida muito mais do que igualdade perante a lei; mais também do que o nivelamento das distinções de classe; mais mesmo do que aquilo que a expressão ‘igualdade de oportunidades’ designa.”
Num país ideologicamente igualitário, é impensável impor um sistema educativo alicerçado em princípios meritocráticos, de talento que sejam e já não de classe, como é o caso da Inglaterra. A consequência imediata resulta no nivelamento por baixo das exigências ao nível dos conhecimentos e a transformação do ensino secundário num prolongamento do ensino primário acessível a todos. As consequências mais mediatas traduzem-se numa crise da educação cada vez mais aguda, estruturalmente inscritas no “temperamento político do país, o qual luta, por si próprio, por igualar ou apagar tanto quanto possível a diferença entre novos e velhos, entre dotados e não dotados, enfim, entre crianças e adultos, em particular, entre alunos e professores. É óbvio que este nivelamento só pode ser efectivamente alcançado à custa da autoridade do professor e em detrimento dos estudantes mais dotados.”
Hannah Arendt apresenta-nos três ideias-chave que permitem explicar o efeito catastrófico das medidas político-educativas:
1 – Consiste na autonomização e absolutização do mundo das crianças, o que conduz à limitação da autoridade dos adultos, ao alargamento do fosso dos dois mundos (o dos adultos e o das crianças), e ao aparecimento tirania da maioria constituída pelo grupo dos seus pares. “A primeira é a de que existe um mundo da criança e uma sociedade formada pelas crianças; que estas são seres autónomos e que, na medida do possível, se devem deixar governar a si próprias. O papel dos adultos deve então consistir em limitar-se a assistir a esse processo. É o grupo de crianças ele mesmo que detém a autoridade que vai permitir dizer a cada criança o que ela deve ou não deve fazer. Entre outras consequências, isto cria uma situação na qual o adulto, não só se encontra desamparado face à criança tomada individualmente, como fica privado de todo o contacto com ela. (…) Emancipada face à autoridade dos adultos, a criança não foi portanto libertada mas antes submetida a uma autoridade muito mais feroz e verdadeiramente tirânica: a tirania da maioria. (…) A reacção das crianças a esta pressão tende a ser ou o conformismo ou a delinquência juvenil e, na maior parte das vezes, uma mistura das duas coisas.”
2 – Consiste no predomínio da pedagogia sobre os outros saberes em matéria de ensino, fruto da influência da psicologia moderna e das doutrinas pragmáticas. A sobrevalorização da pedagogia e a desvalorização das disciplinas curriculares conduz, a médio prazo, a um desinvestimento nas competências científicas do professor e a uma limitação da sua autoridade. “O professor (…) é aquele que é capaz de ensinar qualquer coisa. A formação que recebe é em ensino e não no domínio de um assunto particular. (…) O que daqui decorre é que, não somente os alunos são abandonados aos seus próprios meios, como ao professor é retirada a fonte mais legítima da sua autoridade enquanto professor. Pense-se o que se pensar, o professor é ainda aquele que sabe mais e que é mais competente. Em consequência, o professor não autoritário, aquele que, contando com a autoridade que a sua competência lhe poderia conferir, quereria abster-se de todo o autoritarismo, deixa de poder existir.”
3 – Consiste na sobrevalorização da cultura da ludicidade em detrimento da cultura do esforço, assente no pressuposto “de que se não pode saber senão aquilo que se faz por si próprio” e na redução do aprender ao fazer. Para além da alteração do papel do professor, visto já não como um mestre do ensino mas como um indutor de aprendizagens, a sobrevalorização do lúdico no processo ensino aprendizagem contribui ainda mais para a infantilização do adolescente e para autonomização e absolutização da infância. “Considera-se pouco importante que o professor domine a sua disciplina porque se pretende compelir o professor ao exercício de uma actividade de constante aprendizagem para que, como se diz, não transmita um “saber morto” mas, ao contrário, demonstre constantemente como se adquire esse saber. (…) Considera-se o jogo o mais vivo modo de expressão e a maneira mais apropriada para a criança de se conduzir no mundo, a única actividade que brota espontaneamente da sua existência de criança. Só aquilo que se pode aprender através do jogo corresponde à sua vivacidade. (…) Deixando de lado a questão de saber se isso é ou não possível (…) é perfeitamente claro que este método procura deliberadamente manter a criança mais velha, tanto quanto possível, num nível infantil. Aquilo que, precisamente, deveria preparar a criança para o mundo dos adultos, o hábito adquirido pouco a pouco de trabalhar em vez de jogar, é suprimido em favor da autonomia do mundo da infância.”
Diagnosticadas as causas e as consequências da crise, impõe-se a necessidade de reformulação do sistema de educação. Mas tal reformulação deve ser precedida de uma “reflexão sobre o papel que a educação desempenha em todas as civilizações”.
A reflexão da autora remete-nos para um plano de fundo do qual emergem um conjunto de ideias que configuram as seguintes teses: a criança e o mundo pertencem a mundos distintos e conflituantes – o privado e o público – perante os quais os adultos em geral têm responsabilidades diferentes; o esquecimento e a supressão destas diferenças têm repercussões negativas no processo de amadurecimento das crianças; o papel da escola é o de mediador, isto é, o de contribuir para a introdução gradual da criança no mundo, ajudá-la a amadurecer e a transformar-se num ser responsável pelo mundo; a difícil tarefa de educar é correlativa da recuperação do respeito pela tradição e pela autoridade – “No mundo moderno, o problema da educação resulta pois do facto de, pela sua própria natureza, a educação não poder fazer economia nem da autoridade nem da tradição, sendo que, no entanto, essa mesma educação se deve efectuar num mundo que deixou de ser estruturado pela autoridade e unido pela tradição” – ; a impossibilidade de educar sem ensinar – “uma educação sem ensino é vazia e degenera com grande facilidade numa retórica emocional e moral” – ; a educação é um caso de amor/cuidado pela conservação e renovação do mundo, o qual passa necessariamente pelo amor/cuidado que as crianças merecem, no sentido de as preparar e convocar “para a tarefa de renovação de um mundo comum”.

