sábado, maio 17, 2008

semana azarada

Para o Governo, esta semana não veio mesmo nada a calhar. O que calhava, era riscá-la do calendário. Afinal de contas, uma semana a menos nem aquece nem arrefece.
Numa semana em que o (super)ministro das finanças, Teixeira dos Santos, se viu obrigado, publicamente, a rever em baixa as previsões do crescimento económico – de 2,2% para 1,5% - de 2008, José Sócrates viu-se confrontado com o “lamentável” episódio da “fumaça” no avião fretado da TAP, aquando do voo de Lisboa para Caracas. É caso para dizer: “foi do caracas!”. Ou então: “foi só fumaça!”
Em relação ao primeiro episódio, apenas um comentário. A veia panglossiana dos membros do Governo, a sua profissão de fé no “melhor dos mundos possíveis”, acabou por revelar aquilo a que sempre cheirou: a esturro.
Quanto ao segundo episódio, somente uma observação. Mais lamentável do que a violação de uma lei aprovada recentemente pelo Governo, protagonizada por alguns membros do mesmo – em que se incluem o primeiro ministro e o ministro da economia – foram as desculpas esfarrapadas e as justificações inconsistentes de José Sócrates. Desta vez não lhe ocorreu evocar a célebre ética da responsabilidade, que certamente desconhece. Ou então era oportuno. Provavelmente, ambas as coisas.

terça-feira, maio 13, 2008

erros involuntários

Todos nós conhecemos pessoas assim. Pessoas que, mesmo depois de terem sido corrigidas, um sem número de vezes, a propósito do modo como pronunciam uma palavra, continuam ainda assim a usá-la na primitiva forma como a pronunciavam, porventura condicionadas por uma espécie de “a priori” mental, como se a ligação sináptica originária determinasse a aprendizagem do erro, no momento em que a palavra pela primeira vez se incrustou sonoramente nos arcanos do cérebro.
Pronunciar “monopausa”, “póssamos” ou “quaisqueres” parece que faz parte do ADN línguístico de algumas pessoas. Existe, creio, uma certa predisposição para o erro involuntário, a que nenhum de nós está imune.
Aconteceu-me descobrir, recentemente, que durante dois anos, errei sistemática e involuntariamente no emprego que fiz da expressão “a crise da educação”, quer na forma oral quer na forma escrita. Este erro talvez seja justificável, mas ainda assim incomoda. Na aparência, o erro não existe. Mas é real, tão real como os cigarros que consumo enquanto escrevo. No contexto em que usei a dita expressão, deveria ter usado outra : “a crise na educação”. Passo a explicar.
A crise na educação é um ensaio escrito pela filósofa Hannah Arendt – insisto em a rotular como tal, apesar da própria ter recusado o nome e preferir designar-se a si mesma como pensadora – em meados da década de cinquenta do século passado. Publicado pela primeira vez em 1957, com o título The crisis in Education, numa revista americana da especialidade (de que saiu, no mesmo ano, uma versão em alemão), o texto voltou ao prelo, inserido no livro intitulado Between Past and Future: Six Exercices in Political Thought, de 1961. Em 1972 saiu a tradução francesa deste livro com o título La Crise de la Culture, onde pontificava, entre os restantes, o ensaio La crise de l’éducation. A tradução portuguesa, levada a cabo pela filósofa portuguesa Olga Pombo, respeita o original, felizmente. Preto no branco, A crise na educação é o que aparece escrito na página 183 de Entre o Passado e o Futuro, título publicado pela “Relógio D’Água”, em Fevereiro de 2006. Ao longo de dois anos li este título dezenas de vezes, sem exagero. E a ele me referi outras dezenas, no mínimo, sempre a cometer o mesmo erro. Não sei porque carga de água, sempre me referi a este texto com a expressão “crise da educação”. Parace preciosismo e mesquinhez apontar a diferença. Mas não é. Nem pouco mais ou menos. Voltarei a assunto para explicar porquê.

sábado, maio 10, 2008

Walter Benjamin revisitado por Hannah Arendt

O filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) viveu uma existência insólita, singular e profundamente marcada pelo signo da catástrofe. Hannah Arendt (1906-1975), no seu livro Homens em tempos sombrios, deixa-nos um testemunho apaixonado e uma reflexão ímpar desse “anjo da história”, ao mesmo tempo coleccionador de escombros e náufrago da modernidade. Judeu por tradição familiar – numa época em que na Europa e sobretudo na Alemanha era um risco ser judeu – Walter Benjamin foi um escritor contemplado pela “glória póstuma”. É dele a tese: “A verdadeira imagem do passado é fugidia” - Filosofia da História – ao que acrescenta a escritora, também ela judia e igualmente emigrante para fugir às garras do nazismo: “e só o flâneur, na sua errância descuidada, consegue captar a mensagem”.
Hannah Arendt traça dele um retrato único em termos de simpatia intelectual, só possível a quem compreende o outro em razão de afinidades profundas e inconfessadas. O melhor é deixá-la falar e silenciarmo-nos:
“A glória póstuma é um dos artigos mais raros e menos procurados da Fama, embora seja menos arbitrária e muitas vezes mais sólida do que as outras formas, já que raramente consagra a mercadoria pura e simples. (...) Esta glória póstuma, nem comercial nem rentável, vem agora consagrar na Alemanha o nome e a obra de Walter Benjamin, escritor judeu alemão que ficou conhecido, mas não famoso, pela sua colaboração em revistas e secções literárias de diversos jornais ao longo de um período infeliz de dez anos, antes da tomada do poder por Hitler e da sua própria emigração. (...) Para descrever adequadamente a sua obra, e para o descrever a ele próprio como autor, no nosso quadro de referência habitual, teríamos de fazer um grande número de afirmações negativas, como por exemplo: a sua erudição era grande, mas ele não foi um erudito; o seu trabalho tinha a ver com os textos e a sua interpretação, mas não era filólogo; sentia-se extremamente atrído, não pela religião, mas pela teologia e pelo tipo de interpretação teológica segundo o qual o próprio texto é sagrado, mas não era teólogo e não manifestou especial interesse pela Bíblia; era um escritor nato, mas a sua maior ambição foi criar uma obra exclusivamente composta de citações; foi o primeiro alemão a traduzir Proust (em colaboração com Franz Hessel) e Saint-John Perse, e já antes disso traduzira os Tableaux Parisiens, de Baudelaire, mas não era tradutor; fazia recensões críticas de livros e escreveu um certo número de ensaios sobre escritores vivos e mortos, mas não era crítico literário; escreveu um livro acerca do barroco alemão e deixou inacabado um enorme estudo sobre o século XIX francês, mas não era historiador nem historiador da literatura; tentarei mostrar que ele pensava poeticamente, mas não era poeta nem filósofo. (...) A 26 de Setembro de 1940, Walter Benjamin, que se preparava para emigrar para a América, suicidou-se na fronteira franco-espanhola. Várias razões o levaram a isso. A Gestapo confiscara o seu apartamento em Paris, que continha a sua biblioteca (conseguira fazer sair da Alemanha ‘a metade mais importante’) e muitos dos seus manuscritos (...). Como iria ele viver sem a sua biblioteca, como podia ganhar a vida sem a vasta colecção de citações e excertos que se encontrava entre os seus manuscritos? Além disso, nada o atría na América, onde, conforme costumava dizer, provavelmente ninguém saberia o que fazer dele além de o passearem pelo país inteiro, exibindo-o como o ‘último europeu’. Mas a causa imediata do suícidio de Benjamin foi o azar verdadeiramente excepcional. (...) Na medida em que o passado se transmite sob a forma de tradição, possui autoridade; na medida em que a autoridade se apresenta historicamente, converte-se em tradição. Walter Benjamin sabia que a ruptura com a tradição e a perda de autoridade que se verificaram no seu tempo eram irreparáveis, e concluiu daí que era preciso descobrir novas formas de relações com o passado.” Para Walter Benjamin os seres humanos são anjos da história, no sentido literal do termo. Angelos significa mensageiro de um mundo que é texto incrito no tecido da tradição e da história. A nosso essência é a de dar testemunho do passado. Enquanto herdeiros da tradição que, na modernidade em ruínas, já se não transmite numa continuidade sem rupturas, devemos transformar-nos em “pescadores de pérolas” que se cristalizaram em “citações”.

