domingo, setembro 28, 2008

crónicas caninas I

O meu cão já não é um cachorro. É agora um ser adulto da espécie canina. Está prestes a fazer dois anos e, inevitavelmente, perdeu alguma da graça que tinha. Graça que tem tudo o que é pequenino, imaturo e desinquieto. O que perdeu em vivacidade e espontaneidade, ganhou em continência (física e psicológica). Nas perdas e ganhos do crescimento, nessa passagem quase iniciática de uma ordem do ser para outra, muitas transformações se foram operando: deixou de fazer as suas necessidades em casa (um drama mais humano que canino), deixou de olhar para os pequenos rolos de merda que acabava de depositar no chão da casa como apetitosos croquetes de carne, perdeu a mania de roer tudo o que se encontrasse à distância de um abocanhar e de carpinteirar os móveis da sala e do hall, amenizou a ânsia de perder os donos quando estes se ausentavam de casa mesmo por breves instantes; ganhou estabilidade emocional nas ausências quotidianas dos membros mais velhos da matilha (nós), ganhou algum tino na sua exigência de brincar a toda a hora, dorme mais.
As mudanças mais significativas, porém, ocorreram nos momentos imediatamente posteriores às suas estadias forçadas em canis. Por cada temporada passada nos seus campos de férias, mesmo quando não excedia dois a três dias, levava algum tempo até que recuperava a confiança. Por uma ocasião perdeu mesmo a voz: deixou de vocalizar alguns sons característicos que, por antropomorfização, interpretávamos como próximos do linguarejar humano. Hoje em dia é um cão diferente. Mas continua feliz, sobretudo quando passa temporadas numa aldeia do norte. Aí só tem por limites os territórios marcados por outros cães que ele fareja à distância, o cajado do pastor que não lhe permite aproximar-se do rebanho que pastoreia nos prados verdes, e a noite que ele sabe que é o momento de regressar ao seio da matilha. Por vezes depara-se com o inesperado de um cão hirsuto que, inopinadamente, lhe rasga o casado de pêlo preto que nunca despe. Tudo o resto é liberdade à solta. Liberdade para ladrar aos forasteiros que se avizinham da casa onde a matilha se acolhe. Liberdade para trotar pelos lameiros, saltar muros, atravessar milheirais, brincar horas a fio com outros cães que já aprenderam a vir rondar os muros do jardim como quem o vem chamar para uma ronda de circunstância. Afeiçoou-se à canzoada que o distingue como um dos seus.
Entre as demais transformações que o meu cão sofreu, a mais profunda é a de consciência (não alinho na proverbial distinção que separa os humanos racionais dos bichos irracionais). O meu cão é um cão com consciência de classe – ou da falta dela, rafeiro como é. Detesta cães classificados com pedigree: dálmatas, caniches, cockers, etc. Até parece conhecer a cartilha marxista de uma ponta à outra quando se depara com qualquer cão a passear maneirismos de nobreza de sangue ou burguesia de espírito. Quando assim acontece, o meu cão rafeiro tem a mania que é doberman ou roteweiller. Eriça a pelagem do cachaço, arreganha os dentes, espeta o rabo, e o todo o seu corpo se inteiriça e ganha tamanho, como se num repente a sua memória ancestral de lobo predatório tomasse conta de todas as células do seu ser. Nesses momentos, torna-se um problema bicudo segurá-lo, ao ponto do couro de que é feita a trela parecer que se vai desfazer em tiras. Apesar disso, continua a ser um cão lindo. O mais lindo cão do mundo.

segunda-feira, setembro 22, 2008

as explicações e a política

Cerca de 120 euros por mês é o preço, em média, que as famílias portuguesas das classes média e média alta (e as outras?) gastam com os seus filhos em explicações. Aproximadamente 1400 euros por ano e por filho. E tudo isto em virtude da legítima pretensão de garantir um futuro melhor à sua prole. Os números apresentados pelos investigadores da Universidade de Aveiro, por si só, dão que pensar. Não está em causa se as famílias, mesmo as de maiores rendimentos, gastam muito ou não em tempos de evidente crise económica. Também não se trata de especular acerca dos benefícios ou malefícios que as explicações acarretam à autonomia intelectual dos estudantes. A questão é, antes de tudo, política, e como tal deve ser formulada. Não estaremos perante uma privatização ou semi-privatização camuflada do ensino público? Se a resposta é afirmativa, impõe-se saber se, para garantir a equidade deste sistema de educação misto, não caberá ao estado distribuir pelas restantes famílias – as carenciadas – cheques-explicações no valor mensal médio de 120 euros. Ou alguém acredita que podem quaisquer outras medidas governativas acabar com os centros explicativos ou repor um mínimo de condições igualitárias de oportunidades de ensino?

domingo, setembro 21, 2008

as explicações e a prostituição do ensino

Uma semana depois de alguns membros do governo se terem passeado pelas escolas deste país moribundo a distribuir prémios de mérito para os melhores alunos de cada escola e a enaltecer as virtudes da sua política educativa – numa manifestação clara de marketing político –, Maria de Lurdes Rodrigues referiu-se hoje ao estudo feito por investigadores da Universidade de Aveiro sobre o fenómeno das explicações que as famílias portuguesas pagam, para assegurar o bom desempenho escolar dos seus filhos, como uma realidade própria de um país do terceiro mundo. Lamenta-se a ministra da educação que tudo isto acontece apesar de ter criado as aulas de substituição e as aulas de apoio assistido. E acrescenta que o país não se pode conformar com os factos e que se tem de exigir às escolas que cumpram o seu papel na íntegra, para assim acabarmos definitivamente com a situação de uma escola bifronte: uma escola pública de manhã e outra privada de tarde. Uma vez mais, a senhora ministra falou com a retórica do coração, o que a médio e longo prazo se traduzirá num erro político.
O estudo revela aspectos interessantes, que merecem mais do que o simples lamento ministerial e uma má disfarçada atribuição de responsabilidades às escolas e aos professores.
Em primeiro lugar, são as famílias com maior poder económico – classes média e alta – que recorrem às explicações, o que diz muito acerca do índice de democraticidade do nosso sistema de ensino, em que a igualdade de oportunidades figura apenas como letra morta da lei. Em segundo lugar, o fenómeno alterou-se em termos de mercado: se no passado era protagonizado pelo explicador doméstico, por norma um professor ou uma professora de carreira, que usava os seus tempos livres (muitos) para aumentar a renda mensal; agora predominam os centros de estudo, cuja natureza comercial é um inequívoco sinal dos tempos, estando de acordo com as leis do mercado neoliberal. Em terceiro lugar, são os professores recém-formados, que por norma ficaram de fora das vagas abertas em concurso, que recorrem aos centros para sobreviverem e potenciarem a sua carreira futura.O fenómeno das explicações, nos moldes actuais, está em expansão, garantem os investigadores, isto à revelia dos propósitos da ministra da educação que, há dois ou três anos, aumentava a carga horária dos professores para os impedir de acumular, entre outras coisas. Curiosamente, são os professores excedentários, em início de carreira, que alimentam o comércio das explicações, esses mesmos que se vêem empurrados para uma carreira paralela no privado, para uma prostituição forçada, ajudando desse modo a suprir as necessidades que o ensino público não é capaz de satisfazer. Enquanto isso, os professores, nas escolas, ocupam cada vez mais o seu tempo com questões e processos que nada têm que ver com o ensino e a pedagogia, carregando um fardo burocrático que os impede de se dedicarem de corpo e alma aos alunos. E assim anda o ensino cada vez mais prostituído.