o inferno vai começar

Não tarda nada o país vai começar a arder. A época dos incêndios está aí à porta e, a acreditar nos prognósticos para os próximos meses de que faz eco a comunicação social, o mercúrio dos termómetros irá subir para valores jamais registados. O inferno vai começar.
Será oportuna a saída do ministro António Costa e a passagem de testemunho a Rui Pereira no Ministério da Administração Interna? Há quem responda prontamente que não, argumentando que desse modo estão em causa importantes reformas em curso, as quais fazem parte do Plano de Reestruturação da Administração Central do Estado. A meu ver, isso é sobrevalorizar a competência do ministro cessante (tê-la-á, não duvido), pondo em questão as capacidades de quem ainda não deu provas nessa área. Eu alinho na opinião daqueles que consideram que a remodelação do executivo é oportuna, em proveito porventura do próprio e fundamentalmente do Primeiro Ministro. Porquê? Duas razões. Primeira, porque António Costa, face aos candidatos de direita que se perfilam, não terá dificuldade em vencer as eleições para a Câmara de Lisboa, caso não cometa erros de maior (improvável) e saiba colar-se aos programas dos candidatos situados mais à esquerda. Segunda, porque desse modo José Sócrates entrega ao seu número dois um presente envenenado (governar um município ingovernável no contexto das leis promulgadas), e coloca-o mais longe de uma sucessão mais do que legítima, se tivermos em conta o seu perfil e a sua personalidade (ser futuro Primeiro Ministro). É este o sentido da socratização do governo.
É com pena que prevejo a vitória de António Costa. Prefiro, no contexto da política autárquica, a democracia dos cidadãos à democracia partidária.
Entretanto, fica a dúvida: não irá António Costa fugir ao inferno dos fogos que se avizinham para ser queimado na fogueira de uma Câmara ardente?

declarações suspeitas da Ministra

Não me lembro se foi Hegel quem afirmou que a leitura do jornal correspondia à oração diária do homem moderno. Se não foi ele, também não lhe fica mal o dito, representante como de facto foi, em termos filosóficos, do apogeu da modernidade.
Para lá de todos os pós-modernismos que em matéria de pensamento em geral o século XX viu nascer, numa tentativa esquizofrénica de decifrar o indecifrável – a vida pujante que se projecta irrevogavelmente para diante –, sinto-me ainda mentalmente enquadrado no paradigma ideológico da modernidade, apesar das muitas reservas que possa ter em relação ao seu programa iluminista original, nomeadamente no que diz respeito à sua crença na razão como instrumento privilegiado de libertação das tutelas várias que nos encerram numa menoridade cobarde. Encaro o sapere aude! kantiano como a ideia reguladora que pretendeu ser, mas que, cada vez mais nos tempos que correm, enfrenta sérias dificuldades em se constituir como o farol de esperança que deveria ser.
Ainda assim, como dizia, me sinto moderno. Talvez por isso tenha por hábito ler jornais e procurar neles a informação necessária para actualizar (outra crença iluminista) as opiniões que vou construindo, a propósito disto e daquilo.
O estado actual da educação em Portugal preocupa-me, por diversos motivos. Não só porque faço dela o meu ganha-pão (amargo, diga-se de passagem), mas sobretudo porque tenho a certeza que o que nela se joga é decisivo – o ganha-pão futuro das gerações mais novas que andam na escola a aprender a ser alguém e a viabilidade futura do meu país em termos de autonomia. Digo e repito: em termos de autonomia. E esclareço – essa autonomia que faria de nós competitivos à escala europeia e mundial, e cuja falta fará dos portugueses os pedintes envergonhados de uma Europa apenas sonhada.
Ao folhear o Público dei de caras com um conjunto de notícias que à educação dizem respeito. E o que dizem? Que o Ministério se prepara para alterar, no ensino secundário, “cargas horárias de várias disciplinas” e “criar um novo curso de Línguas e Humanidades”, propondo “o reforço do tempo dedicado a aulas práticas” em detrimento da disciplina de “Tecnologias de Informação e Comunicação do 10º ano”. E há mais. Três anos depois de terem entrado em vigor os actuais programas, “o Ministério da Educação já anunciou estar em curso a revisão dos currículos do Português, nos ensinos básico e secundário”. Basta? Não, senhor. Não basta. Reformas e contra-reformas não são o suficiente. Há que responsabilizar. Quem? Quem havia de ser? Os professores, pois claro. Malandros! Irresponsáveis! Palavras de Sua Sumidade Maria de Lurdes Rodrigues, referindo-se aos exames nacionais do 9º ano que decorrerão muito em breve: “Pela primeira vez, o país associará os resultados não apenas à performance dos alunos, mas também ao trabalho das escolas e dos professores, para o melhor e para o pior”. E acrescenta o jornalista: a Ministra “sustentou que os resultados que vierem a ser obtidos este ano serão um ‘teste ao trabalho das escolas’”. Por que razão tudo me cheira a esturro? Não é certamente pura ilusão olfactiva. Os exames estão à porta. A senhora ministra, com todas as revoluções operadas no sistema de ensino (aulas de substituição e o diabo a sete) comprometeu-se com o país e sabe que este mesmo não perdoa – vai exigir-lhe resultados. Ela que sempre afirmou ter uma política de educação, vai ter de mostrar que tal política é consistente e consequente com os princípios enunciados. Ou não estará antecipadamente a arranjar bodes expiatórios para algo que já se adivinhava?
Pois bem, senhora Maria de Lurdes Rodrigues, o país associará os resultados não apenas às competências dos alunos, das escolas e dos professores, mas igualmente à competência do Ministério a que tutela. Estaremos cá para ver e julgar. A ver vamos