segunda-feira, maio 05, 2008

Segundo o Diário de Notícias, na sua edição online de hoje, Portugal está na cauda da Europa no que diz respeito à qualidade democrática. No “index da democracia quotidiana”, entre 25 países, a Demos – uma ONG – coloca-nos no 21º posto. A classificação, longe de ser honrosa, não espanta ninguém, estando mesmo ao nível dos resultados obtidos nos festivais eurovisão da canção. As conclusões do estudo são deveres interessantes. Revelam que, em termos formais (eleições regulares), estamos a meio da tabela – 14º lugar. O pior é quando se têm em conta critérios de carácter mais substantivo, como a participação cívica e a “relação familiar”. Aqui é que a porca torce o rabo. O estudo revela também que a qualidade democrática, no mapa geográfico da Europa, vai decrescendo de norte para sul. É com determinismos destes que nos safamos. Apesar de tudo, mesmo na cauda, ainda pertencemos ao universo europeu, apesar de Marrocos ser mesmo ali, ao virar da esquina.
Na semana passada, o Presidente da República criticou os jovens pelo sua falta de participação e interesse nos assuntos políticos. A responsabilidade por este afastamento – ou incultura política –, segundo Cavaco e Silva, é dos partidos políticos. Tudo isto foi dito na sessão solene comemorativa do 25 de Abril. Da ala esquerda à ala direita do espectro político, inúmeras personalidades fizeram notar – e bem – que o Presidente da República não está isento de responsabilidades. No entanto, o tom geral de desresponsabilização dos jovens, no que concerne à participação cívica e política, em nada contribui para alterar a qualidade democrática dos portugueses no futuro. O mais preocupante, do meu ponto de vista, é o clima de anestesia e de conformismo que as atitudes dos estudantes de hoje manifestam. O conformismo social é um sintoma de anemia democrática e uma posta aberta para um totalitarismo disfarçado de democracia meramente formal.Há uma semana, a ministra da educação, Maria de Lurdes Rodrigues afirmou que “os chumbos são um mecanismo retrógado e antigo” e que "os sistemas de ensino moderno tentaram substituir um sistema chamado ‘chumbo’ por outros instrumentos chamados ‘mais trabalho’”. E setenciou: "Facilitismo é chumbar. Rigor e exigência é fazer com que todos aprendam”. Uma pergunta: a que ensino moderno se refere? Não é certamente aos modelos da pedagogia moderna, alicerçados numa política eduquesa, que os “gurus” da 5 de Outubro se têm esforçado por impôr à prática educativa contemporânea, nas últimas décadas. Porque se assim é, então a senhora ministra continua a falar do que não entende, a desfiar um rosário de retórica sem consistência, e a tentar conjugar o inconjugável – o modelo finlandês com uma modelo de avaliação de professores chilena e com uma realidade social portuguesa. Ninguém nega que o modelo educativo finlandês seja óptimo. Sobretudo para os finlandeses. Como não se pode negar que o modelo de avaliação de professores, ao que parece importado do Chile, é uma farsa. Uma farsa que nenhum Gil Vicente quis assinar por baixo. E que a realidade societal do Portugal contemporâneo é uma manta de retalhos, retalhada em franjas de pobreza cada vez maiores e em pontos de cruz familiares descosidos. Há que entender duas coisas do discurso da ministra da educação: primeiro, trata-se de um recado inequívoco aos professores, que no próximo ano lectivo terão de avaliar os alunos em conjugação com a sua própria avaliação; segundo, o imperativo é economicista e a lógica á a da banal aritmética de merceeiro, conforme se pode despreender das palavras que se seguem: “Se o Estado gasta por ano três mil euros com um aluno, quando ele repete vai custar seis mil no ano seguinte”. Como dizia o outro – elementar meu caro...

terça-feira, abril 22, 2008

Segundo consta, Manuela Ferreira Leite decidiu avançar como candidata à liderança de PSD e, consequentemente, a líder governativa do país, em 2009. É caso para dizer: temos homem! Não pretendo, deste modo, escarnecer a pessoa nem tão pouco apoucar os seus dotes femininos. O que pretendo defender é o seguinte: como política, o seu estilo, a sua postura e o seu perfil são inteiramente masculinos. O que dela se espera é uma política de linha dura, hirta e máscula, um pouco à semelhança, salvaguardadas as devidas diferenças e contextos, de Margaret Thatcher. Neste sentido, a concretizar-se a candidatura e a vitória nas directas do Partido Social Democrata, teremos no futuro um confronto de duas personalidades com algumas semelhanças. A ex-ministra da educação e das finanças e José Sócrates, pelo menos aos olhos da opinião pública, são ambas “personas” crispadas, teimosas e de difícil diálogo. Mas mais do que isso, teremos dois políticos que comungam de uma mesma cartilha ideológica, senão formalmente pelo menos de conteúdo.
Em está em causa, dizem os seus apoiantes, a restauração da credibilidade pública do maior partido de direita. Indiscutível. O discutível é ter a candidata competências suficientes para, por um lado, arregimentar os indispensáveis consensos do seu próprio partido, e, por outro lado, se constituir como uma alternativa viável à política do actual primeiro ministro.
Proponho um exercício de imaginação. Num cenário de condicionais ou de mundos possíveis, suponhamos que Manuela Ferreira Leite vence as legislativas de 2009. O que nos espera? Certamente, mais do mesmo, isto é, um processo de continuidade de receitas neoliberais. Contenção salarial – a repetida exigência do sacríficio em prol da sustentabilidade financeira –, emagrecimento do estado social, flexibilidade das leis laborais, privatização da saúde, desinvestimento na educação, etc. Tudo isto orquestrado sob a égide de uma comunicação social que se limita a fabricar consensos em torno do argumento da inevitabilidade e da via única. Pode ser que me engane...

quarta-feira, abril 16, 2008

a minha pátria é a língua portuguesa

O Acordo Ortográfico está em discussão. O intenso debate de que tem sido objecto revela o óbvio – a existência de um desacordo profundo e insuperável. Não se esperava outra coisa.
Em nome da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), os defensores do acordo exibem argumentos de natureza política. Sustentam que o acordo é bom para difundir no mundo uma língua falada por cerca de 200 milhões de pessoas, para lhe conferir poder na luta pela sobrevivência à escala mundial, para facilitar e potenciar os negócios entre os países que se expressam na língua de Camões, contribuíndo para o enriquecimento destes puxados a reboque por essa potência emergente que dá pelo nome de Brasil. Este argumento é análogo aos que normalmente são utilizados pelos acérrimos adeptos da globalização de cariz neoliberal. A maximização da riqueza e do bem estar materiais justifica a morte dos particularismos e das idiossincrasias obsoletas e terceiro-mundistas. A tónica está no desprezo com que olham para as especificidades locais e culturais, considerando-as como minudências arcaicas que um darwinismo exacerbado não contempla no rol dos organismos mais aptos à sobrevivência. A morte de consoantes intervocálicas é celebrada como um hino ao progresso.
Confesso que me sinto mais próximo dos críticos do acordo, que comungo de grande parte dos argumentos com que justificam a sua tese, mesmo que esses argumentos se reduzam à expressão de um egoísmo pessoal, do género “como é que eu me vou adaptar?”. De resto, tenho horror a palavras como “seção”, “ótimo” e “úmido”. Abomino-as, pronto. Mas sobretudo acho este acordo vai enfraquecer de facto a língua enquanto ser vivo. Não é a biodiversidade desejável do ponto de vista da saúde planetária? Não é a multitude de formas e de espécies que contribui para a riqueza da bioesfera? Não é a diversidade orgânica que possibilita a selecção (nunca hei-de escrever seleção) natural?
“A minha pátria é a língua portuguesa”, afirmou um dia Fernando Pessoa. Quase apostava a vida em como o poeta não pretendia fazer nenhuma afirmação de índole política ou expensionista, mas tão somente afirmar a diferença e o imenso amor por esse organismo que se chama língua lusa.

há ganhar e ganhar, perder e perder

Ontem, ao fim do dia, conheceram-se os resultados. A esmagadora maioria das escolas do país ratificou, em plenário, o “memorando de entendimento” estabelecido entre a Plataforma de Sindicatos de Professores e o Ministério da Educação. Passando por cima da nomenclatura e da hipotética distinção semântica entre entendimento e acordo – que Santana Castilho refere num artigo publicado no Público de hoje -, os sindicatos voltaram a cantar vitória. As perguntas que se impõem são? Em que se traduziu e se traduzirá esta proclamada vitória? Seguramente, em derrota não assumida. O que se ganhou com o entendimento? Ninharias. E por ninharias se canta vitória, que soa a canto do cisne. O que se perdeu? Tudo, ou quase tudo. Perdeu-se a oportunidade de capitalizar a força demonstrada pelos professores, nos idos de Março. Perdeu-se o momento oportuno para reclamar a dignidade profissional longo tempo espezinhada por uma tutela sem escrúpulos. E perdeu-se sobretudo a força necessária para lutar por uma escola mais justa e de melhor qualidade. Os dados estavam lançados. A jogada era de risco, sabia-se. Mas o adversário estava de rastos, sem energia. Cabia aos sindicatos ter a coragem de assumir o risco justificado e de – lendo correctamente a situação política – não se acovardarem, jogarem a cartada decisiva e certa, não cedendo a chantagens e a interesses mesquinhos. Afinal, pouco tinham a perder e muito a ganhar. É por estas e por outras que assistimos à agonia dos sindicatos.
Mais atentemos nas palavras de quem merece ser ouvido (Santana Castilho):