quinta-feira, setembro 04, 2008

apontamento breve

Na ressaca do retorno aos trabalhos e aos dias do quotidiano, posso dizer que as passadas não foram as melhores férias da minha vida. Desconfio mesmo que cheguei a uma idade em que afirmar o contrário já está para lá das minhas possibilidades. Não, não se trata de pessimismo ou algum traço de carácter a puxar à melancolia. Acontece apenas que uma dose mínima de lucidez me força a olhar com realismo para a vida. Certamente vivi já mais tempo do que me resta viver. E a parte restante, convenhamos, não será a mais fácil. Se tudo correr como é normal que corra, o pior ainda está para vir. Não vale a pena, porém, desassossegar demasiado. O melhor é adoptar o epicurismo decadente de um Ricardo Reis que defende: “Melhor vida é a vida / Que dura sem medir-se.” O qual culmina numa ética da abdicação que sentencia: “Senta-te ao sol. Adbica / E sê rei de ti próprio.”

terça-feira, julho 29, 2008

quase de volta às crónicas caninas

Volto às crónicas caninas. A razão é simples: não me apetece escrever sobre o mundo abaixo de cão em que se transformou a vida dos portugueses nos últimos meses. Sabe-se agora que que as previsões de crescimento anunciadas pelo governo, no princípio do ano, estão não passam de uma miragem, caindo vertiginosamente à razão inversa das subidas de temperatura deste Verão que promete ser tórrido. O que também sobe, à semelança do balão da canção da Manuela Bravo è a inflação. Os 2,1 % prognosticados pelo governo não passam de um efeito da miopia crescente de que sofrem estes nossos governantes. O que não parou de subir foram as notas dos exames – sobretudo as de matemática. De um ano para o outro, os nossos estudantes do básico e do secundário transformaram-se em esmerados seguidores de Pitágoras, o que dentro de uma dezena de anos nos vai deixar felicíssimos. Entretanto o governo passou a admitir a crise, mas assegura que tem causas mais externas que internas, o que para o cidadão comum deve significar muito na hora de pagar as suas contas. Anunciou também mais uma medida orwelliana, consubstanciada na ideia de intrudizir um chip obrigatório (pago evidentemente pelo utilizador) nas matrículas dos automóveis. O meu desejo é que o governo vá de férias, gozar o calor e a praia e me deixe descançado com a minha crónica canina. Em tempo de crise e de carestia de vida resolvi escrever acerca da minha última descoberta – o preço exorbitante dos canis. É que também eu vou de férias e durante uma semana sou obrigado ( o que muito me custa) a deixar o meu cão (agora já um homem, perdão, um cão e não um cachorro) num canil. Não é a primeira vez (será a quarta) e sempre paguei o montante que me pediram sem deitar contas à vida. Até que me pus a pensar e ... caramba! Trata-se de um autêntico roubo. Passo a explicar porquê. A quantia que me pedem pela diária é de 10 a 12 euros, com pensão completa mas sem duche (se o desejar pagarei pelo serviço). O espaço ocupado pelo meu cão não terá mais de quatro metros quadrados, despedido que quaisquer comodidades. Para se deitar tem apenas o mosaico de que é forrado o chão do seu compartimento. Ora, se compararmos o preço pedido pelo dono do canil com preço de uma diária num hotel de três estrelas (sejamos benevolentes) da períferia, o que constatamos é que mesmo a vida de cão está pelas horas da morte.

quinta-feira, julho 03, 2008

A crise da modernidade: tradição, autoridade e educação



A tradição já não é o que era

“Na medida em que o passado se transmite sob a forma de tradição, possui autoridade; na medida em que a autoridade se apresenta historicamente, converte-se em tradição. Walter Benjamin sabia que a ruptura com a tradição e a perda da autoridade que se verificaram no seu tempo eram irreparáveis, e concluiu daí que era preciso descobrir novas formas de relações com o passado.” Hannah Arendt, Homens em Tempos Sombrios

1. Tradição e Modernidade

O conceito tradição é tematizado por Hannah Arendt em muitos dos seus escritos. Podemos afirmar que ele percorre a sua obra, contribuíndo para a originalidade do seu pensamento político, bem patente na importância que a filósofa atribui ao povo romano. A articulação dos conceitos tradição, religião e autoridade, constitutivos da, “trindade romana”, a par da tematização da crise da modernidade, que é antes de mais uma crise que se increve na esfera política, conferem consistência à constatação reiterada do rompimento do fio da tradição.

A tradição do pensamento político nasce com Platão e tem o seu ocaso no coração da modernidade, quando a experiência do político perdeu o seu significado, como reflexo da cisão radical entre pensamento e acção.

“A nossa tradição de pensamento político teve início quando Platão descobriu que afastar-se dos assuntos humanos é algo de inerente à experiência filosófica; e terminou quando desta experiência já nada mais restava senão a oposição entre agir e pensar, oposição essa que, privando de realidade o pensamento e de sentido a acção, fez com que ambos se tornassem desprovidos de significado.” (E.P.F., p.39)

A noção de ruptura, inerente à modernidade, pressupõe a existência de um antes e um depois. O que caracteriza esse antes da modernidade? Trata-se do mundo pré-moderno em que a tradição servia de fundamento à comunidade política, garantindo a sua existência.

A crise da modernidade é reveladora um tipo de relação ao mundo tradicional, que deixou de existir. A análise da crise da educação revela que os valores da “trindade romana – a religião, a autoridade e a tradição” – foram progressivamente postos em dúvida, na idade moderna, tendo depois sido erradicados no mundo actual. Doravante, o sentido originário dessa relação ao mundo foi prevertido, assim como a existência política.

“O vigor desta trindade residia na força vinculadora de um começo investido de autoridade, ao qual os homens estavam unidos por laços religiosos através da tradição. A trindade romana não só sobreviveu às transformações da república num império, mas penetrou também nos locais onde a pax romana edificou sobre as bases romanas a civilização ocidental” (E.P.F., p.138)

A crise referida por Hannah Arendt é um fenómeno que resulta de um longo e continuado processo histórico, iniciado na idade moderna, com o desaparecimento do mundo romano e cristão, e que culminou no mundo moderno. Se naquela ocorre uma fractura entre o passado e o futuro, neste o fenómeno radicaliza-se ao ponto de se transformar numa ruptura sem precedentes, numa brecha por onde escoaram o senso comum, o mundo comum e as categorias políticas, e de onde emergiram, entre outros, o isolamento, a alienação do mundo, a superficialidade, a sociedade de massas, assim como a experiência totalitária do nazismo e do estalinismo.

