O consumismo tornou-se, nas sociedades ocidentalizadas das últimas décadas, no “ethos” dominante dos indivíduos, famílias e instituições públicas ou privadas. Combustível do Novo Capitalismo – cujo verso da moeda é a política neoliberalista –, expressão de uma ética hedonista, a prática do consumo é hoje vívido, por grande parte das pessoas, como o único imperativo capaz de conferir sentido à existência humana. De facto, a lógica subjacente ao Novo Capitalismo, alicerçada num neoliberalismo de feição marcadamente economicista, conduz a uma ética hedonista e, por consequência, a uma “práxis” consumista. É essa lógica que impõe, como dogma inquestionado, o princípio de uma nova ontologia e de uma nova antropologia – “Consumo, logo existo”. Neste sentido, transformado em preconceito dominante e consensual, o consumismo alimenta as necessidades do capitalismo actual, o qual, à semelhança de Saturno que devora uma um os seus próprios filhos, reduz o significado da existência, subjectiva e objectiva, à dinâmica imanente de um desejo que canibaliza recursos e pessoas, inexoravelmente.
Em livro publicado recentemente – “A Cultura do Novo Capitalismo”, Relógio d’Água, 2007 – Richard Sennett esclarece as diferenças entre o capitalismo clássico ou industrial e o capitalismo global, expondo os seus reflexos na banalidade dos actos do quotidiano, nomeadamente no que respeita à mudança da ética do trabalho que se tem operado nas últimas duas décadas. Do seu ponto de vista, os valores do mérito e do talento, medidos como potenciais imediatos, vão relegando para o baú da história a imagem do homem que, mediante a “práxis” transformadora do seu trabalho, se constitui como artesão da sua realização pessoal. O cenário de todas estas transformações configuram todo um mundo de relações laborais de precariedade, o de hoje e do futuro próximo, mundo esse pautado pelas ideias de flexibilidade e de polivalência, competências a partir das quais se avalia o mérito e o talento do profissional. Por defeito, os trabalhadores são mobilizados para o contingente dos descartáveis, pairando sobre eles “o espectro da inutilidade”. Esta despromoção ontológica e antropológica faz-se acompanhar pelo estigma da necessitade (os desvalidos ou necessitados da sociedade) a que a falência ou o emagrecimento contínuo do Estado-providência já não pode valer nem acudir.
É, porém, no capítulo intitulado “Política e Consumo” que Richard Sennett melhor clarifica não apenas “a paixão autoconsumidora” que subjaz à lógica do Novo Capitalismo, como sobretudo expõe a identidade, por via do marketing, ente o poder industrial e o poder político.
Todos nós, em maior ou menor grau, nos fomos transformando, insensível e progressivamente, em cidadãos consumistas. As experiências associadas ao consumismo constituem hoje o “ethos” próprio da nossa identidade pessoal. Não tratando de experiências originárias, mas induzidas pela comercialização e pelo marketing de larga escala, elas conduzem-nos pelas novas catedrais dão pelo nome de “centros comerciais” ou “grandes superfícies”. É nestes espaços de culto moderno que, mediante rituais de consumo, fortalecemos as nossas crenças em nós próprios e no mundo configurado pela “cultura do novo capitalismo”. Este serve-nos de espelho e reflecte a imagem que desejamos ver. No entanto, esse espelho é uma gigantesca máquina de fabricar imagens ou representações de objectos e de pessoas. O conbustível que faz trabalhar a fábrica é o desejo. É sobre este que se trata de operar as verdadeiras transformações. Mas deixemos falar Richard Sennett. “O consumo de bens desempenha um papel decisivo na complementeção e na legitimação dessas experiências. Quando as pessoas se dedicam a comprar coisas, parece ‘desejável’ comercializar a paixão autoconsumidora. Esse ‘marketing’ procede de duas maneiras: uma directa, outra subtil. A primeira passa pelas marcas, a segunda pela atribuição de poder e potencialidade de objectos a comprar.”