“Comecemos por uma questão semântica: entendimento e acordo são vocábulos sem difeerenças, do ponto de vista da significação, que justifiquem o esforço da Plataforma Sindical para os distinguir. Vão a um bom dicionário. No contexto que "aproximou" sindicatos e ministério, são sinónimos. Mas se essa fosse a questão, então capitular dirimia o conflito. E não estou a ser irónico. Voltem a um bom dicionário.
Posto isto, passemos ao que importa. Ministério e sindicatos acertaram, concertaram sob determinadas condições. No fim, os sindicatos cantaram vitória. Permitam-me que invoque alguns argumentos para desejar que os sindicatos não voltem a ter outra vitória como esta.
A actuação política deste Governo e desta ministra produziu diplomas (estatuto de carreira, avaliação do desempenho, gestão das escolas e estatuto do aluno) que envergonham aquisições civilizacionais mínimas da nossa sociedade. A rede propagandística que montaram procurou denegrir os professores por forma antes inimaginável. Cortar, vergar, fechar foram desígnios que os obcecaram. Reduziram salários e escravizaram com trabalho inútil. Burocratizaram criminosamente. Secaram o interior, fechando escolas aos milhares. Manipularam estatísticas. Abandalharam o ensino com a ânsia de diminuir o insucesso. Chamaram profissional a uma espécie de ensino cuja missão é reter na escola, a qualquer preço, os jovens que a abandonavam precocemente. Contrataram crianças para promover produtos inúteis. Aliciaram pais com a mistificaação da escola a tempo inteiro (que sociedade é esta em que os pais não têm tempo para estar com os filhos? Em que crianças passam 39 horas por semana encerradas numa escola e se aponta como progresso reproduzir o esquema no secundário, mas elevando a fasquia para as 50 horas?). Foram desumanos com professores nas vascas da morte e usaram e deitaram fora milhares de professores doentes (depois de garantir no Parlamento que não o fariam). Promoveram a maior iniquidade de que guardo recordação com o deplorável concurso de titulares. Enganaram miseravelmente os jovens candidatos a professores e avacalharam as instituições de ensino superior com a prova de acesso à profissão. Perseguiram. Chamaram a polícia. Incitaram e premiaram a bufaria. Desrespeitaram impunemente a lei que eles próprios produziram. Driblaram leis fundamentais do país. Com grande despudor político, passaram sem mossa por sucessivas condenações em tribunais. Fizeram da imposição norma e desrespeitaram continuadamente a negociação sindical. Reduziram a metade os gastos com a Educação, por referência ao PIB. No que era essencial, no que aumentaria a qualidade do ensino, não tocaram, a não ser, uma vez mais, para cortar e diminuir a exigência e castrar o que faz pensar e questionar.
A questão que se põe é esta: por que razão esta gente, que tanto mal tem feito ao país e à Escola, que odeia os professores, que espezinhou qualquer discussão ou concertação séria, que permaneceu irredutível na sua arrogância do quero, posso e mando, de repente, decidiu ‘aproximar-se’ dos sindicatos? A resposta é evidente: porque os 100.000 professores na rua, a 8 de Março, provocaram danos. Porque a campanha eleitoral começou a reparar os estragos para garantir mais quatro anos.
O tempo e a oportunidade política da plataforma sindical aconselhava uma firmeza que claudicou. Porque quem estava em posição de impor contemporizou. Porque de um dia para o outro se esqueceram as exigências da véspera. Porque quem demandou a lei em tribunal pactuou com uma farsa legal. Porque quem acusou de chantagem acabou a negociar com o chantagista. Porque quem teve nos braços uma unidade de professores nunca vista pensou pouco sobre os riscos de a pôr em causa.
É verdade que os sindicatos ganharam uns trocos. Mas o lance não era para trocos. Era para devolução integral: da dignidade perdida. Aqui chegados, permitam-me a achega: pior que isto é não serem capazes de superar isto. E lembrem-se de Pirro, quando agradeceu a felicitação pela vitória: ‘Mais uma vitória como esta e estou perdido’.”

quinta-feira, abril 10, 2008

o admirável mundo do Novo Capitalismo

O consumismo tornou-se, nas sociedades ocidentalizadas das últimas décadas, no “ethos” dominante dos indivíduos, famílias e instituições públicas ou privadas. Combustível do Novo Capitalismo – cujo verso da moeda é a política neoliberalista –, expressão de uma ética hedonista, a prática do consumo é hoje vívido, por grande parte das pessoas, como o único imperativo capaz de conferir sentido à existência humana. De facto, a lógica subjacente ao Novo Capitalismo, alicerçada num neoliberalismo de feição marcadamente economicista, conduz a uma ética hedonista e, por consequência, a uma “práxis” consumista. É essa lógica que impõe, como dogma inquestionado, o princípio de uma nova ontologia e de uma nova antropologia – “Consumo, logo existo”. Neste sentido, transformado em preconceito dominante e consensual, o consumismo alimenta as necessidades do capitalismo actual, o qual, à semelhança de Saturno que devora uma um os seus próprios filhos, reduz o significado da existência, subjectiva e objectiva, à dinâmica imanente de um desejo que canibaliza recursos e pessoas, inexoravelmente.
Em livro publicado recentemente – “A Cultura do Novo Capitalismo”, Relógio d’Água, 2007 – Richard Sennett esclarece as diferenças entre o capitalismo clássico ou industrial e o capitalismo global, expondo os seus reflexos na banalidade dos actos do quotidiano, nomeadamente no que respeita à mudança da ética do trabalho que se tem operado nas últimas duas décadas. Do seu ponto de vista, os valores do mérito e do talento, medidos como potenciais imediatos, vão relegando para o baú da história a imagem do homem que, mediante a “práxis” transformadora do seu trabalho, se constitui como artesão da sua realização pessoal. O cenário de todas estas transformações configuram todo um mundo de relações laborais de precariedade, o de hoje e do futuro próximo, mundo esse pautado pelas ideias de flexibilidade e de polivalência, competências a partir das quais se avalia o mérito e o talento do profissional. Por defeito, os trabalhadores são mobilizados para o contingente dos descartáveis, pairando sobre eles “o espectro da inutilidade”. Esta despromoção ontológica e antropológica faz-se acompanhar pelo estigma da necessitade (os desvalidos ou necessitados da sociedade) a que a falência ou o emagrecimento contínuo do Estado-providência já não pode valer nem acudir.
É, porém, no capítulo intitulado “Política e Consumo” que Richard Sennett melhor clarifica não apenas “a paixão autoconsumidora” que subjaz à lógica do Novo Capitalismo, como sobretudo expõe a identidade, por via do marketing, ente o poder industrial e o poder político.
Todos nós, em maior ou menor grau, nos fomos transformando, insensível e progressivamente, em cidadãos consumistas. As experiências associadas ao consumismo constituem hoje o “ethos” próprio da nossa identidade pessoal. Não tratando de experiências originárias, mas induzidas pela comercialização e pelo marketing de larga escala, elas conduzem-nos pelas novas catedrais dão pelo nome de “centros comerciais” ou “grandes superfícies”. É nestes espaços de culto moderno que, mediante rituais de consumo, fortalecemos as nossas crenças em nós próprios e no mundo configurado pela “cultura do novo capitalismo”. Este serve-nos de espelho e reflecte a imagem que desejamos ver. No entanto, esse espelho é uma gigantesca máquina de fabricar imagens ou representações de objectos e de pessoas. O conbustível que faz trabalhar a fábrica é o desejo. É sobre este que se trata de operar as verdadeiras transformações. Mas deixemos falar Richard Sennett. “O consumo de bens desempenha um papel decisivo na complementeção e na legitimação dessas experiências. Quando as pessoas se dedicam a comprar coisas, parece ‘desejável’ comercializar a paixão autoconsumidora. Esse ‘marketing’ procede de duas maneiras: uma directa, outra subtil. A primeira passa pelas marcas, a segunda pela atribuição de poder e potencialidade de objectos a comprar.”
A manipulação do desejo, operada pela dinâmica do Novo Capitalismo – recorrendo ao marketing e às técnicas de publicidade – não se faz aleatória nem espontaneamente. Não é um produto do acaso nem das forças obscuras e cegas da história. É obra de uma racionalização programada nos laboratórios das ciências sociais, sob a batuta da alta finança empresarial. Criar uma sociedade autoconsumidora pressupõe trabalhar em dois registos simultâneos. Moldar, por um lado, o carácter dos seres humanos, e, por outro lado, redimensionar os objectos/produtos, operando aqui uma cosmética redutora mas irresistível. Os consumíveis devem ser apresentados sob o signo da marca, a qual lhes garante uma visibilidade apetecível enquanto objectos singulares, únicos, ocultando a sua dimensão de utilidade. O ser humano, transformado em consumidor, deixa de se preocupar com o conhecimento da produção do objecto, do qual é ignorante, e passa a guiar-se apenas pelas associações que lhe são sugeridas pela publicidade. Trata-se de operacionalizar “ formas de comercialização (que) procuram evitar que o consumidor pense como um artesão sobre a utilidade de um produto. (...) Para o consumidor, a marca tem de impressioná-lo mais do que o próprio objecto. (...) Reduzindo a atenção ao que é o objecto, o fabricante espera vender as suas associações.”
A referida transformação dupla, por artes de ilusionista encartado, faz do consumidor um viajante e um actor em imaginação. O mundo potenciado pelo desejo consumista é o da vertigem virtual que não tem freio nem se sacia. Os objectos são desejados não pelo seu valor utilitário mas pelo seu valor de potência.
“A empresa Volkswagen tem de convencer os consumidores de que as diferenças entre um modesto Skoda e um Audi topo de gama – que pppartilham cerca de 90% do seu ADN industrial – justificam a venda do último a um preço duas vezes superior, com acréscimos, ao do primeiro. Como é que uma diferença de conteúdo de 10% pode inchar até chegar a uma diferença de preço de 100%? (...) O iPod, com capacidade para armazenar e reproduzir dez mil canções de três minutos. Mas como escolher entre dez mil canções e encontrar tempo para as descargar? Quais os princípios para seleccionar as quinhentas horas de música contidas na pequena caixa branca? Como se lembrar das dez mil canções de modo a escolher aquela que se deseja ouvir num determinado momento?”
As perguntas são pertinentes e dão que pensar. Mas estão fora do alcance das reais capacidades do seres humanos transformado em meros “consumidores de potência”. “Em suma, a paixão autoconsumidora reveste duas formas: a implicação activa na imaginação e a estimulação mediante a potência. O consumidor que entra no jogo de imaginação do ‘marketing’ arrisca-se a perder o sentido das proporções e a tomar o ‘douramento’, e não a plataforma, como valor real do objecto.”