A articulação entre tradição, senso comum e mundo comum é outra constante no pensamento de Hannah Arendt. Encontra-se no texto A crise na educação como uma das suas causas maiores, sobretudo se tivermos em conta que essa crise é manifestação de uma crise mais profunda, a dos valores gerais da modernidade que coexiste com o “eclipse do mundo comum”. Num texto intitulado A tradição do pensamento político, Arendt expõe essa articulação de modo claro:

“Historicamente, o senso comum é romano tanto de origem como em termos de tradição. Não é que os gregos e os judeus não tivessem senso comum, mas só os romanos o desenvolveram a ponto de o tornarem o critério superior na gestão dos assuntos públicos e políticos. Com os romanos, recordar o passado passou a ser uma questão de tradição, e foi no sentido da tradição que o desenvolvimento do senso comum encontrou a sua expressão politicamente mais importante. Uma vez que o senso comum se liga à tradição e é por ela alimentado, quando os modelos tradicionais deixam de fazer sentido e deixam de funcionar como regras gerais que permitem subsumir todos ou a maior parte dos casos particulares, é inevitavel que o senso comum tenda a atrofiar-se. (...) Este método ‘prático’ de remomoração do senso comum não requeria qualquer esforço, mas recebíamo-lo, num mundo comum, como herança partilhada. Por conseguinte, a sua atrofia provocou imediatamente uma atrofia também da dimensão do passado e desencadeou o movimento arrastado e irresistível de esvaziamento que estende um véu de sem-sentido sobre todas as esferas da vida moderna.” (P.P., pp. 40-41)

A ruptura definitiva com a tradição, que ocorreu apenas no séc. XX e que marca a transição da idade moderna para o mundo moderno, é pois o culminar de um processo de radicalização da dúvida, iniciada por Descartes no dealbar da modernidade.

Inserindo-se ainda no seio da tradição, Descartes é o protagonista (em parte involuntário) mais representativo de um movimento cada vez mais abrangente de suspeita em relação às verdades metafísicas que no passado eram tomadas como evidentes, quer no plano filosófico quer no plano religioso da revelação divina. Deste movimento emerge a ciência moderna que, paulatinamente, vai assumindo o lugar outrora ocupado pelos sistemas metafísicos de representação do mundo, sem contudo assumir o seu papel de assegurar a consistência ontológica da realidade.

“Desde o surgimento das ciências, cujo espírito se traduz na filosofia cartesiana da dúvida e da desconfiança, o quadro conceptual da tradição da tradição deixou de estar seguro. (...) Uma vez desaparecida a confiança em que a realidade se nos mostrava tal como é, o conceito de verdade como revelação tornou-se duvidoso, e com ele a fé inquestionável num Deus objecto de revelação. O sentido do conceito de ‘teoria’ alterou-se: já não significava um sistema de verdades racionalmente articuladas (...), passou antes a significar a teoria científica moderna, ou seja, uma hipótese de trabalho passível de ser alterada consoante os resultados que produz e cuja validade depende não daquilo que ‘revela’ mas do facto de ‘funcionar’.” (E.P.F. p.53)

Os protagonistas que por último aceleraram o referido processo de transição e de ruptura, foram, segundo Hannah Arendt: Kierkegaard, Marx e Nietzsche. Estes filósofos da suspeita “situam-se no final da tradição, justamente antes de se dar a ruptura” (E.P.F., p.41). Cada um a seu modo vai lançar o seu repto à tradição, contribuindo para a reviravolta decisiva e radical que caracteriza a modernidade.

“Kierkegaard, Marx e Nietzsche são para nós como balizas indicadoras de um passado que perdeu a sua autoridade. Foram eles os primeiros a atreverem-se a pensar sem a orientação de nenhuma autoridade. (...) Kierkegaard, ao saltar da dúvida para a fé, trouxe a dúvida para o interior da religião. (...) Marx trouxe as teorias da dialéctica para o campo da acção . (...) O platonismo invertido de Nietzsche (...) terminou naquilo a que hoje chamamos o niilismo.” (E.P.F., pp.42-44)

2. O hiato entre o passado e o futuro

No prefácio do Entre o Passado e o Futuro, intitulado “O hiato entre o passado e o futuro” (1967), encontramos uma citação do poeta René Char – “a nossa herança não foi precedida por nenhum testamento” (p. 17) – e outra de Tocqueville – “Desde que o passado deixou de projectar a sua luz sobre o futuro, a mente humana vagueia nas trevas” (p. 20). Em ambas podemos detectar, por um lado, a noção de abismo, inscrita no coração da modernidade, e por outro lado, a urgência de uma interrogação sobre o sentido dessa ausência de testamento.

“Seja como for, é ao facto de o tesouro perdido não ter nome que o poeta alude quando afirma que a nossa herança não foi precedida de nenhum testamento. O testamento, que indica ao herdeiro aquilo que legitimamente lhe pertence, transmite ao futuro os bens do passado. Sem testamento ou, para aclarar a metáfora, sem a tradição – que escolhe e nomeia, que transmite e preserva, que indica onde se encontram os tesouros e qual o seu valor – é como se não existisse continuidade no tempo e como se, por conseguinte, não houvesse nem passado nem futuro, em termos humanos, mas apenas a perpétua mudança do mundo e o ciclo biológico dos seres vivos.” (E.P.F. p.19)

O que se perdeu, na era moderna, foi o próprio espaço onde a liberdade pública se podia manifestar, o espaço que “se constitui com o agir conjunto”, porque a razão de ser da política “é a liberdade e o seu campo de experiência é a acção”.

Quando o fio da tradição se rompeu, de modo absoluto e radical, no século XX, os seres humanos confrontaram-se com situações inéditas como a desolação extrema, a atomização social e o “eclipse do mundo comum”. Qual é o significado dessa perda da tradição? Como pensar numa situação inédita, na brecha entre passado e futuro, provocada pelo desaparecimento da tradição? Como pensar num mundo em que se consumou “o divórcio existente entre pensamento e realidade, que se tornou opaca à luz do pensamento e que este, já não ligado ao acontecimento (...), está sujeito (...) a converter-se em algo totalmente esvaziado de significado”?) (E.P.F. p. 20).

“O problema, contudo, reside no facto de não parecermos estar nem equipados nem preparados para esta actividade de pensar, de nos estabelecermos nesse hiato entre passado e futuro. Durante períodos muito longos da nossa história, na verdade, durante os milhares de anos que se seguiram à fundação de Roma e que foram determinados pelos conceitos romanos, esse hiato foi vencido pela ponte daquilo que, graças aos romanos, denominámos tradição. Que esta tradição se foi desgastando mais e mais à medida que avançámos pela Idade moderna não é segredo para ninguém. Quando o fio da tradição por fim se rompeu, o hiato entre o passado e o futuro deixou de ser uma condição própria apenas da actividade de pensar e uma experiência restrita àqueles poucos que faziam do pensamento a sua actividade fundamental, para se converter numa realidade tangível e numa fonte de perplexidade comum: ou seja, tornou-se um facto de relevância política.” (E.P.F. p.27)

O que foi a autoridade?

Na sua obra Entre o Passado e o Futuro, educação e autoridade são conceitos fundamentais. Este último está penhe de equivocidade.

