Os últimos anos têm dado a conhecer, sobretudo nos países desenvolvidos, um fenómeno social alarmante. Trata-se de uma nova patologia social que afecta um número crescente de famílias e cujas implicações, múltiplas e complexas, requerem de instituições como hospitais, tribunais, famílias e escolas respostas que vão para além daquilo que estamos habituados a procurar ao nível do senso comum. Refiro-me ao fenómeno de crianças e de adolescentes que maltratam os seus pais, chegando por vezes a recorrer à violência física, por motivos aparentemente fúteis e de difícil aceitação. Inaceitável e incompreensível, o comportamento dos fedelhos que vêm os pais como meros instrumentos de satisfação dos seus caprichos, como objectos das suas vontades patologicamente construídas, revela fundamentalmente o mal-estar vivido no seio de um tipo específico de civilização – a civilização que faz do consumo imediato o único fim que justifica a existência. Revela igualmente a importância de repensar o modo como os pais educam hoje em dia os seus filhos.
Javier Urra, autor do livro O pequeno ditador – da criança mimada ao adolescente agressivo, traçando o perfil desses adolescentes violentos, afirma ao Expresso: “ São jovens, entre os 14 e os 16 anos, que só conhecem o ‘aqui’ e o ‘agora’. Sempre tiveram tudo. Cresceram a exigir coisas, nunca foram contrariados, ninguém os obrigou a cumprir regras. Quando um miúdo evolui neste percurso, tem cada vez mais poder em casa. Entretanto, torna-se adolescente e só conhece aquela maneira de estar. Chega a um ponto em que a vida familiar se torna insuportável. E há um dia em que, quando a mãe o enfrenta, ele se vira: ‘Tu? Atreves-te a dizer não, a mim!?”
Este pequeno ditador (que pode exceder em tamanho a estatura dos progenitores) vai, ao longo da sua curta existência, desenvolver uma personalidade narcísica, profundamente egoísta, alicerçada numa mescla de incapacidades: de autonomia, de reconhecimento, de satisfação sadia e de ultrapassar as frustrações que decorrem das suas mesmas incapacidades.
Qual é a verdadeira dimensão do problema em Portugal? Os números que existem não são elucidativos, por razões compreensíveis – só em circunstâncias extremas os pais denunciam os seus rebentos; pelo contrário, tendem a desculpabilizá-los, por vezes de forma bizarra. No entanto, a situação é grave, porquanto tem vindo a aumentar nos últimos anos. Os dados da Associação de Apoio à Vítima (APAV) são os seguintes: “19 casos de pais vítimas de filhos menores de 18 anos, em 2004. Em 2006, foram apresentadas 26 queixas. Quando se fala em filhos maiores de idade, o número dispara de 229 para 394, entre 2004 e 2006.” Parecem irrisórios, os números. Mas sê-lo-ão de facto? Proponho a seguinte leitura, à falta de outra melhor: no que diz respeito aos ditadores mais jovens – e atendendo a que é justamente nestas idades que os pais mais relutância sentem em se queixar e mais prontos estão para desculpabilizar – os números reais devem ser efectivamente muito superiores aos registados; no que se refere aos ditadores já com o estatuto de maioridade, apesar de os números apresentados estarem mais próximos da realidade, ainda assim devem ser uma ficção. De qualquer modo, o crescimento de casos registados foi, respectivamente, de 27% e de 42%, nos dois últimos anos. Significativo? Indiscutivelmente. Preocupante? Sem dúvida.
Quem são os responsáveis pelo fenómeno? Que causas descortinamos a montante? Do meu ponto de vista, os pais e a sociedade de consumo. Os primeiros porque são permissivos e irresponsáveis. Confundem carências reais com virtuais e entregam à sociedade (a escola) uma tarefa que lhes cabe a eles, prioritariamente. Demitem-se de ensinar e são incapazes de contrariar, de forma sistemática e coerente, o os imperativos fictícios de uma sociedade consumista/hedonista que manipula o entendimento e a vontade dos seus filhos a seu bel-prazer. Enredados num sistema que aceitam acriticamente, no qual não reflectem por manifesta falta de tempo, afirmam: “Não podemos ser impositivos, não podemos ser traumáticos”. Os segundos porque encaram as pessoas como meios exponenciais de facturação de lucros, impondo a ideia de uma juventude orientada para o imediatismo do consumo como um valor absoluto e como um ideal incondicional de vida.
A propósito do assunto refere Javier Urra: “ Os casais têm filhos cada vez mais tarde. Em Espanha, a taxa de filhos únicos é elevadíssima: 76%. Passámos de famílias grandes para famílias pequenas e monoparentais. Os filhos ocupam o centro do universo familiar, e têm um papel desmesurado na vida do casal. Os pais têm pouco tempo para estar com eles e não partilham os seus problemas familiares nem as suas preocupações do quotidiano. Preservam-nos. Por outro lado, o sistema está totalmente montado para apelar ao consumo. Os pais protegem-nos da realidade e a realidade que absorvem é a transmitida pelos meios de comunicação e de consumo que fazem um discurso altamente valorativo da juventude.”