sexta-feira, maio 11, 2007

a utopia de um mundo de não fumadores

As utopias podem não estar inscritas no código genético da humanidade, mas estão-no certamente no seu código cultural ou civilizacional. De Platão ao Comunismo, passando por T. Morus ou T. Campanela, sempre o homem sonhou com a concretização de um ideal de sociedade isento de das mais variadas imperfeições. Mas quando esse ideal desce ao terreno, muitos são os perigos e mais ainda as injustiças. À letra, utopia significa "não lugar". É pois desse nenhures espacial que se vão construindo espaços onde, por vezes, os totalitarismos do fanatismo e da intolerância se instalam e as liberdades definham.
Uma das utopias do pós guerra tem que ver com o sonho de construir uma sociedade higiénica e sanitariamente imaculada. Os recursos da ciência e os progressos da medicina têm dado asas ao sonho da sua concretização. É nesta lógica que o corpo e a saúde vão ganhando uma primazia inimaginável, relegando tudo o resto para patamares de secundária importância. É a mesma lógica que faz dos velhos objectos abjectos ou descartáveis (pelo menos os que não se sujeitam à terapia da higienização corporal), imolando-os no altar de um deus asséptico. É enfim no mesmo rumo ideológico que, por todo o mundo ocidental, alinham os profectas limpeza antitabágica.
Nesse sentido escreve João Pereira Coutinho este belíssimo texto:
"A luta contra o tabaco nunca foi uma luta pela saúde dos 'passivos' (o que seria compreensível). Foi simplesmente uma luta contra a liberdade individual em nome de uma utopis sanitária: os fanáticos não desejam apenas que o fumo não os perturbe; desejam que a mera existência de um fumador também não. É a intolerãncia levada ao extremo e servida numa retórica simpática e humanista. E agora com cobertura legal.
A prazo, essa luta não irá ficar apenas pelo fumo; pessoas gordas; pessoas que desenvolvem actividades sexuais promíscuas; pessoas inestéticas; pessoas que não se adaptam à cartilha higiénica das patrulhas serão enxotadas, como ratazanas da espécie, de qualquer presença visível numa sociedade crescentemente dominada pelo culto da saúde. seremos como as tribos primitivas, elevendo o corpo a um novo deus. Caprichosos e cruéis."
Entretanto vou fumar mais um cigarro, antes que as patrulhas do Morte aos feios e porcos fumadores não espreitam.

Consumo, logo existo

Vivemos submersos por uma onda consumista que se abateu sobre a cabeça de todos nós. O acto de consumir transformou-se, entre os portugueses, em mais do que um hábito. É um vício de tal modo enraizado que mais parece uma dependência de heroína que nenhuma metadona consegue substituir ou enganar. E tudo isto em pouco tempo. Década e meia? Vinte anos, se tanto. No período antecedente ainda éramos definidos como um povo de gente poupada, gastando apenas o que podia e aforrando alguns tostões, de forma a prevenir eventuais despesas imprevistas e necessárias. Num instante tudo mudou. Tornámo-nos europeus, começámos a fazer parte do pelotão dos ricos e não quisemos esbanjar a oportunidade de agir em conformidade. Os anos que imediatamente se seguiram à nossa adesão à União Europeia deram-nos a ilusão de termos acedido a uma patamar de desenvolvimento económico irreversível. Pura ilusão. O desengano não tardou. Mas era tarde. De tão viviados estarmos, confundimos tudo e não quisemos abdicar do bem-estar e da prosperidade (ainda que aparentes) longamente sonhados na era das vacas magras. O pior foi quando o Banco Central Europeu, esses gajos lá da Europa - é assim que nos referimos a quem nos estraga a vidinha, simulando a distância - desataram a tomar medidas para relançar a economia. Num repente, o euro virou o mais negro dos nossos pesadelos e começámos todos a ter saudades do escudo que sempre chegou para os arremedeios.
É evidente que a fúria consumista que nos consome o tutano é como o Toyota - "veio para ficar". Ela instalou-se no âmago do nosso existir, ao ponto de substituir a nossa epiderme e de fazer parte da nossa corrente sanguínea. Se o ponto arquimediano de Descartes era o Cogito - o famoso "penso, logo existo" -, o nosso traduz-se no Consumo - "consumo, logo existo". Nada há a fazer, não haja ilusões. Não podemos ao mesmo tempo acreditar nas promessas do Neoliberalismo e do Mercado Livre e fechar-lhe os olhos e a alma. Vendemos a alma ao diabo, a cobrança era inevitável. E as suas exigências são proporcionais às suas necessidades: quanto mais felicidade assente no consumo desenfreado mais trabalho e produtividade temos de exibir. Contas são contas. Mudar de valores significa mudar padrões de vida. Nem que para isso tenhamos que deixar as nossas crianças ao deus-dará, entregues quiçá ao orfanato da cultura de entretenimento que lhes promete a felicidade ali mesmo à mão de semear - à distância de um clic - e nos devolve, anos volvidos, adultos formatados para o consumo a todo o preço. É por isso que cada vez mais o orçamento mensal das famílias portuguesas, qualquer que sejam as suas posses, se vê sobrecarregado com mesadas e reforços das mesmas, com gastos e mais gastos, ora para isto ora para mais aquilo, numa irresponsabilidade que os bancos agradecem e aplaudem. O incentivo ao consumo faz hoje parte de uma realidade transversal e os mais jovens - nem sequer os pais destes - não têm armas para travar esse combate desigual. É preciso não esquecer que David só venceu Golias num universo da ficção bíblica e enquadrado num paradigma mental de que hoje só nos resta uma vaga reminiscência. E não será usando uma funda que se derrubará o gigante que se reproduz e cresce dando-se ao consumo.

quarta-feira, maio 09, 2007

Administar, administrar a quanto obrigas!

