sábado, maio 10, 2008

Walter Benjamin revisitado por Hannah Arendt

O filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) viveu uma existência insólita, singular e profundamente marcada pelo signo da catástrofe. Hannah Arendt (1906-1975), no seu livro Homens em tempos sombrios, deixa-nos um testemunho apaixonado e uma reflexão ímpar desse “anjo da história”, ao mesmo tempo coleccionador de escombros e náufrago da modernidade. Judeu por tradição familiar – numa época em que na Europa e sobretudo na Alemanha era um risco ser judeu – Walter Benjamin foi um escritor contemplado pela “glória póstuma”. É dele a tese: “A verdadeira imagem do passado é fugidia” - Filosofia da História – ao que acrescenta a escritora, também ela judia e igualmente emigrante para fugir às garras do nazismo: “e só o flâneur, na sua errância descuidada, consegue captar a mensagem”.
Hannah Arendt traça dele um retrato único em termos de simpatia intelectual, só possível a quem compreende o outro em razão de afinidades profundas e inconfessadas. O melhor é deixá-la falar e silenciarmo-nos:
“A glória póstuma é um dos artigos mais raros e menos procurados da Fama, embora seja menos arbitrária e muitas vezes mais sólida do que as outras formas, já que raramente consagra a mercadoria pura e simples. (...) Esta glória póstuma, nem comercial nem rentável, vem agora consagrar na Alemanha o nome e a obra de Walter Benjamin, escritor judeu alemão que ficou conhecido, mas não famoso, pela sua colaboração em revistas e secções literárias de diversos jornais ao longo de um período infeliz de dez anos, antes da tomada do poder por Hitler e da sua própria emigração. (...) Para descrever adequadamente a sua obra, e para o descrever a ele próprio como autor, no nosso quadro de referência habitual, teríamos de fazer um grande número de afirmações negativas, como por exemplo: a sua erudição era grande, mas ele não foi um erudito; o seu trabalho tinha a ver com os textos e a sua interpretação, mas não era filólogo; sentia-se extremamente atrído, não pela religião, mas pela teologia e pelo tipo de interpretação teológica segundo o qual o próprio texto é sagrado, mas não era teólogo e não manifestou especial interesse pela Bíblia; era um escritor nato, mas a sua maior ambição foi criar uma obra exclusivamente composta de citações; foi o primeiro alemão a traduzir Proust (em colaboração com Franz Hessel) e Saint-John Perse, e já antes disso traduzira os Tableaux Parisiens, de Baudelaire, mas não era tradutor; fazia recensões críticas de livros e escreveu um certo número de ensaios sobre escritores vivos e mortos, mas não era crítico literário; escreveu um livro acerca do barroco alemão e deixou inacabado um enorme estudo sobre o século XIX francês, mas não era historiador nem historiador da literatura; tentarei mostrar que ele pensava poeticamente, mas não era poeta nem filósofo. (...) A 26 de Setembro de 1940, Walter Benjamin, que se preparava para emigrar para a América, suicidou-se na fronteira franco-espanhola. Várias razões o levaram a isso. A Gestapo confiscara o seu apartamento em Paris, que continha a sua biblioteca (conseguira fazer sair da Alemanha ‘a metade mais importante’) e muitos dos seus manuscritos (...). Como iria ele viver sem a sua biblioteca, como podia ganhar a vida sem a vasta colecção de citações e excertos que se encontrava entre os seus manuscritos? Além disso, nada o atría na América, onde, conforme costumava dizer, provavelmente ninguém saberia o que fazer dele além de o passearem pelo país inteiro, exibindo-o como o ‘último europeu’. Mas a causa imediata do suícidio de Benjamin foi o azar verdadeiramente excepcional. (...) Na medida em que o passado se transmite sob a forma de tradição, possui autoridade; na medida em que a autoridade se apresenta historicamente, converte-se em tradição. Walter Benjamin sabia que a ruptura com a tradição e a perda de autoridade que se verificaram no seu tempo eram irreparáveis, e concluiu daí que era preciso descobrir novas formas de relações com o passado.” Para Walter Benjamin os seres humanos são anjos da história, no sentido literal do termo. Angelos significa mensageiro de um mundo que é texto incrito no tecido da tradição e da história. A nosso essência é a de dar testemunho do passado. Enquanto herdeiros da tradição que, na modernidade em ruínas, já se não transmite numa continuidade sem rupturas, devemos transformar-nos em “pescadores de pérolas” que se cristalizaram em “citações”.

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