Podem os pais lutar contra o monstruoso sistema, esse capitalismo desenfreado faz da sociedade do espectáculo e do consumo a sua razão de ser e subsistir? Podem eles contrariar o primado do Ter sobre o Ser que tem constituído a espinha dorsal das sociedades contemporâneas altamente desenvolvidas? Apesar de “dois em cada cinco anúncios induzirem as crianças e os jovens ao consumo: ‘compra, precisas de ter” ; apesar disso e sobretudo por isso, é preciso ensinar as nossas crianças a mudar de perspectiva, a orientar o seu olhar para o mundo real e fazê-las participar na construção de uma realidade mais consentânea com o seu futuro de adultos responsáveis. Como se faz isso? Transmitindo-lhes “regras básicas. Cumprir obrigações, respeitar horários, penalizar a desobediência. (…) Pelo menos uma vez, um pai deve dizer ao filho: ‘um dia vais morrer, a vida não é eterna’. Também deve dizer: ‘És importante, mas não és mais importante do que eu, nem do que os teus avós, nem do que o teu professor.’ Levá-lo a um hospital para que vejam crianças doentes. E que os ensinem a repartir. A maioria destes jovens são filhos únicos. Só ajudando os outros é que se darão conta de que os seus problemas são pequenos.”
É urgente ensinar às nossas crianças coisas simples como: “é importante seres alguém, gostava que te esforçasses por seres melhor”. Tal como é urgente ajudá-los a desconstruir discursos e mensagens que apelam à ideia de que ter é a finalidade última da existência.
Termino com um testemunho de alguém que não conheço e que me escreveu estas palavras, a propósito de algo que eu escrevi sobre este mesmo assunto, no final do ano passado. Testemunho cruel mas verdadeiro, como muitas vezes assim é a vida. É a minha homenagem anónima a alguém anónimo que só queria desabafar:
“O que se pode dizer a uma mãe que tem filhos que não a amam? Que se aproximam só quando querem coisas? Que dizem palavras que magoam? Que dizem: ‘Este é o último Natal que quero passar contigo.’ Que dizem: ‘Gostava que fosses transparente, surda e muda!’ Que dizem sobre a infelicidade de uma colostomia: ‘Mãe, agora és um esgoto ambulante!’ Que dizem: ‘Amanhã faço anos! Espero que não me apareças pela frente!’ Não há palavras para exprimir quanta mágoa eu sinto. O cancro ou a colostomia comparativamente são uma pequena alegria quando alguém desconhecido nos conforta com uma palavra amiga no hospital.”
Javier Urra, autor do livro O pequeno ditador – da criança mimada ao adolescente agressivo, traçando o perfil desses adolescentes violentos, afirma ao Expresso: “ São jovens, entre os 14 e os 16 anos, que só conhecem o ‘aqui’ e o ‘agora’. Sempre tiveram tudo. Cresceram a exigir coisas, nunca foram contrariados, ninguém os obrigou a cumprir regras. Quando um miúdo evolui neste percurso, tem cada vez mais poder em casa. Entretanto, torna-se adolescente e só conhece aquela maneira de estar. Chega a um ponto em que a vida familiar se torna insuportável. E há um dia em que, quando a mãe o enfrenta, ele se vira: ‘Tu? Atreves-te a dizer não, a mim!?”
Este pequeno ditador (que pode exceder em tamanho a estatura dos progenitores) vai, ao longo da sua curta existência, desenvolver uma personalidade narcísica, profundamente egoísta, alicerçada numa mescla de incapacidades: de autonomia, de reconhecimento, de satisfação sadia e de ultrapassar as frustrações que decorrem das suas mesmas incapacidades.
Qual é a verdadeira dimensão do problema em Portugal? Os números que existem não são elucidativos, por razões compreensíveis – só em circunstâncias extremas os pais denunciam os seus rebentos; pelo contrário, tendem a desculpabilizá-los, por vezes de forma bizarra. No entanto, a situação é grave, porquanto tem vindo a aumentar nos últimos anos. Os dados da Associação de Apoio à Vítima (APAV) são os seguintes: “19 casos de pais vítimas de filhos menores de 18 anos, em 2004. Em 2006, foram apresentadas 26 queixas. Quando se fala em filhos maiores de idade, o número dispara de 229 para 394, entre 2004 e 2006.” Parecem irrisórios, os números. Mas sê-lo-ão de facto? Proponho a seguinte leitura, à falta de outra melhor: no que diz respeito aos ditadores mais jovens – e atendendo a que é justamente nestas idades que os pais mais relutância sentem em se queixar e mais prontos estão para desculpabilizar – os números reais devem ser efectivamente muito superiores aos registados; no que se refere aos ditadores já com o estatuto de maioridade, apesar de os números apresentados estarem mais próximos da realidade, ainda assim devem ser uma ficção. De qualquer modo, o crescimento de casos registados foi, respectivamente, de 27% e de 42%, nos dois últimos anos. Significativo? Indiscutivelmente. Preocupante? Sem dúvida.