Desde que fui eleito Administrador do prédio cá do sítio, comecei a ter mais respeitinho por todas as pessoas que exercem cargos administrativos ou outros da mesma iguala, incluindo o de Primeiro Ministro. É que o cargo confere um estatuto que nem o fato e a gravata únicos que tenho - e que hão-de servir para os restantes casamentos, baptizados e funerais (incluindo o próprio) a que irei -, por não serem Armani ou coisa parecida, estarão ao nível do melhor dos desempenhos que possa vir a ter.
Por mais forçada que pareça a comparação, ser Admistrador de um prédio com catorze pisos e vinte e quatro condóminos, pelo menos na Lisboa da actualidade, não é assim tão diferente de estar à frente de um país como o nosso. Bem sei que as proporções e as escalas são infinitamente diversas: 10 milhões não são 70 ou 80. Mas no fundo, no fundo, vai parar tudo ao mesmo. O sistema é democrático, ainda que não representativo mas directo (o que torna a tarefa um tudo nada mais complicada). O ponto de partida é um sufrágio universal, depois vem o cerimonial da tomada de posse, a passagem de testemunho, a recolha de dossiers, das chaves e dos minúsculos segredos impensáveis; enfim, um sem número de actos que dignificam o mais pelintra dos cidadãos. Ainda a procissão não saiu da igreja para dar entrada triunfal no adro, e já dois ou três (se tivermos sorte) dos concidadãos - justamente os que respiram de alívio por não lhes ter saído a rifa do cargo prestigioso - segredam dicas e conselhos ou, o que é pior, nos dão uma palmadinha nas costas e dizem: "coragem, isso não é assim tão mau. É só passar uns recibozitos ao fim do mês". Bardamerda, é o que apetece dizer. Mas uma pessoa cala o impropério, pois o papel tem de estar de acordo com o estatuto. De seguida, já no remanso do lar, bebendo um copázio de whisky para serenar a exaltação do momento vitorioso, há que estudar os dossiers. A concentração agora é tudo. Os dotes matemáticos saltam como as hormonas juvenis em dias de primavera. A aptidão para os números impõe-se. Verificam-se colunas de algarismos e a soma transforma-se em subtracção. Se houve défice na Administração anterior (o que não é inabitual) é uma carga de trabalhos. Mesmo não o havendo, as contas têm de se conjugar como verbos regulares. As actas têm de ser lidas, as facturas conferidas. Os papeis e a burocracia não dão trégua.
A tarefa torna-se mais penosa quando a Administração é conjunta e a parceria é infeliz. O outro (o inferno é sempre o outro) é um português típico: palrador, confiante, um sabichão das dúzias. Tudo são facilidades. Não faz é questão de lidar com papeis. No entanto, ao fim de mês e meio faltou a sete das dez reuniões agendadas e nem deu cavaco nem justificação. Não foi ao banco, não contactou com a empresa de limpeza, não falou com os tipos que fazem a manutenção e a reparação dos elevadores, não reparou que havia lâmpadas fundidas, portas para afinar, não substituiu as cassetes do serviço de vigilância, não deu conta do alarme que tocou duas ou três vezes a desoras, não está para se chatear. Mas é fanfarrão: ele faz e acontece, desfaz Fulano, desanca Sicrano, põe a chata do 9º A na ordem. Neste pormenor, ser Primeiro Ministro leva vantagem. Sempre se têm os ministros e os secretários disto e daquilo para ajudar. Manda quem pode, obedece quem deve.
Neste calvário sem fim, o ano parece que não avança, os meses não passam, as semanas escorrem com a lentidão de um filme passado ao retardador. E são os orçamentos que se deviam pedir e não aparecem, os relatórios redigidos numa linguagem que se não entende, as quotizações em atraso, o dinheiro que numa hora parece muito e noutra se sume num escoadouro indiscernível. Depois é o condómino x que tem uma infiltração na arrecadação e nos acorda às nove da manhã a julgar que está a falar com os Bombeiros Sapadores da Esquina; a senhora do 7º qualquer coisa que acordou com uma ideia genial para gastar os parcos recursos geridos por amadores; o sr. arquitecto que acha que a empena do prédio vai dar problemas não tarda; a doutora fina que considera que. E a tudo isto se vai dizendo que sim senhor, logo se vê, devemos pôr o assunto à consideração da assembleia, persuadir com diplomacia, na esperança de que tudo acabe rapidinho antes que me dê uma coisa má.
Quando os meses se sucederem e, depois de férias, começar a cheirar a Natal, é tempo de preparar as contas finais, o orçamento do ano que vem, os dossiers da gestão corrente e sonhar com a assembleia apoteótica da cessação de mandato. Mas ainda vem tão longe...
E o que ganho com isto? Estatuto, sem dúvida. E uma inolvidável experiência de gestão pública (no sentido próprio do termo) que me há-de trazer uma mais valia reconhecida pelas principais empresas do mercado nacional. Um mandato disto é mais que um canudo em qualquer engenharia.
Por tudo isto (o referido e o omitido), a minha proposta vai no sentido de impor uma condição prévia ao exercício de Primeiro Ministro - ter pelo menos a experiência de um ano de mandato como Admistrador de um condomínio no mínimo com nove pisos (sempre gostei do número sete), dois dos quais de garagem, dois elevadores e quinze condóminos (correspondendo a cinquenta pessoas a habitar permanentemente), uma bomba de sucção de águas e um gerador. E um aumento de vencimento na ordem dos 50%. Como eu o compreendo, Sr. Primeiro Ministro!