Pode identificar-se com o conceito de poder ou então ser usado para definir uma relação hierárquica legítima, em nenhum dos casos se trata de uma relação de dominação. No seu sentido mais autêntico, a autoridade opõe-se ao autoritarismo político.

Existe poder sem autoridade, mas o inverso não é possível. O poder, sendo a condição necessária da autoridade, não é todavia a condição suficiente. Para que o poder se transforme em autoridade, é preciso que aquele sofra uma modificação.

“Assim o recurso à autoridade intervém quando um poder, por razões diversas, tem necessidade, a fim de cumprir eficazmente a função que é a sua e de obter a obediência daqueles sobre quem se exerce, de um acrescento de justificação ou de fundamentação: quando precisa, poderíamos dizer, de um ‘superpoder’ que já não pode consistir simplesmente em juntar-lhe mais poder, mas sim em modificar a natureza ou o próprio teor desse poder. (...)
Mais precisamente, graças ao superpoder que é o único a poder conferir autoridade, a submissão que o poder conseguia por si mesmo obter daqueles que ele comandava que agissem de tal ou tal maneira transforma-se numa obediência propriamente dita, numa obediência voluntária que permite à dominação não usar violância e ao comando ser incontestado. Um poder a que se acrescenta uma dimensão de autoridade é um poder que não se discute.”
Alain Renaut, O Fim da autoridade, Instituto Piaget, p.34

É no artigo O que é a autoridade? (1955), redigido antes de A crise na educação (1958), que Hannah Arendt constrói o conceito de autoridade. O seu modus operandi é sobretudo negativo, isto é, ao distinguir a autoridade de outras formas de relações humanas que com ela podem ser confundidas, vai-a definindo por aquilo que ela não é, pondo a nu o facto da autoridade já não existir. É este o modo que Hannah Arendt adopta em A crise na educação.
Apesar do artigo de Hannah Arendt se intitular O que é a autoridade?, a questão mais adequada seria “O que foi a autoridade?”, em virtude do conceito, outrora fundamental para a teoria política, ter desaparecido do mundo moderno.

“Que experiências políticas que corresponderam ao conceito de autoridade e qual a sua origem? Qual é a natureza de um mundo público político constituído pela autoridade? Será verdade que a afirmação de Platão e Aristóteles, de que qualquer comunidade bem ordenada é constituída por governantes e governados, foi sempre tida por válida no período anterior à época moderna?” (E.P.F. pp. 117-118).

1. Os Gregos

Arendt defende que a autoridade não tem lugar na experiência política grega, só a persuasão e a força preenchem aí uma função. A ausência de autoridade, na realidade política grega, teria assim conduzido Platão e Aristóteles a tentar introduzi-la na sua filosofia política.

Os Gregos apenas conheciam a tirania ou a guerra como formas de governo assentes na relação de comando e obediência. É por isso que Platão e Aristóteles se voltaram para a estrutura familiar, no seio da qual o chefe de família governava, como déspota, a família e os escravos. No entanto, a autoridade implica uma obediência na qual os homens conservam a sua liberdade.

Platão

Platão alicerça a sua “aspiração a um governo autoritário” numa concepção da razão que, mais do que autoritária, acaba por se revelar despótica. Esse despotismo da razão (protagonizado pelo filósofo-rei), por se alicerçar em exemplos e analogias retirados da esfera privada – a qual “assenta na desigualdade natural entre quem governa e quem é governado” (E.P.F. p. 122) – vai traduzir-se numa dificuldade incontornável de legitimação da sua filosofia política, sobretudo tendo em conta a indesejável ligação entre este e a tirania (Aristóteles) e entre o poder que sempre corrompe e a autonomia do pensar (Kant).

“A semelhança fatal entre o filósofo-rei de Platão e o tirano grego, assim como o potencial prejuízo para a esfera política que esta concepção de governo implicaria, parece ter sido reconhecida por Aristótesles; mas que essa combinação de domínio e razão implicou um perigo também para a filosofia é algo que, tanto quanto sei, só foi apontado por Kant”. (E.P.F. p. 121-122)

Considerando os processos persuasivos e argumentativos insuficientes “para a condução dos homens” – rejeita-os liminarmente em virtude da condenação à morte de Sócrates – e procurando uma alternativa que não passasse pelo “recurso a meios externos de violência”, o que destruiria a vida política, Platão encontra na verdade auto-evidente à razão o meio eficaz de governar. O estabelecimento de uma “tirania da razão”, encabeçada pelo filósofo-rei, não está contudo isenta de problemas. De facto, a legislação imposta pelo filósofo, não pode deixar de ser despótica, assim como o consentimento dos cidadãos não é senão uma “servidão voluntária”.

Apesar da coerção imposta pela razão não necessitar do recurso à violência para que resulte eficaz, e ainda que a sua força seja deveras superior à da persuasão e argumentação, ela não constrange o maior número mas apenas uma minoria. A multiplicidade dos cidadãos que compõem a comunidade política, recinto das opiniões que se requerem disputadas, não é susceptível de se submeter às ordens da razão, sem alienação da sua maioridade política. Eis a principal dificuldade da filosofia política de Platão. A solução encontrada na República consiste na invenção do mito para consumo da multidão, que se traduz na afirmação de um além onde recompensas e castigos seriam distribuídos, desempenhando para aquela uma papel equivalente ao que desempenha a alegoria da caverna para o filósofo. Esta doutrina de um além com castigos e recompensas assume-se, pois, como uma doutrina de natureza política, que virá a ser recuperada pelo cristianismo.

“O ser político, o viver numa polis, significa que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força ou violência. Para os gregos, forçar alguém pela violência, ordenar em vez de persuadir, eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da polis, característicos do lar e da vida em família, na qual o chefe da casa imperava com poderes incontestados, ou da vida nos imperios bárbaros da Ásia, cujo despotismo era frequentemente comparado à organização doméstica.” (C.H. pp. 41-42)

“Uma vez que a autoridade exige sempre obediência, é muitas vezes confundida com alguma forma de poder ou violência. Mas o facto é que a autoridade exclui o uso de meios exteriores de coacção; quando se usa a força, isso significa que a autoridade falhou. Por outro lado, a autoridade é incompatível com a persuasão, já que esta pressupõe uma paridade e funciona através de um processo de argumentação. Quando se utilizam argumentos, a autoridade é deixada em suspenso. Contra a ordem paritária da persuasão, temos a ordem autoritária, que é sempre hierárquica. Assim, se temos de definir a autoridade, esta é algo que se opõe tanto à coação pela força, como à persuasão mediante argumentos. (A relação autoritária entre quem comanda e quem obedece não assenta nem numa razão comum nem no poder daquele que comanda; aquilo que ambos partilham é a hierarquia em si, cuja justiça e legitimidade ambos reconhecem e dentro das quais possuem o seu lugar fixo e prederterminado.)” (E.P.F., pp. 106-107)

O conflito entre filosofia e política, a sua radicalização, é um tema recorrente de Hannah Arendt a propósito do pensamento platónico. Trata-se de uma forma embrionária da oposição aristotélica entre “vida teórica” e “vida prática”, bem como da subordinação da segunda em relação à primeira, o que trará consequências decisivas para a desvalorização da político ao longo da tradição filosófica e política.