A manipulação do desejo, operada pela dinâmica do Novo Capitalismo – recorrendo ao marketing e às técnicas de publicidade – não se faz aleatória nem espontaneamente. Não é um produto do acaso nem das forças obscuras e cegas da história. É obra de uma racionalização programada nos laboratórios das ciências sociais, sob a batuta da alta finança empresarial. Criar uma sociedade autoconsumidora pressupõe trabalhar em dois registos simultâneos. Moldar, por um lado, o carácter dos seres humanos, e, por outro lado, redimensionar os objectos/produtos, operando aqui uma cosmética redutora mas irresistível. Os consumíveis devem ser apresentados sob o signo da marca, a qual lhes garante uma visibilidade apetecível enquanto objectos singulares, únicos, ocultando a sua dimensão de utilidade. O ser humano, transformado em consumidor, deixa de se preocupar com o conhecimento da produção do objecto, do qual é ignorante, e passa a guiar-se apenas pelas associações que lhe são sugeridas pela publicidade. Trata-se de operacionalizar “ formas de comercialização (que) procuram evitar que o consumidor pense como um artesão sobre a utilidade de um produto. (...) Para o consumidor, a marca tem de impressioná-lo mais do que o próprio objecto. (...) Reduzindo a atenção ao que é o objecto, o fabricante espera vender as suas associações.”
A referida transformação dupla, por artes de ilusionista encartado, faz do consumidor um viajante e um actor em imaginação. O mundo potenciado pelo desejo consumista é o da vertigem virtual que não tem freio nem se sacia. Os objectos são desejados não pelo seu valor utilitário mas pelo seu valor de potência.
“A empresa Volkswagen tem de convencer os consumidores de que as diferenças entre um modesto Skoda e um Audi topo de gama – que pppartilham cerca de 90% do seu ADN industrial – justificam a venda do último a um preço duas vezes superior, com acréscimos, ao do primeiro. Como é que uma diferença de conteúdo de 10% pode inchar até chegar a uma diferença de preço de 100%? (...) O iPod, com capacidade para armazenar e reproduzir dez mil canções de três minutos. Mas como escolher entre dez mil canções e encontrar tempo para as descargar? Quais os princípios para seleccionar as quinhentas horas de música contidas na pequena caixa branca? Como se lembrar das dez mil canções de modo a escolher aquela que se deseja ouvir num determinado momento?”
As perguntas são pertinentes e dão que pensar. Mas estão fora do alcance das reais capacidades do seres humanos transformado em meros “consumidores de potência”. “Em suma, a paixão autoconsumidora reveste duas formas: a implicação activa na imaginação e a estimulação mediante a potência. O consumidor que entra no jogo de imaginação do ‘marketing’ arrisca-se a perder o sentido das proporções e a tomar o ‘douramento’, e não a plataforma, como valor real do objecto.”
Em livro publicado recentemente – “A Cultura do Novo Capitalismo”, Relógio d’Água, 2007 – Richard Sennett esclarece as diferenças entre o capitalismo clássico ou industrial e o capitalismo global, expondo os seus reflexos na banalidade dos actos do quotidiano, nomeadamente no que respeita à mudança da ética do trabalho que se tem operado nas últimas duas décadas. Do seu ponto de vista, os valores do mérito e do talento, medidos como potenciais imediatos, vão relegando para o baú da história a imagem do homem que, mediante a “práxis” transformadora do seu trabalho, se constitui como artesão da sua realização pessoal. O cenário de todas estas transformações configuram todo um mundo de relações laborais de precariedade, o de hoje e do futuro próximo, mundo esse pautado pelas ideias de flexibilidade e de polivalência, competências a partir das quais se avalia o mérito e o talento do profissional. Por defeito, os trabalhadores são mobilizados para o contingente dos descartáveis, pairando sobre eles “o espectro da inutilidade”. Esta despromoção ontológica e antropológica faz-se acompanhar pelo estigma da necessitade (os desvalidos ou necessitados da sociedade) a que a falência ou o emagrecimento contínuo do Estado-providência já não pode valer nem acudir.
É, porém, no capítulo intitulado “Política e Consumo” que Richard Sennett melhor clarifica não apenas “a paixão autoconsumidora” que subjaz à lógica do Novo Capitalismo, como sobretudo expõe a identidade, por via do marketing, ente o poder industrial e o poder político.