terça-feira, maio 08, 2007

a actualidade de Eça ou a inactualidade do país

Dedicado ao amigo Chico da Popeline, autor de um dos blogues mais bem dispostos da blogosfera escrita na língua de Camões (http://tirem-me-deste-filme.blogspot.com/).
As Farpas constituem um projecto a dois - decorria o ano de 1870 - e resultava duma parceria de Eça de Queirós com Ramalho Ortigão, que se vai consubstanciar num conjunto de crónicas mensais. Um ano e pico mais tarde, Eça abandona o projecto, por ter sido colocado como cônsul em Havana. Vinte anos depois as ter escrito, o autor, já então consagrado, decide reunir as suas num volume intitulado Uma campanha alegre. Já em Paris, em Outubro de 1890, escreve numa Advertência à publicação desta:
"As páginas deste livro são aquelas com que outrora concorri para as FARPAS, quando Ramalho Ortigão e eu, convencidos, como o Poeta, que a 'tolice tem a cabeça de touro', decidimos farpear até à morte a alimária pesada e temerosa."
Quando em Junho 1871 é publicada, em letra de forma, a primeira d'As Farpas da autoria de Eça de Queirós, a sociedade portuguesa está longe de imaginar que nascia um talento puro na arte de farpear com a pena, que nascia um mestre da caricatura desenhada pela palavra, pela qual surgiriam personagens e costumes expostos no seu ridículo e que são ainda hoje um espelho de nós próprios. Leiamos uma só página:
" O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. a classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. o desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Todo o vier espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce... O comércio definha. A indústria enfraquece. O salário diminui. a renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e como um inimigo.
Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o lucro.
De resto a ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. O número das escolas só por si é dramático. O professor tornou-se um empregado de eleições. A população dos campos, arruinada, vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinha e de ervas, trabalhando só para o imposto por meio de uma agricultura decadente, leva uma vida de misérias, entrecortada de penhoras. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do País. Apenas a devoção perturba o silêncio da opinião, com padre-nossos maquinais.
Não é uma existência, é uma expiação.
(...)
Vamos rir, pois. O riso é uma filosofia. Muitas vezes o riso é uma salvação. E em política constitucional, pelo menos, o riso é uma opinião."
Na boa tradição vicentina do ridendo castigat mores, Eça convida-nos ao juízo mais eficaz de todos, à opinião que provoca o riso mas igualmente à reflexão. Bem hajas, Eça! Bem hajam todos quantos fazem desta Filosofia do riso a sua Filosofia da existência.

domingo, maio 06, 2007

Eu, fumador, me confesso...

Eu, fumador, me confesso indignado com a lei antitabágica aprovada em Conselho de Ministros. A minha indignação resulta não de alguma desconsideração pelos direitos dos não fumadores, mas por considerar que ela faz eco de uma atitude fundamentalista que olha para o fumador como se de um potencial criminoso se tratasse, que importa antes de mais reprimir a todo o custo e denunciar quanto antes.
A lei impõe a absoluta proibição de fumar em tudo quanto for transporte público, estabelecimento de saúde ou de ensino e até nos serviços da administração pública (mesmo tratando-se de espaços ao ar livre). Mas proíbe mais: fumar em restaurantes, bares e discotecas com menos de cem metros quadrados. Pior ainda - obriga os proprietários destes a denunciar os ditos criminosos, sujeitando-se, se o não fizerem, à multa.
Sobretudo o que me repugna são os tiques fascistas ou pidescos que se promovem ao incentivar a delação pronta e imediata. Sou, do ponto de vista ético, um admirador de Aristóteles, e sei que são os actos que formam o carácter das pessoas. O fundamentalismo antitabágico cresce como o deserto de ideias neste Portugal de pequeninos salazares e de imitadores de socratezinhos crispados.
O bom senso impunha que percebêssemos duas coisas: primeira, que a democracia sólida e saudável só tem a ganhar com a não discriminação das minorias; segunda, que a mesma não se compadece com hipocrisias e cinismos. Ou não será o Estado o beneficiário de 1400 milhões de euros de impostos que arrecada anualmente com o imposto à venda de tabaco? Porque não canalizar esse montante para reforçar o orçamento do Serviço Nacional de Saúde? Porque razão as penalizações são maiores para os consumidores de tabaco do que para os consumidores de droga? Porque me querem cercear a liberdade de fumar um cigarro mesmo quando tenho a consciência que não estou a pôr em causa a liberdade de ninguém?
Termino com um texto de João Pereira Moutinho, copiado do Expresso:
"Em 1624, o Papa Urbano VIII resolveu proibir o tabaco por acreditar que o uso da coisa corrompia sexualmente os fiéis. A proibição seria removida no século seguinte por Bento XIII e, em 1779, o Vaticano acabaria mesmo por abrir a sua própria fábrica de cigarros. Exemplos deste tipo, que a revista ‘The Atlantic’ recorda, podem ser aplicados a diversos períodos da história onde a proibição do vício não durou muito. Foi assim no Império Otomano, onde as perseguições antitabágicas do sultão Murad IV, que proporcionavam 18 execuções diárias, não sobreviveram ao seu sucessor, curiosamente conhecido por Ibrahim, o Demente. Foi assim na Rússia seiscentista, onde as terapias siberianas que o czar Michael ministrava aos fumadores acabariam por ser enterradas no último quartel do século XVII. E foi assim com o inevitável Adolf Hitler, santo padroeiro das patrulhas antitabágicas modernas. Em 1933, quando Hitler chegou ao poder, o tabaco foi eleito inimigo mortal do Reich e uma ameaça directa à pureza da raça. De acordo com o delirante Adolf, o tabaco era o responsável por tudo: doença, impotência, comunismo (não necessariamente por esta ordem). As campanhas que se seguiram, de uma violência e desumanidade que só as actuais igualam, não sobreviveram ao descalabro do Reich."