“No início, portanto, não da nossa história política ou filosófica, mas da nossa tradição de filosofia política, encontra-se o desprezo de Platão pela política, a sua convicção de que ‘os assuntos e acções dos homens (ta tōn anthrōpōn pragmata) não merece atenção demasiado séria’ e de que a única razão pela qual o filósofo tem de se lhes referir consiste no infeliz facto de a filosofia – ou, como um pouco mais tarde diria Aristóteles, uma vida a ela dedicada, o bios theōrētikos – ser materialmente impossível sem uma composição pelo menos em parte razoável do conjunto dos assuntos que preocupam os homens na medida em que vivem em companhia uns dos outros. No começo da tradição, a política existe porque os homens vivem e são mortais, enquanto a filosofia se preocupa com aspectos que são eternos, como o universo.” (P.P., p. 73)
Aristóteles

Ainda que pressuponha a relação de governantes-governados, a filosofia política de Aristóteles não acompanha a de Platão num ponto essencial: não existe a figura do filósofo-rei, nem a correlativa ideia da superioridade de um especialista (o filósofo) nos assuntos relativos ao governo da cidade-estado.

Na sua obra A Política, Aristóteles justifica a diferença entre jovens e velhos e entre governantes e governados pela natureza. Esta tese naturalista é, segundo Arendt, contraditória com o ideal grego de polis.
De facto, a tese aristotélica é problemática por duas razões: a primeira prende-se com a contradição entre a esfera pré-política da ideia de governação, assente numa assimetria natural entre governantes e governados, e o princípio de igualdade que subjaz à definição da polis como “comunidade de iguais”; a segunda deve-se o facto de Aristóteles defender que “a diferença entre governantes e governados é derivada da diferença natural entre os mais novos e os mais velhos”, quando na realidade existe um desfazamento temporal entre a instrução e a política.

“A própria ideia de governação, assim como a distinção entre governantes e governados, é algo que pertence a um domínio que precede a esfera política, e aquilo que distingue esta última do domínio ‘económico’ da família é que a pólis se baseia num princípio de igualdade e desconhece qualquer diferenciação entre governantes e governados.” (E.P.F., p. 130).

“A incoerência do seu empreendimento é perceptível (porque) a diferença entre governantes e governados é derivada da diferença natural entre os mais novos e os mais velhos. (...) No terreno político lidamos sempre com adultos que, propriamente falando, deixaram para trás o tempo da instrução, e a política ou o direito de participar nos assuntos públicos começa precisamente quando a educação está terminada. (...) Na educação, pelo contrário, lidamos sempre com pessoas que não podem ainda ascender à política e à igualdade porque estão numa fase de preparação para isso.” (E.P.F., p. 132).

“Para Aristóteles, o termo politikon era um adjectivo que se aplicava à organização da pólis e não a simples designação de qualquer forma de vida em comum (...). Queria dizer, sim, que é um traço único do homem o de este poder viver numa pólis, e também que a pólis organizada é a mais alta forma de vida humana em comum.” (P.P., p. 101)

“As grandiosas tentativas da filosofia grega para encontrar um conceito de autoridade que impedisse a deterioração da pólis e preservasse a vida do filósofo fracassaram pelo facto de no âmbito da vida política grega não existir uma noção de autoridade baseada numa experiência política imediata” (E.P.F., p. 133).


2. Os Romanos

É com os Romanos, segundo Hannah Arendt, que o conceito de “autoridade pode adquirir um carácter educacional” sem perder a sua consistência política. Para eles, “os antepassados, em qualquer circunstância, representam exemplos de grandeza para cada nova geração, (...) eles são os maiores, os melhores por definição. Onde quer que o modelo de educação pela autoridade, sem esta convicção fundamental, tenha sido imposto na esfera pública (...), o seu objectivo consistiu antes de mais em obscurecer reais ou camufladas aspirações de poder, e fingir educar quando na verdade pretendia apenas submeter.” (E.P.F., p. 133).

Só os Romanos conseguiram estabelecer uma autoridade política sem recorrer ao constrangimento exterior ou a uma ordem imposta. Por isso, o termo e o conceito de autoridade são originários de Roma, reenviando para o modelo da sua fundação. A autoridade encontra o seu fundamento no passado, passado sempre presente na vida da cidade e que é necessário conservar. Conservar a sua memória é um acto de amor e de responsabilidade quer para com o mundo legado pelos antepassados, quer para com o mundo perpectuado pelas gerações futuras.

A auctoritas dos Romanos provém do verbo augere e significa aumentar a fundação do passado. É necessário distinguir autoridade e poder. A autoridade, ao contrário do poder, enraiza-se no passado e deriva da própria autoridade dos fundadores, dos auctores.

Enquanto o poder pertence ao povo, é o Senado que detém a autoridade. A autoridade dos senadores provém da sua ligação ininterrupta à tradição, inaugurada pelos fundadores da cidade, ou mesmo por Rómulo, depositário da autoridade divina.

“Onde a vontade popular era considerada como susceptível de errar, como pode errar a vontade das crianças que não vivem senão no presente mais imediato, a aprovação senatorial, (...) atribuía aos actos públicos dos eleitos, detentores do poder legal, como que uma confirmação vinda dos tempos mais longínquos, que só por si lhes dava plenamente força de direito e aumentava consequentemente, decisivamente, o seu poder de acção.”
Alain Renaut, O Fim da autoridade, Instituto Piaget, p.38


Hannah Arendt apresenta-nos a imagem de pirâmide invertida, cujo topo não se situa no céu das ideias ou da transcendência divina, mas mergulha na profundidade do passado e na transcendência da tradição. A reverência para com os anciãos explica-se pelo facto de estarem mais próximos dos antepassados, cabendo-lhes pois, enquanto testemunhas da fundação sagrada, transmitir-nos os valores sagrados da tradição e servir de elo de ligação – religio, de religare, significa estar ligado ao passado – a eles.
“A religião romana, assente na fundação, tornou um dever sagrado preservar o que fora outrora transmitido pelos antepassados ou maiores. A tradição tornou-se, portanto, sagrada (...). Preservava e transmitia a sua autoridade, baseada no testemunho dos antepassados que tinham assistido à fundação sagrada. A religião, a autoridade e a tradição tornaram-se assim inseparáveis umas das outras, exprimindo a força sagrada vinculativa de um começo autorizado ao qual cada um continuava ligado graças ao vigor da tradição.” (P.P., p. 46)

É com a derrocada do Império Romano que, para Hannah Arendt, se precipita o desaparecimento da vida política, o que constitui o acontecimento mais decisivo da história política ocidental. A crise da autoridade inicia-se então com a desvalorização da trindade romana da tradição, autoridade e religião, sendo que a queda de um dos seus pilares desencadeia necessariamente a queda dos outros. Esse é já o cenário da modernidade.