sábado, abril 05, 2008

O embuste do IVA minguante

A anunciada descida do IVA de 21 para 20 por cento, pelo primeiro-ministro, a entrar em vigor no Verão próximo, mereceu, da parte de diversas personalidades públicas do país, opiniões díspares e contraditórias. Salvo raríssimas excepções, os comentários, meramente reactivos e intelectualmente pobres, pouco ou nada contribuem para o esclarecimento do que verdaeiramente está em causa. Uns aplaudem – os que mais próximos se encontram do PS -, enquanto outros, os oposicionistas de serviço, apupam. O costume. O presidente da república, como é seu timbre, recusa-se a comentar (até parece que Cavaco e Silva, ao ser eleito chefe de estado, fez voto de silêncio). Os “media” em geral, para não destoar, limitam-se a ser o eco amplificador da cacafonia mental e acéfala que cada vez mais nos ensurdece e estupidifica. Bendita a santa ignorância! Por este andar, acabaremos todos beatificados, mercê da fé salvífica conferida pelo credo socrático (credo, quiam absurdum).
No meio disto tudo salvam-se as declarações do empresário Belmiro de Azevedo, a única oposição séria e credível a este governo acostumado a fazer passar gato por lebre: "Um por cento (de baixa do IVA) é um acto de publicidade; não tem qualquer impacto" (...) "Os impostos mudam-se de uma maneira programada e não de um momento para o outro". E mais acrescentou, recordando ser o IVA um imposto penalizador do consumo e injusto por cegueira (na medida em que penaliza igualmente pobres e ricos). Que raio de igualdade é esta? Para bom entendedor, meia palavra basta.
Quanto à entrada em vigor da medida (visivelmente eleitoralista) para o Verão, apenas se entende como uma pequena contribuição para os portugueses comprarem uma embalagem mais de protector solar (nem para isso dará).Cá por mim, só por teimosia, resolvi começar a fazer as contas, de lápis e de papel, para mais tarde comparar. Isto se ainda puder pagar as contas no supermercado, pois com a carestia de vida crescente e a inflação galopante, o mais certo é deixar-me desses luxos e privilégios, tão característicos de uma ex-classe média moribunda. No Verão logo se verá.

quinta-feira, março 27, 2008

neste mundo global

Apetece-me exclamar: como o mundo mudou! Esta coisa da internet alterou radicalmente, na última década, o “modus vivendi” do cidadão comum. Para o bem e para o mal. A evidência disto é tão óbvia que quase não nos apercebemos do seu radicalismo. É nos pequenos pormenores do nosso quotidiano que melhor podemos constatar a dimensão da mudança. Para isso, basta um olhar comparativo, pondo em confronto situações similares separadas por um hiato temporal de dez anos.
No Verão de 1998 fui passar um período de cinco dias às Astúrias. Durante meses – dava eu os primeiros passos como utente da internet – naveguei interminavelmente pelos “sites” disponíveis (poucos), procurando informação turística e sobretudo deliciando-me com a aventura da descoberta. Esta ferramenta que hoje utilizo diariamente contituía, para mim, um oceano de promessas, mas também um mar de desconfianças. Apesar de ter encontrado “on-line” os hotéis onde nos alojaríamos, meses depois, os contactos e as marcações fi-las por telefone, não fosse o diabo tecê-las. Nos cinco dias que passei nas Astúrias, há dez anos, não tomei conhecimento de nenhum dos acontecimentos que marcaram então a vida em comum dos portugueses. Fiz apenas dois telefonemas, de cabines públicas, para familiares. Somente quando regressei, me fui inteirando das novidades que a televião e os jornais divulgavam em prol do serviço público.Na semana passada fui passar cinco dias à Andaluzia. Ao longo de semanas, recolhi, via on-line, informação abundante sobre as localidades que pretendia visitar, bem como sobre os hotéis que me poderiam interessar. Armazenei toda a informação em pastas e sub-pastas – resenhas históricas, calendários de festividades, guias turísticos, recomendações gastronómicas, etc, etc... Marquei os hotéis, paguei com cartão visa, tentei marcar e comprar os bilhetes para visitar o Allambra (não o consegui porque já estavam esgotados), tracei os itinerários, calculei as distâncias e o consumo de combustível, imprimi mapas das cidades, e o diabo a sete, tudo isso à distância de um clic, como diz o anúncio publicitário. Durante a estadia, comprei jornais espanhóis (não comprei portugueses porque não os encontrei) e consultei regularmente a net (onde consultei jornais portugueses). Ao segundo dia, em Estepona, depois de tomar o pequeno almoço no hotel, fui consultar o meu mail e deparei com uma mensagem que me enviava para um endereço do You Tube, onde supostamente podia visualizar uma video, gravado por um aluno. Neste mundo global, tive a oportunidade de ver, tendo como horizonte o Mediterrâneo, o retrato de indisciplina numa sala de aula que, dias antes, ocorrera numa escola do Porto. Nos dias seguintes, acompanhei o caso, até quase à náusea, pela net e pela RTP internacional. Mas isso é outra estória. Ou talvez não...

terça-feira, março 18, 2008

Ou muito me engano, ou a crise financeira que vivemos nos dias de hoje é um sintoma de que algo vai mal neste mundo globalizado. A doença alastra. As metástases disseminam-se e vão tomando conta, paulatinamente, dos tecidos sociais do organismo mundial. O cancro tem dá pelo nome de neoliberalismo, essa ideologia que se pregoa ao quatro ventos como a última encarnação da verdade, o “fim da história”, a terra prometida dos eleitos que sucederia ao “último homem”, o arauto do niilismo. Lembram-se da canção do Zeca Afonso que nos falava dos “Vampiros”? Não será esta a “peste” actual da nova Idade média? A Idade média dos tempos sombrios, mascarados de lantejoulas e de hedonismo, em que a salvação toma o rosto de uma promessa: a dos cinco minutos de fama nessa janela dos idiotas que é a televisão. O remédio é amargo, pois provoca a dor das desilusões desfeitas. Bebamo-lo todo inteiro de um trago, e brindemos a um futuro por inventar. Urge reinventar novos mitos, mitos humanistas que nos devolvam o ser humano pleno, aquele que encara o seu semelhante não como uma mercadoria, que o convida para a partilha do pão (um companheiro) e para a festa da repartição justa do bem público. Finda a nova Idade média, do que precisamos é de um Renascimento renovado.