sábado, maio 05, 2007

Um mal nunca vem só

Apesar do valor lógico dos provérbios populares ser questionável, o qual decorre do seu enraizamento num mundo em si contraditório e na experiência irredutivelmente subjectiva que as circunstâncias permitem aos homens viver, não poderemos descartá-los em absoluto. Pelo contrário, visto que neles se condensa uma sabedoria que o tempo e o uso cristalizaram. São, pois, cristais de sabedoria a que podemos recorrer para dar significado ou ilustrar situações vividas ou expectáveis.
O uso que lhes dou - à medida que o tempo passa e a maturidade rima cada vez mais com o espectro da terceira idade - vai-se tornando frequente. Sobretudo nos casos em que a minha própria experiência é escassa, como, por exemplo, no que diz respeito à responsabilidade que é ser dono de um cão. Já me referi num post anterior ao caso, o que, diga-se em abono da verdade, é sintomático de uma preocupação que já dá sinais de estado obsessivo. Mas o facto é que a saga continua. Poderia intitulá-la Um mal nunca vem só, mas como não sou um pessimista empedernido prefiro Não há mal que sempre dure, nem bem que se não acabe. Mas vamos de imediato à narração dos factos:
O Tota - é assim que o meu cão se chama - é um cão rafeiro que nasceu num canil e foi por mim adoptado quando tinha três meses. Para além disso tinha tinha, o que o impediu de sair à rua durante mais de um mês e meio. Resultado: aprendeu a fazer as suas necessidades em casa e tornou-se mestre nessa arte. Uma vez aprendido, sempre aprendido ou, como reza o ditado Aprende e serás mestre. Mas o problema maior é que o idiota tem a mania de comer as próprias fezes, felizmente não sempre, mas ainda assim com uma frequência que me deixa sem apetite. Entretanto fui ontem visitar a veterinária (pela quarta ou quinta vez em cerca de dois meses). Não se tratou de uma visita de cortesia, não senhor. Estava agendada a consulta e confirmei-a telefonicamente dois dias antes, que a senhora doutora não tem mãos a medir. Para lá da despesa - que somada às anteriores já perfaz o equivalente a uma semana em Porto Galinhas com pensão completa para duas pessoas - fiquei a saber que o cão está com as amígdalas inflamadas, fruto de um resfriado ou de uma constipação intempestiva. Antes que me apresentassem a factura que suspeitava poder ascender, números redondos, a três algarismos (ficou aquém, valha-nos isso - 88 euros e 50 cêntimos) resolvi colocar o meu problema à dita doutora (o tal problema das fezes que se tornaram comestíveis para o cachorro). Assim, sempre podia desabafar, caramba! O seu conselho pareceu-me genial (como é que não tinha pensado nisso?): "quando ele voltar a fazer cócó, enche os excrementos de pimenta. Vai ver, mal se aproxime para os cheirar, é remédio santo". Logo que cheguei a casa pus-me à coca, reprimindo o riso num gozo antecipado da malvadeza. Mal o vi deslocar-se em direcção ao local do crime, corri célere, não fosse ele antecipar-se. O cócó lá estava, tipo croquete acabadinho de fritar. Saquei do saco de pimenta e despejei o suficiente até lhe dar um aspecto de panadinho. O danado do cão aproximou-se, cheirou-o e zás, abocanhou-se de uma assentada. Gritei-lhe desesperado. Chamei-lhe nomes que não chamaria nem ao pior dos inimigos. Ele fugiu e foi-se esconder debaixo da mesa da sala, como sempre faz quando tem consciência do mal feito. Olhou para mim com um olhar doce, a pedir clemência, o sacana do bicho. E lambia os beiços, não sei se de satisfação ou se para aplacar o ardor que certamente lhe mordia a boca e a língua. Tive piedade do animal. Afinal de contas é o meu cão, o membro mais novo da família. Entre cem virtudes a piedade filial é a principal.
Alguns intelectuais da nossa praça, ancorados porventura numa mundividência sociológica de raiz marxista (por exemplo, Maria Filomena Mónica), defendem uma tese com a qual simpatizo mas da qual discordo. Paradoxal? Não de todo. Pode-se simpatizar com uma tese por se considerar que ela é persuasiva ou mesmo auto-consistente, mas, em contrapartida, discordar dela por acharmos que não se adequa cabalmente à realidade que pretende explicar, ou então por considerarmos que existem razões mais profundas e argumentos mais fortes a apoiar outras teses concorrentes.
A tese afirma grosso modo o seguinte: é o bem estar económico, o acesso mais generalizado à riqueza, por parte das massas, que permitirá a um povo elevar o seu nível cultural (em função do tempo e da educação), possibilitando-lhe desenvolver capacidades básicas de apreciação crítica ou estética. Dizendo a coisa de outro modo: logo que a barriguinha estiver cheia, o povoléu tratará de se preocupar com os assuntos do espírito.
A ideia é atractiva, não o nego, e está assente numa certa crença muito difundida do que foi o movimento da modernidade nos últimos três séculos na Europa e no mundo ocidental - o iluminismo, a revolução industrial, as revoluções americana e francesa, o capitalismo, a democratização do direitos, a massificação do ensino e da cultura. Por mais sedutora que seja, a ideia não me convence. Outra ideia existe que me parece mais de acordo com a realidade. Essa ideia fui buscá-la a um texto escrito por Hannah Arendt, em 1960, com o sugestivo título A crise na cultura.
Segundo a autora, se é verdade que a "cultura de massas" deriva da "sociedade de massas", tal não implica necessariamente uma elevação do nível cultural das mesmas. São os seus traços psicológicos que não o permitem: "o seu abandono (...); a sua agitação e a sua ausência de modelos; a sua aptidão para o consumo a par da incapacidade de fazer juízos, ou até distinções". Por outro lado, a cultura de massas traduz um movimento de "intelectualização do kitsch" que irá perdurar em virtude quer do seu apetite consumista quer da transformação operada no próprio objecto cultural, tornando-se no seu oposto - um objecto funcional. Daqui resulta que a cultura de massas se assume como cultura de entretenimento, o que significa a destruição da própria cultura. Para finalizar, um par de citações permite-nos acompanhar este fio de raciocínio que, apesar de não linear (pelo menos na aparência), não deixa de ser consistente com o fenómeno a ser compreendido:
"A cultura de massas aparece quando a sociedade de massas se apropria dos objectos culturais, e o seu perigo está em que o processo vital da sociedade (...) irá literalmente consumir os objectos culturais, irá devorá-los e destruí-los. Com isto não me estou a referir, claro , à difusão massiva desses objectos. Quando os livros ou as reproduções de quadros são lançados no mercado a baixo preço e vendidos em quantidades elevadas, isso não afecta a sua natureza. A sua natureza é afectada, isso sim, quando os próprios objectos são modificados: reescritos, condensados, digeridos, reduzidos a 'kitsch' para reprodução ou adaptação cinematográfica. Aqui, deparamo-nos não com um processo de extensão da cultura às massas, mas de destruição da mesma em prol do entretenimento. (...) Há muitos grandes autores do passado que, tendo sobrevivido a séculos de esquecimento e de negligência, talvez não sobrevivam às versões recreativas do que eles têm para dizer.
A cultura diz respeito a objectos e é um fenómeno do mundo; o entretenimento diz respeito a pessoas e é um fenómeno da vida. Um objecto é cultural na medida em que é capaz de perdurar; a sua durabilidade representa o exacto oposto da funcionalidade, que é a qualidade que o faz desaparecer novamente do mundo fenoménico depois de ter sido usado e desgastado.
(...) O que daqui resulta não é, claro, uma cultura de massas - a qual, estritamente falando, nem sequer existe - mas um entretenimento de massas que se alimenta dos objectos culturais do mundo. A creditar que uma sociedade acabará por se tornar 'mais cultivada' à medida que o tempo for passando e a educação for desempenhando o seu papel, constitui, a meu ver, um erro fatal. A questão é que uma sociedade de consumidores é possivelmente incapaz de defender um mundo e as coisas que pertencem exclusivamente ao espaço do aparecer no mundo, já que a sua atitude predominante em relação a todos os objectos, a atitude de consumo, condena à ruína aquilo em que toca."