3. O Cristianismo

A partir do momento em que a Igreja Cristã se romanizou, com o imperador Constantino, “a herança política e espiritual de Roma passou para as mãos do cristianismo (...), a Igreja tornou-se tão ‘romana’ e adaptou-se de tal modo ao pensamento romano em assuntos políticos, que fez da morte e ressurreição de Cristo a pedra basilar de uma nova fundação, erguendo sobre ela uma instituição humana nova e tremendamente perdurável. (...) Como testemunhas desse acontecimento, os Apóstolos puderam converter-se nos ‘pais fundadores’ da Igreja, dos quais esta derivava a sua própria autoridade enquanto pudesse continuar a transmitir de geração em geração o seu testemunho através da tradição.” (E.P.F., pp.138-139)

Paralelamente, o cristianismo, a partir do momento em que assume o papado como centro privilegiado do poder temporal (séc V), incorpora na sua estrutura conceptual a doutrina platónica de um além de recompensas e castigos , a qual, segundo Arendt, tem um horizonte político.

“Tendo incorporado a filosofia grega na estrutura das suas doutinas e credos dogmáticos, a Igreja Católica fundiu o romano conceito político de autoridade, inevitavelmente baseado num começo, com a noção grega de parâmetros e medidas transcendentes. (...) Dificilmente encontramos algo que se tenha afirmado com maior autoridade e com consequências de mais longo alcance do que esta fusão.” (E.P.F. p.141)

A consequência da incorporação da filosofia grega no edifício teórico do cristianismo traduziu-se, por um lado, na “diluição do conceito romano de autoridade” e, por outro lado, na assimilação do elemento de violência subentendido nas teorias políticas dos filósofos gregos, sobretudo de Platão.
Outra consequência, não menos importante, tem que ver com o facto do cristianismo, desenraizado agora da tradição política dos romanos, que fazia da autoridade um acrescento de legitimação do poder, abriu não só portas à tirania e ao despotismo, inerentes à fundamentação política dos gregos, como permitiu que por elas entrasse a ideia grega da subalternização da “vida activa” em relação à “vida contemplativa”.

“O cristianismo, com a sua crença num outro mundo cujas alegrias se pronunciam nos deleites da contemplação, conferiu sanção religiosa ao rebaixamento da vida activa à sua posição subalterna e secundária; mas a determinação dessa mesma hierarquia coincidiu com a descoberta da contemplação (theōria) como faculdade humana, acentuadamente diversa do pensamento e do raciocínio, que ocorreu na escola socrática e que, desde então, vem orientando o pensamento metafísico e político de toda a nossa tradição.” (C.H., p.28)

Contudo, a consequência decisiva prende-se sobretudo com a secularização inerente à modernidade. Esta implicou não apenas a descrença no além, onde “o medo do inferno já não se conta entre os motivos capazes de impedir ou de estimular os actos da multidão” mas, inevitavelmente, “a separação entre a esfera política e a esfera religiosa da vida; e, assim sendo, a religião não podia senão perder o seu elemento político, tal como a vida pública estava destinada a perder a sanção religiosa por parte de uma autoridade transcendente.” (E.P.F., p.148)

Assim, sem a “fonte da autoridade transcendente”, as pessoas vêem-se confrontadas “com os problemas mais elementares da convivência humana.” (E.P.F., p.154)

A romanização da Igreja cristã permitiu a longevidade de uma tradição alicerçada nas fundações da autoridade assentes na religião. A ruptura decisiva dá-se quando a Igreja Católica (universal) se vê abalada nos seus alicerces pela Reforma, contestatária da sua autoridade, assim como pelo criticismo moderno que minou as raizes da crença religiosa.

“Sem a sanção da crença religiosa, nem a autoridade nem a tradição continuam seguras. Sem o apoio dos instrumentos tradicionais de interpretação e de juízo, tanto a religião como a autoridade começaram a vacilar.” (P.P., p. 48)

Crise da educação ou crise na educação?

O sentido pedagógico do termo tradição encontra-se indissociavelmente ligado ao seu sentido político originário, que é romano: “Fazer ser novo aquilo que foi”. A modernidade recobriu e adulterou esta significação.
Hannah Arendt recupera o uso que Quintiliano fazia do conceito quando recorreu ao termo traditio para designar o ensino. Segundo Quintiliano, educar é tradere (remeter uma herança) e transmittere (remeter essa herança de tal maneira que o herdeiro a faça sua, a conserve e lhe dê vida).

A crise da educação que se manifesta na actualidade é o resultado de uma crise mais vasta e profunda, que tem as suas raizes na modernidade. Esta preenche por inteiro a brecha que se abriu entre o passado e o futuro, por onde se sumiram a tradição e a autoridade.

“A crise de autoridade na educação está intimamente ligada com a crise da tradição, isto é, com a crise da nossa atitude face a tudo o que é passado.” (E.P.F., p.203)

“No mundo moderno, o problema da educação resulta pois do facto de, pela sua própria natureza, a educação não poder fazer economia nem da autoridade nem da tradição, sendo que, no entanto, essa mesma educação se deve efectuar num mundo que deixou de ser estruturado pela autoridade e unido pela tradição.” (E.P.F., p.205)

No mundo pré-moderno, passado e futuro estavam ligados pelo fio da tradição que garantia a continuidade e a persistência do mundo. No entanto, a partir do momento em que o edifício da autoridade ruiu e o fio da tradição se rompeu, irreversivelmente, a crise irrompeu e todos os domínios da vida humana se viram por ela envolvidos. A crise da educação é, antes de mais, uma crise que se manifesta na educação, sendo portanto esta o lugar privilegiado de onde devemos retomar as questões essenciais, as quais nos poderão encaminhar para respostas já não enraizadas em preconceitos e ideias feitas no coração da modernidade.

Bibliografia

ARENDT, Hannah, Entre o Passado e o Futuro, Relógio D’Água, 2006
ARENDT, Hannah, Homens em Tempos Sombrios, Relógio D’Água, 1991
ARENDT, Hannah, A Condição Humana, Relógio D’Água, 2001
ARENDT, Hannah, A Promessa da Política, Relógio D’Água, 2007
COURTINE-DÉNAMY, Hannah Arendt, Instituto Piaget, 1994
RENAUT, Alain, O Fim da Autoridade, Instituto Piaget, 2005



quarta-feira, junho 25, 2008

Aonde já chega a crise?