Todos nós, em maior ou menor grau, nos fomos transformando, insensível e progressivamente, em cidadãos consumistas. As experiências associadas ao consumismo constituem hoje o “ethos” próprio da nossa identidade pessoal. Não tratando de experiências originárias, mas induzidas pela comercialização e pelo marketing de larga escala, elas conduzem-nos pelas novas catedrais dão pelo nome de “centros comerciais” ou “grandes superfícies”. É nestes espaços de culto moderno que, mediante rituais de consumo, fortalecemos as nossas crenças em nós próprios e no mundo configurado pela “cultura do novo capitalismo”. Este serve-nos de espelho e reflecte a imagem que desejamos ver. No entanto, esse espelho é uma gigantesca máquina de fabricar imagens ou representações de objectos e de pessoas. O conbustível que faz trabalhar a fábrica é o desejo. É sobre este que se trata de operar as verdadeiras transformações. Mas deixemos falar Richard Sennett. “O consumo de bens desempenha um papel decisivo na complementeção e na legitimação dessas experiências. Quando as pessoas se dedicam a comprar coisas, parece ‘desejável’ comercializar a paixão autoconsumidora. Esse ‘marketing’ procede de duas maneiras: uma directa, outra subtil. A primeira passa pelas marcas, a segunda pela atribuição de poder e potencialidade de objectos a comprar.”
A manipulação do desejo, operada pela dinâmica do Novo Capitalismo – recorrendo ao marketing e às técnicas de publicidade – não se faz aleatória nem espontaneamente. Não é um produto do acaso nem das forças obscuras e cegas da história. É obra de uma racionalização programada nos laboratórios das ciências sociais, sob a batuta da alta finança empresarial. Criar uma sociedade autoconsumidora pressupõe trabalhar em dois registos simultâneos. Moldar, por um lado, o carácter dos seres humanos, e, por outro lado, redimensionar os objectos/produtos, operando aqui uma cosmética redutora mas irresistível. Os consumíveis devem ser apresentados sob o signo da marca, a qual lhes garante uma visibilidade apetecível enquanto objectos singulares, únicos, ocultando a sua dimensão de utilidade. O ser humano, transformado em consumidor, deixa de se preocupar com o conhecimento da produção do objecto, do qual é ignorante, e passa a guiar-se apenas pelas associações que lhe são sugeridas pela publicidade. Trata-se de operacionalizar “ formas de comercialização (que) procuram evitar que o consumidor pense como um artesão sobre a utilidade de um produto. (...) Para o consumidor, a marca tem de impressioná-lo mais do que o próprio objecto. (...) Reduzindo a atenção ao que é o objecto, o fabricante espera vender as suas associações.”
A referida transformação dupla, por artes de ilusionista encartado, faz do consumidor um viajante e um actor em imaginação. O mundo potenciado pelo desejo consumista é o da vertigem virtual que não tem freio nem se sacia. Os objectos são desejados não pelo seu valor utilitário mas pelo seu valor de potência.
“A empresa Volkswagen tem de convencer os consumidores de que as diferenças entre um modesto Skoda e um Audi topo de gama – que pppartilham cerca de 90% do seu ADN industrial – justificam a venda do último a um preço duas vezes superior, com acréscimos, ao do primeiro. Como é que uma diferença de conteúdo de 10% pode inchar até chegar a uma diferença de preço de 100%? (...) O iPod, com capacidade para armazenar e reproduzir dez mil canções de três minutos. Mas como escolher entre dez mil canções e encontrar tempo para as descargar? Quais os princípios para seleccionar as quinhentas horas de música contidas na pequena caixa branca? Como se lembrar das dez mil canções de modo a escolher aquela que se deseja ouvir num determinado momento?”
As perguntas são pertinentes e dão que pensar. Mas estão fora do alcance das reais capacidades do seres humanos transformado em meros “consumidores de potência”. “Em suma, a paixão autoconsumidora reveste duas formas: a implicação activa na imaginação e a estimulação mediante a potência. O consumidor que entra no jogo de imaginação do ‘marketing’ arrisca-se a perder o sentido das proporções e a tomar o ‘douramento’, e não a plataforma, como valor real do objecto.”
Um comentário:
Admirável é o Novo Capitalismo, ao nos convencer ou seduzir a consumir o inútil, o supérfulo ou pior ainda a consumir um conceito, uma ideia desgarrada do produto.Admirável o post e a denúncia também, obviamente
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