quinta-feira, março 13, 2008

o neoliberalismo é uma "doxa" a combater

A propósito do problema do livre-arbítrio, os defensores da tese determinista costumam apresentar um argumento que, por ser logicamente válido, consideram a prova irrefutável da inexistência de quaisquer acções livres. O argumento tem um nome – chama-se argumento da inevitabilidade – e traduz-se mais ou menos no seguinte: se alguém age livremente, poderia ter agido de outro modo. Ora, ninguém poderia ter agido de modo diferente daquele que de facto age. Logo, ninguém é livre. Apesar de formalmente inatacável, este argumento não prova que a conclusão seja verdadeira. Prova apenas que, se aceitamos a verdade das premissas, então não podemos deixar de aceitar, inevitavelmente, que somos em absoluto determinados por factores sobre os quais não temos domínio. Basta, no entanto, não aceitarmos uma das premissas, designadamente a segunda, para nos encararmos como algo mais do que simples marionetas ou um mero joguete de forças cegas e impiedosas.
O neoliberalismo é-nos apresentado hoje como uma inevitabilidade. Pierre Bourdieu, numa palestra proferida em Atenas – O mito da “mundialização” e o estado social europeu –, em Outubro de 1996, afirma: “ É assim que, afinal de contas, o neoliberalismo se apresenta com todas as aparências de inevitabilidade. Há todo um conjunto de pressupostos que são impostos como se fossem óbvios: admite-se que o crescimento máximo, e portanto a produtividade e a competitividade, são o fim último e único das acções humanas; ou que não é possível resistir às forças económicas. Ou ainda, pressuposto que funda todos os pressupostos da economia, procede-se a um corte radical entre o económico e o social, este posto de parte e abandonado aos sociólogos, como uma espécie de subproduto. (...) Contra esta ‘doxa’, segundo penso, precisamos de nos defender submetendo-a à análise e tentando compreender os mecanismos segundo os quais é produzida e imposta.”Os pressupostos em que assenta o neoliberalismo serão irrefutáveis? Ou trata-se apenas de um “mito justificador”, de uma “ideia-força”, arquitectada em nome da globalização pelos responsáveis da alta política financeira, interessada em fazer regressar os eixos do mundo ao estádio do capitalismo selvagem? O que Bourdieu defende interessa a todos quantos não se conformam com a ideia de que a política é escrava da economia, deixando de ser a arte de construir o bem comum, para se entregar aos caprichos desumanos dos novos senhores da Terra. Mas interessa sobremaneira aos que não aceitam o argumento da inevitabilidade e sentem, até à medula, que o futuro está prenhe de possibilidades outras e mais justas. Mas então o que fazer? Antes do mais, desmontar esta pseudo-verdade, pondo a nú os seus mecanismos mistificadores. Depois, encarando-a como de facto ela é – nada mais do que uma “doxa”, uma opinião fundada em aparências. Por último, lutar, pois “não temos nós de lutar pela construção de um Estado supranacional, relativamente autónomo frente às forças económicas internacionais e às forças políticas nacionais e capaz de desenvolver a dimensão social das instituições europeias?”

segunda-feira, março 10, 2008

educação e os fins

Nas últimas duas semanas não se fala de outra coisa. Os protestos diários dos professores, que culminaram na imensa marcha da indignação (fala-se em cem mil) abriam espaços informativos nas televisões, deram azo à multiplicação de debates, ocuparam páginas e páginas de jornais e revistas, invadiram o universo da blogosfera, enfim, mobilizaram a opinião pública, incendiando os ânimos de todos quantos encaram a vida política e social como se de uma batalha campal se tratasse. Os media portugueses, sobretudo os televisivos, transformaram o assunto (demasiado sério) num folhetim de novela, em mais um enredo de herói e vilão, do género: “Professores ou Ministra, de que lado está a razão?” Deste modo, prestaram um mau serviço público.
É evidente que o problema da educação, mesmo em circunstâncias de um diferendo que opõe a razão corporativista dos profissionais do ensino à razão reformista do governo, não pode ser visto pelo prisma maniqueísta de vencedores e vencidos. Nenhuma das razões tem valor de verdade incondicional A questão é acima de tudo política, e é como tal que deve ser perspectivada. Ora, sendo a política a arte do possível bem comum a construir, o que, em democracia, pressupõe combate ideológico, não pode nenhum dos contendentes furtar-se ao diálogo e ao confronto de argumentos, sob pena de se cavar um fosso de tal modo intranponível que inviabilizaria de todo qualquer possibilidade de consenso. Isso seria uma machadada demasiado forte na democracia, o que nenhum governo eleito democraticamente poderia desejar.
As razões do governo, ainda que suportadas pelo peso da legitimidade representativa de uma maioria absoluta, do imperativo das reformas necessárias e inadiáveis da máquina do Estado, não podem ser apresentadas como dogmas e imposições definitivas. Elas pecam fundamentalmente por excesso de autoritarismo e por não se abrirem à ponderação de alternativas. Uma democracia sem ponderação de alternativas morre de asfixia. Cem mil professores a protestar nas ruas, a reclamar ser tido e achado em matérias que lhes dizem respeito, não podem ser votados ao desprezo ou sequer ao menosprezo. Não pode o governo pretender tratá-los como meros executantes passivos de uma reforma com a qual não concordam, e não deve voltar à estratégia da retórica do espezinhamento moral. Essa arma ignóbil deu agora os seus frutos: virou o feitiço contra o feiticeito e resultou numa união da classe como nunca antes se tinha visto.
Um dos erros do governo e dos responsáveis do Ministério da Educação foi não terem aproveitado as necessidades da reforma para chamarem a si os melhores professores, e para os envolverem no processo reformativo. Aproveitar a sua massa crítica teria certamente contribuído para a capitalização de uma mais-valia indispensável para o futuro a médio e a longo prazo do país.
Mas o erro maior do governo é não ter uma política educativa consistente. A sua cegueira econominista traduziu-se numa tentativa de reformar precipitadamente e por decreto. Isso não lhes permitiu parar para pensar um pouco, para reflectir sobre que portugueses se quer educar. Queremos formar tecnocratas oportunistas ou seres humanos dotados de espírito crítico e senso ético?
O melhor é dar a palavra aos sábios:
"Não basta ensinar ao homem uma especialidade. Porque ele se tornará assim uma máquina utilizável, mas não uma personalidade. Os excessos do sistema de competição e especialização prematura, sob o falacioso pretexto de eficácia, assassinam o espírito, impossibilitam qualquer vida cultural e chegam a suprimir os progressos nas ciências do futuro. É preciso, enfim, tendo em vista a realização de uma educação perfeita, desenvolver o espírito crítico na inteligência do jovem." (...) "A compreensão de outrem somente progredirá com a partilha de alegrias e sofrimentos. A actividade moral implica a educação destas impulsões profundas”. (Albert Einstein)