Quem são os responsáveis pelo fenómeno? Que causas descortinamos a montante? Do meu ponto de vista, os pais e a sociedade de consumo. Os primeiros porque são permissivos e irresponsáveis. Confundem carências reais com virtuais e entregam à sociedade (a escola) uma tarefa que lhes cabe a eles, prioritariamente. Demitem-se de ensinar e são incapazes de contrariar, de forma sistemática e coerente, o os imperativos fictícios de uma sociedade consumista/hedonista que manipula o entendimento e a vontade dos seus filhos a seu bel-prazer. Enredados num sistema que aceitam acriticamente, no qual não reflectem por manifesta falta de tempo, afirmam: “Não podemos ser impositivos, não podemos ser traumáticos”. Os segundos porque encaram as pessoas como meios exponenciais de facturação de lucros, impondo a ideia de uma juventude orientada para o imediatismo do consumo como um valor absoluto e como um ideal incondicional de vida.
A propósito do assunto refere Javier Urra: “ Os casais têm filhos cada vez mais tarde. Em Espanha, a taxa de filhos únicos é elevadíssima: 76%. Passámos de famílias grandes para famílias pequenas e monoparentais. Os filhos ocupam o centro do universo familiar, e têm um papel desmesurado na vida do casal. Os pais têm pouco tempo para estar com eles e não partilham os seus problemas familiares nem as suas preocupações do quotidiano. Preservam-nos. Por outro lado, o sistema está totalmente montado para apelar ao consumo. Os pais protegem-nos da realidade e a realidade que absorvem é a transmitida pelos meios de comunicação e de consumo que fazem um discurso altamente valorativo da juventude.”
Podem os pais lutar contra o monstruoso sistema, esse capitalismo desenfreado faz da sociedade do espectáculo e do consumo a sua razão de ser e subsistir? Podem eles contrariar o primado do Ter sobre o Ser que tem constituído a espinha dorsal das sociedades contemporâneas altamente desenvolvidas? Apesar de “dois em cada cinco anúncios induzirem as crianças e os jovens ao consumo: ‘compra, precisas de ter” ; apesar disso e sobretudo por isso, é preciso ensinar as nossas crianças a mudar de perspectiva, a orientar o seu olhar para o mundo real e fazê-las participar na construção de uma realidade mais consentânea com o seu futuro de adultos responsáveis. Como se faz isso? Transmitindo-lhes “regras básicas. Cumprir obrigações, respeitar horários, penalizar a desobediência. (…) Pelo menos uma vez, um pai deve dizer ao filho: ‘um dia vais morrer, a vida não é eterna’. Também deve dizer: ‘És importante, mas não és mais importante do que eu, nem do que os teus avós, nem do que o teu professor.’ Levá-lo a um hospital para que vejam crianças doentes. E que os ensinem a repartir. A maioria destes jovens são filhos únicos. Só ajudando os outros é que se darão conta de que os seus problemas são pequenos.”
É urgente ensinar às nossas crianças coisas simples como: “é importante seres alguém, gostava que te esforçasses por seres melhor”. Tal como é urgente ajudá-los a desconstruir discursos e mensagens que apelam à ideia de que ter é a finalidade última da existência.
Termino com um testemunho de alguém que não conheço e que me escreveu estas palavras, a propósito de algo que eu escrevi sobre este mesmo assunto, no final do ano passado. Testemunho cruel mas verdadeiro, como muitas vezes assim é a vida. É a minha homenagem anónima a alguém anónimo que só queria desabafar:
“O que se pode dizer a uma mãe que tem filhos que não a amam? Que se aproximam só quando querem coisas? Que dizem palavras que magoam? Que dizem: ‘Este é o último Natal que quero passar contigo.’ Que dizem: ‘Gostava que fosses transparente, surda e muda!’ Que dizem sobre a infelicidade de uma colostomia: ‘Mãe, agora és um esgoto ambulante!’ Que dizem: ‘Amanhã faço anos! Espero que não me apareças pela frente!’ Não há palavras para exprimir quanta mágoa eu sinto. O cancro ou a colostomia comparativamente são uma pequena alegria quando alguém desconhecido nos conforta com uma palavra amiga no hospital.”