Aonde já chega a crise? Fundo, muito fundo. Ela torna-se visível não tanto quando é sentida pelas pessoas dos estratos sociais economicamente mais carenciados – quem quer saber dos pobres, senão do ponto de vista das estatísticas? –, mas a partir do momento em que fustiga as classes médias. Então sim, é que ela ganha verdadeira visibilidade.
A um pobre, tudo o que ultrapasse o seu magríssimo pecúlio é demasiado, tanto faz que seja 50 ou 100 euros. Quem vive com pouco e esse pouco não lhe chega, o que lhe sobra em miséria é sempre demais. O acréscimo de miséria é ainda e sempre miséria. Não existem graduações nem quantitativos. Abaixo do limiar da pobreza, apenas há uma qualidade e condição: a de ser miserável. Ao contrário do que acontece com os imensamente ricos, em que é possível e usual graduar e quantificar o pecúlio (os cem mais ricos, os quinhentos mais ricos), nenhuma outra classe está sujeita a ordem de grandeza. É um absurdo pensar estabelecer o ranking dos mais pobres, ou dos mais remediados. Parece uma contradição nos termos. A ordenação da riqueza só faz sentido relativamente à quantificação do muitíssimo. Só a partir de uma quantia avultada se justifica graduar por ordem de grandeza. O mesmo não se passa em relação a quem vivia com o suficiente ou mesmo com mais do que o suficiente – que podiam aplicá-lo em pequenos luxos ou em pequenas poupanças – mas que agora já não chega para esconder o espectro do empobrecimento. É na classe média que a crise financeira mais se evidencia, em razão dos empréstimos acumulados em tempo de vacas gordas. Basta estar atento ao pormenores do quotidiano. É o automóvel que permanece na garagem semanas a fio, o pronto a vestir cuja visita se adia até que dias melhores venham, o arranjo e a pintura do cabelo que se disfarça como se pode (fugindo-se o espelho como o diabo da cruz), as consultas ao ginecologista ou ao dentista que se desmarcam a pretexto de qualquer impossibilidade de agenda, as viagens de férias que se transferem para o imaginário de um programa assistido pela televisão, ou, na pior das hipóteses, o bife de alcatra ou do lombo que é substituído pelo fígado de porco adornado de cebolada, as t-shirts de marca que se vêem substituídas pelas suas homólogas compradas na feira de domingo de manhã, os cêntimos recontados que se empilham disfarçadamente no balcão da pastelaria para pagar o café que nos há-de tirar o sono mais à noitinha, precisamente quando aproveitamos a insónia para conjugar os dias que faltam no mês com os magros euros que dificilmente chegarão para cobrir as despesas correntes. Um sufoco. Que o diga quem não tiver vergonha, como o vizinho empresário da construção que, por falta de empreitadas, decidiu comprar o passe de metro e juntar-se, manhã cedíssimo, aos inúmeros utentes do mesmo, engrossando o número daqueles que vêem, de dia para dia, crescer o contingente os pedintes.

terça-feira, junho 24, 2008

O segredo bem guardado de Bob Proctor

Está garantido. 350 mil portugueses compraram o livro de auto-ajuda O segredo, de Bob Proctor – em menos de um ano –, e 6 mil assistiram, no Pavilhão Atlântico, à sua palestra, no passado dia 18. A julgar pelos números, e considerando que a mensagem foi adequadamente assimilada, o nosso futuro, nas próximas décadas, só pode estar garantido. É que se trata de muita gente! Não há razões, portanto, para não estarmos optimistas. Pode o governo cair de podre (ou simplesmente por efeito da lei da gravidade política), pode o preço dos combustíveis subir para 200 dólares o barril, podem os grupos terroristas islâmicos atentar à vontade contra a integridade ideológica da civilização ocidental, pode o Benfica perder mais dez ligas consecutivas, nada disso vai certamente desviar-nos, um milímetro que seja, da desejada convergência ao pelotão da frente dos mais ricos países da Europa a 27. É tão certo como eu me chamar José. Ou mesmo mais certo ainda. Basta para isso que os recém iluminados desatem a ser bem-sucedidos naquilo que obviamente mais desejam: ser bem-sucedidos financeiramente e obter mais riqueza material. Pois o que lhes falta são euros. Euros e mais euros. O resto – o amor, a saúde ou a vida espiritual, virão por acréscimo. E se não vierem, pelo menos a cota parte mais substancial da felicidade está garantida. E isso é o que importa.
A fórmula mágica do sucesso, ancorada nas leis da vibração e da atracção (a chave do segredo), está agora ao alcance de de 3.5% da população de Portugal. É esta percentagem de portugueses que, de agora em diante, estará apta a fazer aquilo que historicamente nunca foi capaz, isto é, transformar pensamento em acção. Basta seguir o lema “peça, acredite e receba”. Até há bem pouco tempo, sabiamos apenas conjugar o primeiro dos três verbos. Acreditar estava para além das nossas forças e receber muito para lá das nossas possibilidades. Tratava-se de uma missão verdadeiramente impossível. De agora em diante, não. Teremos o mundo a nossos pés. Já não precisaremos mais de fumar o ópio do futebol, snifar a cocaína de fátima ou beber até ao fundo o cálice do fado. Bem hajas, Bob Proctor. À tua sáude! À nossa! Mil obrigados por tudo.

segunda-feira, junho 23, 2008

Dias felizes com e sem lágrimas

O pretexto pode ser um qualquer, desde que o resultado seja o de reunir um conjunto de amigos. No caso foi o de ir depositar as cinzas da dona Rita no cemitério de uma pequena aldeia da Beira-baixa – o Rosmaninhal. Situada a leste de paraíso nenhum (Castelo Branco) e a oeste de um inferno obsoleto (Espanha), a aldeia é tipicamente raiana, lusa no orgulho e na simplicidade.
Composto por catorze elementos, o grupo era homogéneo e coeso: dez adultos (cinco fêmeas e cinco machos) e quatro crianças (quatro rapazes dos dois aos dezasseis anos). Se não fosse o caso de se tratar de seres humanos, poder-se-ia designá-lo pela matilha do Rosmaninhal, tal o modo como se movimentavam e interagiam, quer por afinidades consanguíneas quer por afinidades electivas.
O grupo do Rosmaninhal – assim baptizado – assentou acampamento no hotel Astória, em Monfortinho, que se recomenda, em especial pela arquitectura ao gosto do estado novo. A vila ostenta ainda uma espécie de grandeza de antigamente, exibida sobretudo na decadência de alguns edifícios a que nem o dinheiro nem o bom gosto de restauração bafejaram com melhor sorte. As excepções são as afamadas termas e os hoteis tomados ao cuidado da exploração turística do grupo Espírito Santo.
Os três dias de estadia foram outros tantos de puro gozo dos sentidos: o cheiro da tília, da flor de laranjeira, o sabor da laranja acabada de apanhar, da limonada preparada na hora e do bolo de mel encantado; o bafo cálido da brisa pré-estival; o trinado dos “pintelheiros” e o castanholar das cegonhas; e a paisagem onde o olhar sossega e aspira à eternidade instantânea. As horas, essas passaram-se entre aperitivos tomados à beira do rio Erges ao entardecer, entre almoços e jantares a puxar à conversa fraternal, entre demoradas braçadas na piscina, entre o lanche degustado na esplanada do hotel, entre raquetadas de ping-pong e tacadas de snooker. Houve tempo ainda para uma saltada à cidade espanhola de Alcântara, alcantilada num cume que se ergue para lá da imponente ponte sobre o Tejo, mandada construir pelo imperador Trajano, nos idos da era romana. E no regresso, o fingimento de uma saudade do Portugal profundo que nos comove sem nos comover deveras.
A última nota desta viagem de amizade vai inteirinha para o Rosmaninhal. Terra circunscrita na divisão administrativa beirã, a aldeia do Rosmaninhal tem contudo uma alma alentejana, tal a vastidão da planura que se estende ao olhar alcandorado do adro da Igreja Matriz. Melhor que ninguém descreveu-a Orlando Ribeiro, em 1944. Escutemo-lo (o efeito só se capta se o trecho for lido em voz alta):

«É uma aldeia enorme, antiga vila, de largas ruas e casas pobres, habitada por jornaleiros e alguns senhores que, sendo grandes possuidores de terra, não renunciaram à vida primitiva da lavoura. Do alto da igreja, a vista abrange uma área enorme de seara e montado, que demora entre o Tejo e o Erges, e alcança, passado o vinco destes rios, uma Espanha igualmente desolada. Trigo, centeio, pasto, coutos, arraiais, rebanhos e, nos matagais abandonados anos a fio, caça que pulula entre estevas e giestas. Também a estes maninhos chegam os serranos da Estrela a invernar, com rebanhos chocalhantes de ovelhas negras. O aspecto da região é extremamente rústico e isolado, uma espécie de Alentejo mais arcaico onde a lavoura rotineira mal conhece as inovações que são já a regra desta província. Uma gente de temperamento franco e hospitaleiro, mas rude e altivo, criada à lei da vida solta e dos horizontes largos, uma terra infinita que guarda nas entranhas esperanças e castigos, onde se embebem os olhos que o beirão verdadeiro costuma levantar mais alto.»