sexta-feira, maio 04, 2007

Preso por ter cão

Afirmar que o cão é o melhor amigo do homem traduz, à semelhança do que acontece com todos os provérbios populares, a pretensão de enunciar um saber que, por ser empírico - o tal saber de experiências feito, por Camões referido -, é necessariamente verdadeiro. Ora, tal não é o caso. Para que assim fosse, não se achariam contra-exemplos capazes de o refutar. Mas o facto é que achá-los não é tarefa impossível, nem pouco mais ou menos. Por maioria de razão, tão verdadeiro é dizer que o cão é o melhor amigo do homem como apregoar que o homem é o melhor amigo do cão. Ambas são verdades apenas circunstanciais e não lógicas, mas eu prefiro a segunda. Porquê? Nem que mais não seja porque o cão, enquanto espécie, deve a sua existência ao próprio homem. Para além disso (e essa é a principal razão que me levou a escrever estas coisas ) eu agora tenho um cão e sei bem quem é o melhor amigo de quem. Senão vejamos:
O sonho de ter um cão era um sonho antigo cá em casa, um sonho sempre diferido, sempre adiado, por isto e por aquilo. Porque viver num apartamento não era o mais adequado; porque era mais uma despesa a somar às demais, dificultando a já complicada gestão do orçamento; porque a ordem de trabalhos diária estava tão saturada de tarefas e afazeres que não se compadecia com nem que fosse um ponto mais extra; porque havia uma série de pequenas liberdades não abdicáveis que não se compatibilizariam com a realidade de partilhar a vida com um elemento da espécie canina, por mais desejável e sedutora que fosse a ideia; etc. Enfim, por uma soma enorme de incompatibilidades e um ror de circunstâncias ínvias estava mais do que decidido que ter um cão era quase a mesma coisa que sair-nos a lotaria ou o euromilhões.
O certo é que a sorte nada quis connosco, mas a ideia concretizou-se quando menos esperávamos. Um belo dia soubemos que uma colega da minha consorte foi ao canil municipal e adoptou um cão. Rejubilava de tamanha felicidade, apesar da experiência ter a curta duração de uma só semana. Num repente, todos os contras se esfumaram. No outro dia, sábado, corremos ao dito canil e saímos de lá com um cão nos braços, um rafeiro ladino de idade indefinida (apesar de cachorro), com uma doença de pele vulgarmente designada por "tinha", o último de uma ninhada que (por razões óbvias) tinha sido preterido em relação aos seus irmãos.
A partir daí, a nossa vida mudou. Durante um mês e pico o cachorro não poderia sair de casa (sentença da veterinária). O tratamento da "tinha" era lento e requeria paciência, muita paciência. Só depois desse período de quase quarentena seria possível vaciná-lo (e por doses). Em suma, somente ao fim de um mês e meio é que o cachorro pôs pé firme na rua. As consenquências foram inúmeras, algumas delas de todo imprevisíveis. O pior de tudo nem foi uma semana mal dormida, nem sequer as despesas directas (pomadas, desparazitações internas ou externas, vacinas e o diabo a sete) ou indirectas (ração recomendada pelos mais consagrados veterinários), nem mesmo a liberdade cerceada. O pior foi que o cão se habituou a fazer o seu xixi e o seu cócó em casa (nem sempre no sítio certo) e, já vai pra mais de um mês de passeios e passeatas (sempre com o saquinho no bolso para apanhar as necessidades sólidas do canino) e nada. Pode o passeio durar duas, três ou seis horas. O raio do cachorro é estóico. Aguenta firme. Mas mal chega a casa, corre direitinho e zás. Já está. É caso para dizer, mesmo não sendo uma verdade inquestionável: preso por ter cão...