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

outra vez a crise da educação

Nos tempos que correm, a educação transformou-se, em Portugal, um dos assuntos que maior controvérsia tem gerado no seio da opinião pública. O Primeiro Ministro, referindo números relativos ao programa "Novas Oportunidades", reclama os louros de uma reforma que nunca ocorreu nos últimos trinta anos. E afirma, categoricamente, que é para prosseguir. A Ministra da Educação, ainda visivelmente desgastada com a contestação de que tem sido alvo – por manifesta precipitação, falta de diálogo e não reconhecimento dos erros – cerra os dentes e diz-se pronta a levar a água ao seu moinho. Os professores (em todo este processo, acusados da responsabilidade pelo estado crítico a que chegou a aprendizagem dos nossos alunos) manifestam o seu repúdio e a sua indignação e reclamam o reconhecimento de um mérito que raramente lhes é assinalado. Os pais reclamam o poder de contribuir para as decisões em matéria edicativa. A opinião pública, que inicialmente fazia coro no julgamento da irresponsabilidade dos professores, acusando-os de incumprimento, absentismo e impreparação, estão agora mais divididos na atribuição da responsabilidade. Em traços muito gerais é este o quadro que alimenta a controvérsia.
Toda a gente reconhece a importância da escola para a formação dos nossos jovens e, consequentemente, para o futuro do país. A grande maioria das pessoas acha-se capacitada para opinar, com propriedade, em assuntos educativos, desconhecendo que esta é uma matéria de dificílima resolução em que mesmo os especialistas não afinam todos pelo mesmo diapasão. Ora, se inequivocamente educar bem é decisivo, a tarefa urgente é saber em que consiste esse “bem”. E aqui é que os problemas começam e avultam. As respostas, mesmo as que antecedidas de aturada reflexão e estudo, não são consensuais nem satisfatórias.
Tomando como ponto de partida uma evidência – a de que a escola é o reflexo da sociedade – necessariamente extraímos a conclusão de que a actual crise da educação é o efeito da crise que a sociedade de hoje atravessa, potenciada pelo facto desta mesma ser objecto de uma mudança vertiginosa. Os ritmos da mudança da sociedade são muito superiores aos ritmos de mundança da escola. É esta assimetria, cada vez mais acentuada, que faz da educação o sujeito e o objecto, simultaneamente, da crise. Se a essência da educação, a partir da modernidade, se prende com a crítica – com o ensino e a aprendizagem de um espírito crítico –, com a deificação do novo e a rejeição da tradição e da autoridade, nela alicerçada, a crise constutui-se, de ora em diante, como o seu fenómeno mais nítido e persistente.
Não é por via da diabolização dos professores (a via mais fácil) que a tarefa se torna menos árida e o caminho menos desimpedido de escolhos. Não é a precipitação das reformas políticas, sobretudo quando estas visam apenas fins economicistas e hostilizam a classe dos profissionais do ensino, que as reformas se implementam. Não se reforma o sistema educativo contra os seus profissionais, despachando decretos em catadupa. A tarefa de o reformar requer bom senso e diálogo, convocando para isso os poderes políticos, os professores e a sociedade cívil, numa articulação em que devem imperar a frontalidade e a boa fé. Todos juntos não serão demais. Lidar com a crise da educação é uma tarefa que incumbe a todos os agentes educativos – que somos todos nós em todos os momentos da nossa vida.
Assente nestes pressupostos, o primeiro passo deve ser dado no sentido de compreender o que significa educar. Perguntas simples devem merecer uma reflexão profunda, que vai muito além da assimilação do jargão pedagógico (o famigerado eduquês). As perguntas simples são: Quem? Quando? Como? Porquê?
Devemos antes de mais entender que a educação preenche todos os momentos da nossa existência, começando com a família (socialização primária), continuando na escola (socialização secundária) e persistindo ao longo de toda a vida activa (socialização cívica). O primeiro passo é decisivo, pois é ele que garante os alicerces e a solidez que as etapas seguintes tratarão de consolidar. Cabe à família a responsabilidade de iniciar o processo, passando depois o testemunho para os restantes agentes educativos (ao limite, a sociedade no seu todo). Educar é como fazer uma corrida de estafetas. A passagem defeituosa do testemunho compromete toda a prova, sobretudo na sua fase inicial. Estarão os pais aptos, nos dias de hoje, para tão importante prova? Se não estão, cabe-lhes reflectir sobre os problemas que a tarefa exige e buscar o conhecimento bastante para entregar o testemunho em boas condições. Só me resta desejar-lhes uma boa prova. Deixo entretanto um texto que pode contribuir para lhes aligeirar o peso da responsabilidade e ajudar a reflectir sobre as tais questões simples enunciadas acima. Um texto límpido como água, desses que não fazem alarde duma linguagem tão críptica que ninguém verdadeiramente entende e faria corar de vergonha os mestres do eduquês, se de facto tivessem a humildade de a sentir.
“Costumamos dar ao rendimento escolar dos nossos filhos uma importância absolutamente injustificada. O que não se deve senão ao respeito pela pequena virtude do sucesso. Deveria bastar-nos que eles não ficassem demasiado atrasados em relação aos outros, que não reprovassem nos exames; mas não nos contentamos com tão pouco; queremos deles o sucesso, queremos vê-los satisfazerem o nosso orgulho. Se vão mal na esscola, ou simplesmente não tão bem como gostaríamos, levantamos no mesmo instante entre eles e nós a barreira do descontentamento permanente; adoptamos para com eles o tom de voz irritado e queixoso de quem lamenta uma ofensa. Então, os nossos filhos, enfastiados, afastam-se de nós. Ou talvez os secundemos nos seus protestos contra os professsores que não os compreenderam, declaramo-los, fazendo coro com eles, vítimas de uma injustiça. E todos os dias lhes corrigimos os deveres, sentamo-nos ao lado deles enquanto fazem os deveres, estudamos com eles as lições. A verdade é que a escola deveria ser desde o início, para um rapaz, a primeira batalha que ele tem de enfrentar por si só, sem nós; deveria ficar, desde o início, claro que se trata do seu campo de batalha próprio, onde não poderemos dar-lhe mais que um auxílio ocasional e insignifiicante. E se, nesse campo, sofre injustiças e é incompreendido, é necessário deixá-lo compreender que essa situação nada tem de estranho, porque, ao longo da vida, teremos de esperar ser constantemente incompreendidos e mal entendidos, bem como ser vítimas da injustiça: a única coisa que importa é que nós próprios não cometamos injustiças. Os sucessos ou fracassos dos nossos filhos são coisas que compartilhamos com eles, porque lhes queremos muito, mas do mesmo modo e na mesma medida em que eles compartilharão, à medida que vão crescendo, as nossas alegrias ou preocupações. É falso que tenham para connosco o dever de ser aplicados na escola e de aí darem o melhor do seu talento. O seu dever para connosco, uma vez que lhes proporcionamos a possibilidade de estudarem, é simplesmente fazerem o seu caminho. Se não querem dedicar à escola o melhor do seu talento, mas usá-lo noutra coisa que os apaixone, seja a sua colecção de coleópteros ou o estudo da língua turca, esse assunto pertence-lhes e não temos qualquer direito a acusá-los por isso, nem a manifesstar-lhes que nos sentimos ofendidos no nosso orgulho ou frustrados na nossa satisfação. Se o melhor do seu talento, aparentemente, não quiserem, de momento, aplicá-lo em nada, e se passam os dias sentados na carteira a morder o lápis, também não é caso que nos confira o direito de os repreendermos demasiado: quem sabe se aquilo que nos parece ociosidade não serão, na realidade, fantasias e reflexões que amanhã darão fruto? Se o melhor da sua energia e do seu talento estão aparentemente a ser desperdiçados, enquanto eles se afundam numa poltrona a ler romances estúpidos ou se agitam freneticamente lá fora a jogar futebol, também nesse caso não poderemos saber se se trata de um desperdício de energia e de talento, ou se também isso, amanhã, sob uma forma que ainda ignoramos, não acabará por dar fruto. Porque as possibilidades do espírito são infinitas. Mas não devemos deixar-nos apanhar, nós, os pais, pelo pânico do fracasso. As nossas cóleras devem ser como rajadas de vento ou o sopro do temporal: violentas, mas rapidamente esquecidas; nada que possa obscurecer a natureza das nossas relações com os nossos filhos, toldando a sua limpidez ou a sua paz. Estamos presentes para consolar os nossos filhos, se um insucesso os entristece; estamos presentes para os consolar, se um insucesso os mortifica. Estamos também presentes para os chamar à terra, se um triunfo os enche de soberba. Estamos presentes para reduzir a escola aos seus limites humildes e estreitos; nada que possa hipotecar o futuro; uma simples oferta de instrumentos, de entre os quais se torna possível escolher um que amanhã será usado.
A única coisa que devemos ter em conta na educação é que nos nosssos filhos o amor pela vida nunca diminua. Trata-se de um amor que pode revestir-se de muitas formas, e as mais das vezes a um rapaz desenvolvido, solitário e esquivo, não falta amor à vida, nem está oprimido pelo pânico de viver, mas num simples estado de espera, ocupado a preparar-se a si próprio para a sua própria vocação. E que outra coisa é a vocação de um ser humano, senão a mais alta expressão do seu amor pela vida?”
Natalia Ginzburg in FERNANDO SAVATER, O Valor de Educar

domingo, fevereiro 17, 2008

é a festa da democracia

Apesar da total falta de sentido de humor, o nosso primeiro-ministro chega por vezes a ter piada. Amarela, bem entendido. Sobretudo quando – e a propósito de manifestações de protesto de que ele é o alvo visado – se refere à democracia. Afirmou ele ontem à tarde, quando foi surpreendido à porta da sede do PS, no Largo do Rato, por uma manifestação espontânea constuituída por dezenas de professores: “É inqualificável que tentem condicionar a actividade um partido. Nunca tinha visto isto em tantos anos de democracia. Isto não tem nada a ver com democracia, tem a ver com falta de educação. Mas o Partido Socialista não se deixa condicionar". É sabido que José Sócrates se irrita com muita facilidade perante manifestações desta natureza. Mas não tem razão. A democracia é justamente o sistema político que faz do pluralismo das opiniões o seu “élan vital”; sem este, a democracia perde sentido, na medida em que contraria o seu espírito e perverte a sua essência. Numa democracia parlamentar, uma das poucas formas que o cidadão comum tem de participar activamente nas decisões políticas é manifestar-se a favor ou contra elas – para além do voto. Ora, sugerir que as manifestações de protesto nada têm de democrático, que constituem acções de inqualificável falta de educação ou civismo, é um absurdo político. Das duas uma: ou o chefe do Governo nunca soube o que é o pluralismo democrático (que não se reduz ao espaço parlamentar, felizmente); ou então, esqueceu-se – porventura no momento em que o seu absolutismo político se viu forçado a conviver, devido ao solipsismo da sua postura, com a contestação social. Afinal, como o próprio afirmou não há muito tempo: é a festa da democracia. E ainda agora a procissão vai no adro...

terça-feira, fevereiro 05, 2008

Preso por ter cão e preso por não ter

Não há volta a dar-lhe. O caso dos projectos de arquitectura assinados pelo engenheiro técnico José Sócrates, alegadamente executados por si mesmo, é um daqueles casos em que se sai sempre a perder. Bem pode o primeiro-ministro bradar ao céus que se trata de mais uma tentativa de ataque pessoal ou de assassinato político. Vem dar ao mesmo. Como dizia o poeta-cantor Jim Morrison, vocalista dos “Doors” – “daqui ninguém sai vivo”. Das duas uma: ou cometeu uma ilegalidade (jurídica ou moral), assinando projectos executados por técnicos da Câmara da Guarda, os quais posteriormente se encarregavam de vistoriar e aprovar; ou foi o autor dos projectos que, concretizados em obra, deram em aberrações estéticas, conforme ficou testemunhado em inúmeros "posts" e páginas de jornal.
Em ambos os casos, nada há nisso que se possa orgulhar. Pelo contrário, ética ou esteticamente, só merece repúdio ou condenação. Nem mais, nem menos. Para quem evoca a ética da responsabilidade, está na hora de assumir as consequências dos seus actos. Se a sua moral não chega a tanto, assuma a vergonha das obras que concebeu.

domingo, fevereiro 03, 2008

humano, demasiado humano

A um ano e meio das eleições legislativas, o primeiro-ministro resolveu que era tempo de se preparar para o embate. O que está em jogo não é uma simples uma vitória – asseguradíssima – mas tão somente a maioria absoluta. Esta é a única que veste na perfeição o seu perfil de governante: autoritário, arrogante e avesso ao diálogo. À distância de dúzia e meia de meses do acontecimento, as sondagens publicadas no “Expresso”, de 2 de Fevereiro, colocam o PS numa situação privilegiada (42,5%), mas a perder terreno “pelo terceiro mês consecutivo”, o que é um sinal inequívoco do desgaste que as políticas impopulares e autistas têm provocado na imagem do Governo.
Terminado o seu ciclo internacional, que culminou com a assinatura do Tratado Europeu e com a recusa do referendo ao mesmo, José Sócrates não teve outra alternativa que não fosse a de se confrontar com a contestação crescente que, a nível nacional, a sua política e a de alguns dos seus ministros foram alvo.
A primeira medida eleitoralista foi remodelar o executivo, o que se traduziu num duplo sacrifício. No altar socrático foram imolados os ministros da saúde e da cultura. Nenhum deles deve ter ficado satisfeito, sobretudo porque se tinham convencido que o primeiro-ministro era feito da mesma massa que os heróis da antiguidade clássica, quase divinos, imune às vozes comuns dos mortais. Enganaram-se. Devem agora sentir-se defraudados com o homem que endeusaram. Só no “timing”, a remodelação é obra sua. No resto, as críticas oriundas da ala esquerda do seu partido – empunhando a bandeira do Serviço Nacional de Saúde – obrigaram-no a tomar as medidas que nos devolvem a imagem de um homem sujeito a pressões, permeável aos jogos de interesses intrapartidários. Esta remodelação (que não se sabe se ficará por aqui) é o reverso da medalha que, no seu cunho autêntico, revela ser uma estratégia política que visa as eleições legislativas de 2009. Com uma oposição inexistente, sobretudo à direita - o PSD, desde a saída de Marques Mendes, morre de auto-asfixia -, o adversário real situa-se na margem esquerda do seu próprio partido, liderada por Manuel Alegre. O espectro de um novo partido político, resultante do Movimento de Intervenção e Cidadania, o qual se formou aquando da candidatura de Manuel Alegre às últimas Presidenciais, não terá deixado a Sócrates margem de manobra, acabando por marcar a sua agenda política. Esta agenda orienta-se agora claramente por preocupações de natureza social.
A segunda medida eleitoralista traduz-se numa tentativa de apaziguar o descontentamento dos funcionários públicos. O ministro das finanças, baluarte da política socrática, revelou ontem estar o Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado – vulgo PRACE – “praticamente concluído”, conclusão que insidirá, porventura de forma residual, sobre a administração regional e local. É caso para dizer: a montanha pariu um rato. A tão apregoada reforma do Estado está suspensa, pelo menos até finais de 2009. Este Governo, em termos reformistas, entrou em licença sabática, tirada para montar e afinar a máquina de propaganda eleitoral. A esquerda moderna de que Sócrates se fez arauto – cujo lema era reformar e modernizar para construir o Portugal do futuro – suspendeu as suas acções vanguardistas. Valores mais altos de levantam agora. Uma vez mais, os fins justificam os meios. E a finalidade tem um nome: maioria absoluta em 2009. O único revés, de momento, é o episódio das assinaturas nos projectos de arquitectura do deputado José Sócrates, nos longínquos anos de finais de oitenta do século passado. É mais uma beliscadura ética no carácter de um homem que se arrogou de quase divino, mas que afinal se revelou “humano, demasiado humano”.

quinta-feira, janeiro 31, 2008

apenas duas notícias

No dia 25 do presente mês que hoje termina, vieram a público duas notícias que, de curiosas que são, ocuparam pontualmente algum do meu tempo de reflexão. A oportunidade de escrever sobre elas passou. No entanto, apesar de intempestivos, não posso deixar de registar os seguintes apontamentos.