quarta-feira, maio 02, 2007

da filosofia e do seu uso corrente

A palavra filosofia anda na boca de meio mundo. Os portugueses usam-na a torto e a direito como se durante toda a sua vida mais não tivessem feito do que lidar tu cá tu lá com os mesmos problemas com que lidaram Platão, Descartes, Kant, Bertrand Russell ou Wittgeinstein. É evidente que o uso do termo não tem que pressupor sempre e necessariamente uma familiaridade com as questões filosóficas ou com os autores que à reflexão crítica dos problemas dedicaram muitos dos anos da sua vida. Mas o seu (ab)uso corrente e nos contextos em que habitualmente se emprega o termo, neste país de gente palradeira e de opinar ligeiro, é no mínimo estranho e dá que pensar.
Imagine-se uma equipa de ETs que se ocupa com a investigação dos terráqueos. O seu conhecimento do uso das palavras é enciclopédico, exaustivo e rigoroso, fruto de uma base de dados onde estão armazenados todos os melhores produtos da cultura produzida pela humanidade. Se deparassem com o uso corrente que os portugueses fazem do termo filosofia, que ideia fariam de nós? Certamente que se tratava de um povo singular, porventura o resultado de uma tradição cultural viva e de um sistema de ensino cuja preocupação principal seria a de formar seres humanos com autonomia crítica e agilidade reflexiva a toda a prova.
A propósito do assunto Eduardo do Prado Coelho escreveu um texto intitulado "A decadência da filosofia" (Público, 8/6/2004):
Durante o relato do jogo Porto-Mónaco na televisão, alguém declarou que os dois treinadores incarnavam uma nova filosofia do futebol. Não cheguei a perceber se se tratava de verdadeiras inovações tácticas, mas penso que a questão era outra: considerar no trabalho com os jogadores os aspectos psíquicos, e sobretudo emocionais. (...) E a palavra "filosofia" parece hoje menos presente nos jornais de cultura do que nos jornais desportivos. (...) disse Pinto da Costa (sobre o treinador) "Depois de o conhecer, de ter conversado com ele várias horas, de ter compreendido a sua filosofia e depois de ele compreender a minha (...)". É triste que a palavra "filosofia" ande tanto por caminhos tão insólitos. Os publicitários têm uma filosofia, os dirigentes desportivos têm uma filosofia, os guarda-nocturnos também têm."

terça-feira, maio 01, 2007

1º de Maio

A história do 1º de Maio não se pode dissociar da história do sindicalismo, o qual nasceu, de forma espontânea, nos finais do século XVIII em Inglaterra, no seio dos operários de lã. Foi, porém, ao século XIX que a luta sindical se internacionalizou, dando voz às reivindicações dos trabalhadores, sobretudo sob a batuta do maestro Marx, o qual profetizava o fim capitalismo e o advento de uma era mais igualitária (a de uma sociedade sem classes). O lema marxista - trabalhadores de todo o mundo, uni-vos! - haveria de conduzir à crescente consciencialização, por parte do operariado, da sua força reivindicativa, concretizada em jornadas históricas de luta, que desembocaria no célebre 1º de Maio de 1886, onde 500 mil trabalhadores saíram às ruas de Chicago para exigir a redução da jornada de trabalho para oito horas. Três anos depois, em memória do ocorrido em Chicago, foi aprovada em Londres uma resolução que determinava a consagração do 1º de maio de cada ano à luta pela redução da jornada de trabalho para as oito horas diárias.
O século XX foi o século de conquistas sindicalistas à escala mundial, mediante as quais o movimento operário assistiu, com esperança sempre renovada, ao reconhecimento de direitos sociais e políticos num movimento histórico então considerado irreversível. Mas foi também o século em que todos assistimos ao enfraquecimento das estruturas sindicais e ao seu esvaziamento de sentido, ao mesmo tempo em que o capitalismo reemergia com uma pujança nunca antes vista. Neste século, num só movimento pendular, que oportunidades se ganharam e se perderam? Para responder a esta questão basta ler uma página escrita no final do século passado pelo escritor Fernando García de Cortázar:
"A queda dos regimes socialistas , com os seus sindicatos únicos, e a ampliação da democracia formal pareciam uma oportunidade para uma revitalização do movimento. Ao desaparecer ou desprestigiar-se a vertente política do movimento de esquerda, aos trabalhadores não lhes restava outra opção que o sindicalismo. A possibilidade destes organismos inflenciarem os seus filiados nos movimentos eleitorais proporcionava expectativas de certa importância política. Contudo, as formidáveis mudanças ocorridas na década de noventa encontraram a maioria dos sindicatos dividida, convertida em pesadas máquinas burocráticas ou com estruturas e funcionamentos demasiado rígidos para responder agilmente. O seu êxito parecia estar intimamente ligado à sobrevivência do próprio sistema e à manutenção de algumas chamadas conquistas sociais, mais do que à busca de uma alternativa não capitalista. A institucionalização e profissionalização fizeram o sindicalismo perder o pé na sua própria história, ao passo que entrava na do seu inimigo. Associado a isto, a falta de criatividade, o adelgaçamento da combatividade, a ritualização da democracia sindical malograram uma oportunidade sem precedentes desde os anos trinta."
O mundo hoje tornou-se um lugar mais inquietante e perigoso do que há vinte anos atrás, sob muitas perspectivas. Órfão de uma utopia que se não cumpriu, o trabalhador assalariado comemora mais um 1º de Maio e olha o horizonte com o semblante carregado de incertezas e sente-se desamparado. A não ser que amanhã ressurja do nevoeiro matinal não um D. Sebastião do desespero, mas do lento movimento da história se reerga uma esquerda transfigurada e pronta para novas lutas e reconquistas.