Primeira notícia:
Uma sondagem, encomendada para o Fórum Económico Mundial, revela serem os professores de entre um molho de outros profissionais, os que merecem a maior confiança e a quem mais prontamente entregariam o poder. As perguntas eram, respectivamente: “em qual deste tipo de pessoas confia?” e “a qual dos seguintes tipos de pessoas daria mais poder no seu país?”
Vale a pena citar a fonte quase integralmente (Agência Lusa):
“Os professores merecem a confiança de 42 por cento dos portugueses, muito acima dos 24 por cento que confiam nos líderes militares e da polícia, dos 20 por cento que dão a sua confiança aos jornalistas e dos 18 por cento que acreditam nos líderes religiosos. Os políticos são os que menos têm a confiança dos portugueses, com apenas sete por cento a dizerem que confiam nesta classe. Relativamente à questão de quais as profissões a que dariam mais poder no seu país, os portugueses privilegiaram os professores (32 por cento), os intelectuais (28 por cento) e os dirigentes militares e policiais (21 por cento), surgindo em último lugar, com seis por cento, as estrelas desportivas ou de cinema. A confiança dos portugueses por profissões não se afasta dos resultados médios para a Europa Ocidental, onde 44 por cento dos inquiridos confiam nos professores, seguindo-se (tal como em Portugal) os líderes militares e policiais, com 26 por cento. Os advogados, que em Portugal apenas têm a confiança de 14 por cento dos inquiridos, vêm em terceiro lugar na Europa Ocidental, com um quarto dos europeus a darem-lhes a sua confiança, seguindo-se os jornalistas, que são confiáveis para 20 por cento. A confiança dos portugueses por profissões não se afasta dos resultados médios para a Europa Ocidental, onde 44 por cento dos inquiridos confiam nos professores, seguindo-se (tal como em Portugal) os líderes militares e policiais, com 26 por cento. Uma vez mais, os políticos surgem na cauda, com apenas oito por cento dos 61.600 inquiridos pela Gallup, em 60 países, a darem-lhes a sua confiança. Os professores surgem na maioria das regiões como a profissão em que as pessoas mais confiam. Os docentes apenas perdem o primeiro lugar para os líderes religiosos em África, que têm a confiança de 70 por cento dos inquiridos, bastante acima dos 48 por cento dos professores, e para os responsáveis militares e policiais no Médio Oriente, que reúnem a preferência de 40 por cento, à frente dos líderes religiosos (19 por cento) e professores (18 por cento). A Europa Ocidental daria mais poder preferencialmente aos intelectuais (30 por cento) e professores (29 por cento), enquanto a nível mundial voltam a predominar os professores (28 por cento) e os intelectuais (25 por cento), seguidos dos líderes religiosos (21 por cento). A Gallup perguntou “em qual deste tipo de pessoas confia?”, indicando como respostas possíveis políticos, líderes religiosos, líderes militares e policiais, dirigentes empresariais, jornalistas, advogados, professores e sindicalistas ou “nenhum destes”, tendo esta última resposta sido escolhida por 28 por cento dos portugueses, 26 por cento dos europeus ocidentais e 30 por cento no mundo. A Gallup questionou “a qual dos seguintes tipos de pessoas daria mais poder no seu país?”, dando como opções políticos, líderes religiosos, líderes militares e policiais, dirigentes empresariais, estrelas desportivas, músicos, estrelas de cinema, intelectuais, advogados, professores, sindicalistas ou nenhum destes. A opção “nenhum destes” foi escolhida por 15 por cento em Portugal, 19 por cento na Europa Ocidental e 23 por cento a nível internacional.”
Salvo as compreensíveis excepções (África e Médio Oriente), os professores lideram e os políticos surgem na cauda das preferências. O que tem isto de significativo? Em primeiro lugar, talvez seja de considerar que estas duas profissões pressupõem uma relação com a verdade antagónica. Se os professores estabelecem com a verdade uma relação de intimidade quotidiana, tendo como principal escopo da sua actividade preservá-la e transmiti-la, os políticos são-lhe avessos por natureza, preocupando-se fundamentalmente com o efeito retórico das suas opiniões e com o poder manipulador de uma mentira oportuna e cosmeticamente adornada. Em segundo lugar, convém salientar que os professores mantêm um contacto próximo com uma camada da população (as crianças e os jovens) mais desprotegida e mais sensível à frontalidade e à sinceridade, ao passo que os políticos privilegiam um certo distanciamento com as populações, que nem a mediatização consegue disfarçar. Em terceiro lugar, esta mesma mediação dá mais visibilidade aos aspectos negativos do carácter dos políticos (corrupção, incoerências argumentativas e inconsistências práticas, etc.), mantendo os professores num limbo de invisibilidade mediática, que muito contribui para os salvaguardar do seu efeito corrosivo, em termos de opinião pública. Em quarto lugar, por norma, os professores raramente abraçam a vocação política, e quando o fazem é como se vendessem a sua alma – talvez uma leitura atenta de Max Weber, nomeadamente dos seus textos “A Política como Vocação” e “A Ciência como Vocação” nos revelasse as razões para o facto referido.

Segunda notícia:
Numa reunião entre os deputados do PS - que fazem parte da Comissão Parlamentar de Educação - e a equipa do Ministério liderado por Maria de Lurdes Rodrigues, teve como resultado algumas frases que revelam bem a consideração e o respeito que esta tem tido pelos professores, ao longo destes dois últimos anos. Em questão estava a análise de dois decretos-leis – o da avaliação dos docentes e o da gestão das escolas – que têm merecido o repúdio dos profissionais do ensino e a desconfiança, quanto à sua legalidade, das pessoas mais imunes à intoxicação da opinião pública que o ministério tem levado a cabo, na sua tentativa de denegrir a imagem dos professores. No calor do debate, os responsáveis do ministério terão acusado os deputados de pretenderem dar voz aos “professorzecos”. Único comentário – inqualificável.
Num mesmo dia, a confiança dos professores, manifestada em termos mundiais e corroborada pela voz dos portugueses, viu-se manchada e atirada à lama pelos membros da equipa da ministra Maria de Lurdes Rodrigues. É caso para perguntar: o que os faz correr? Não terão vergonha na cara?

terça-feira, janeiro 22, 2008

do tabaco e da globalização

Ontem à noite assisti a mais um Prós e Contras. Desta vez o tema era a polémica lei do tabaco. Uma vez mais os argumentos esgrimidos, de um e do outro lado, foram pobres, devido sobretudo ao formato do programa e à competência argumentativa dos intervenientes. Apesar disso, algumas lições há para retirar do que foi dito.
Primeiro: em confronto estão duas visões do mundo e do ser humano antagónicas – uma que pretende ser o arauto de um mundo novo a construir, um mundo que se diz modernista, limpo e asséptico, ancorado numa visão antropológica que faz do elixir da eterna juventude e do mito do corpo saudável e impoluto os seus dogmas científicos; a outra que se reclama de um humanismo existencialista, fundada no primado do espírito sobre a matéria e, consequentemente, da liberdade sobre o determinismo, encara o ser humano como um ser para a morte, no horizonte da qual se vai apropriando da sua autenticidade.
Segundo: no plano filosófico-político, encontram-se duas perspectivas diametralmente opostas, ainda que ambas reclamem o universo ideológico da democracia – uma que valoriza o princípio da subordinação do bem privado (fumar) ao bem comum e público (a saúde pública); a outra que faz da liberdade individual e da propriedade privada os princípios sagrados da existência comunitária.
Terceiro: no plano da concretização política do exercício democrático-parlamentar, igualmente dois são os pontos de vista em discussão – uma que entende pertencer à maioria representativa a totalidade dos direitos (os dos não fumadores), legislando em função dos seus interesses, arvorados em interesses universais; a outra, minoritária em termos de representatividade, reclama o direito de ver consignados na lei os seus interesses particulares.
Quarto e último que já se faz tarde: a globalização é cada vez mais um fenómeno incontornável e perigoso. Os hábitos e costumes – o “ethos” ou o “modus vivendi” – do americano médio ou do ocidental medíocre vão-se transformando paulatinamente em lei planetária. Um dia destes não nos resta outra alternativa senão imigrar para outro planeta. No final do programa, contei as beatas que se acumularam no meu cinzeiro. Oito. Irra! E só assisti a uma hora e meia do debate! Que dizer se tivesse assitido até ao fim?
Moral da história: ver este tipo de programas provoca um mal à existência, não tanto pela quantidade de cigarros fumados, mas por não ter desfrutado do prazer de os fumar em boa companhia. Ou simplesmente na companhia de um bom livro.

sábado, janeiro 12, 2008

ética da irresponsabilidade

José Sócrates, em justificação do não cumprimento de uma promessa eleitoral sua – a do referendo ao Tratado Europeu – presenteia-nos a todos nós portugueses com duas razões que, espera ele, nos convençam em absoluto.
Em primeiro lugar, diz-nos que não prometeu um referendo ao Tratado de Lisboa mas sim um referendo ao Tratado Constitucional Europeu, sendo aquele substancialmente diferente deste. Isso à revelia do que afirmam quase todos os entendidos na matéria, os quais não se cansam de repetir que são ambos idênticos em 90 %, excluindo as referências ao hino, as adendas e anexos que o formalizam e a linguagem quase ininteligível em que está redigido. É caso para perguntar se a diferença substancial caberá inteira nos restantes 10%. O líder da bancada parlamentar do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã, a propósito lembrou: «Tanto é assim que, em Julho deste ano, um jornalista lhe perguntou se o Tratado Constitucional era igual ao Tratado de Lisboa, e a sua opinião era que era igual. E agora vem dizer que não podemos votar porque é diferente?»
Em segundo lugar, para compor o ramalhete da asneira, o Primeiro Ministro evoca a “ética da responsabilidade”. É caso uma vez mais para perguntar: Ética? Responsabilidade? Que ética? Em que princípios se fundamenta? Responsabilidade para com quem? Para com os portugueses? Não se trata antes de uma ética da irresponsabilidade?
É bom lembrar que a palavra responsabilidade tem como núcleo semântico a ideia da necessidade que o agente ético tem de responder pelos actos que faz e decisões que toma. A resposta está dada. A avaliação e o julgamento, em democracia, faz-se à boca das urnas. Caberá ao povo, aquando for chamado a exercer o seu direito e a sua responsabilidade política, julgar da justeza dessa tal ética da responsabilidade, camuflada pela cosmética da retórica e pela roupagem demagógica que a veste.