Conheçamos também o hino que, mesmo não sendo da alegria, será porventura do contentamento:

HINO DO ROSMANINHAL
Ó Rosmaninhal, terra linda onde eu nasci.
Outra assim igual, tão bonita nunca vi.
O meu coração vai nesta canção,
Vai nela o amor que eu sinto por ti.

Que paz bendita este cantinho,
Terra banhada de Rosmaninho.
Aldeia querida, minha fé, meu doce lar,
tua luz na minha vida, chama eterna a brilhar.

O sol dourado teus tesouros beija.
O mundo inteiro chora de inveja.
Porque afinal, o sol é teu namorado,
Meu belo torrão natal, meu belo cantinho amado


Para saber mais sobre o Rosmaninhal, consultar o endereço:
http://rosmaninhal.no.sapo.pt/index.htm

Uma história feliz a repetir. Assim se crie a oportunidade. Aposto em como se vai repetir. Brevemente. Como diz o poeta: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. Pois então que nasça.
(Dedicado ao amigo Xico)

“A vida está pelas horas da morte”

“A vida está pelas horas da morte”, respondia minha mãe à pergunta da comadre – “Ó Idalina, como vai a vida?” Isto passava-se na segunda metade dos anos setenta do século passado, quando a crise do petróleo, desencadeada em 1973 e agudizada pelos desmandos governativos do PREC, tinha como reflexo uma inflação que a cada dia galopava desenfreadamente. A evidência da carestia de vida manifestava-se nas calças puídas, à boca de sino, que o jovem que fui usava durante toda a santa semana, mas também, entre outros pormenores, nas carcaças ressequidas e lubribicadas com margarina que a boca mastigava com saudades do fiambrino, e que o parco dinheiro não chegava para comprar. No entanto, era feliz. Ainda a cadela da mortalidade não me havia ladrado aos calcanhares.
Nunca nos refazemos da morte de um ente querido. Vamo-nos habituando à ideia, ou melhor, afastamo-la do horizonte imediato da nossa consciência, empurrando-a para os cantos mais recônditos da memória, e aí a deixamos, adormecida, na semi-obscuridade da mente. Na melhor das hipóteses, sublimamo-la, como referem os freudianos. Mas a que preço? Cada qual saberá o quanto lhe custa. Quando menos esperamos, eis que um lampejo irrompe, súbito e fulminante, vindo não se sabe nem de onde nem porquê. Simplesmente acontece. A mim acontece-me raramente por imagens. É sobretudo acusticamente que, do fundo da memória, sou presenteado por fragmentos de vozes. “A vida está pelas horas da morte.” Eis o modo privilegiado como o ser se me revela! E eu aceito-o como se de uma dádiva dos deuses se tratasse. Presto-lhes culto por isso. Para a próxima far-lhes-ei uma libação, e oferecer-lhes-ei as primícias do que lhes sacrificar. Aprendo a ser pagão e a dizer sim à vida que por vezes nos fala do passado.

quinta-feira, junho 19, 2008

Quando a esmola é grande, o pobre desconfia

Quando a esmola é grande, o pobre desconfia

“Estamos todos de parabéns.” Foi assim que a Ministra da Educação concluiu o seu comentário aos resultados que os alunos dos 4º e 6º anos obtiveram nas provas de aferição a Matemática e a Língua Portuguesa.
De um ano para o outro, os nossos alunos que frequentaram os dois ciclos de ensino, não só inverteram a tendência de regressão, verificada no ano anterior, como apresentaram níveis de sucesso verdadeiramente dignos de pequenos campeões em matéria de aprendizagem. Em qualquer canto do mundo, resultados positivos da ordem dos 90% (respectivamente 90,8 e 89,5 por cento, nos 1º e 2º ciclos) a Matemática, e da ordem dos 80% a 90% (respectivamente 81,8 e 93,4 por cento, nos 1º e 2º ciclos) a Língua Portuguesa, é de deixar qualquer mortal embasbacado perante tal manifestação de sapiência. Mas há mais: no que diz respeito à excelência ou quase – muito bom e bom – a Matemática regista 34,5% (4º ano) e 32,9% (6º ano), enquanto a Língua Portuguesa obtém 38.9% (4º ano) e 38,8% (6º ano). Convenhamos que é de ficar embevecido com tamanha aproximação à divindade. Não será de estranhar que, no intervalo de uma geração, vejamos os nossos problemas resolvidos em matéria de atraso económico estrutural e não só. Quem disser o contrário, está certamente de má fé, ou então faz parte da geração dos estúpidos que não consegue enxergar nem sequer o óbvio. E para os incrédulos, os que farejam embustes e passes de mágica em cada milagre, descancem as meninges e deixem-se de criticismos de meia-tijela. Pois foi a própria ministra, doutíssima em estatísticas e outras ciências de rigor, quem declarou, a propósito, “não há milagres”.
Todavia, o melhor é ouvir também a sabedoria do povo, o qual, lapidarmente, sentencia: “Quando a esmola é grande, o pobre desconfia.” E não é que desconfia mesmo? Caberá na cabeça de alguém esta reviravolta nos resultados escolares, assim do pé para a mão? Não terão razão os representantes maiores das Sociedades Portuguesa de Matemática e Associação de Professores de Português ao afirmar que as provas de aferição nada mais aferem que não seja o facilitismo e o trabalho para as estatísticas?
Segundo a ministra, estes resultados são a consequência das medidas tomadas pela tutela. “É possível melhorar resultados escolares com trabalho continuado e permanentemente orientados para objectivos claros. É isso que temos andado a fazer desde 2005.” Mas será possível que, em matéria educativa, os resultados aparecem assim de um ano para o outro, sem milagres? Não é unânime a opinião dos especialistas no assunto quando afirmam que em Educação as medidas e as reformas só têm consequências a mádio e a longo prazo? E não sabem disso os pais e os professores? Tanta falta de bom senso, digo-vos eu, é não só exasperante mas começa a cheirar mal. Para terminar – que já estou a ficar indisposto com tanta cretinice exibida por parte dos responsáveis máximos do ensino em Portugal – qual a sustentabilidade argumentativa do que disse a ministra em causa, em defesa da autenticidade dos resultados? Afirmou: “A prova de que não são fáceis é que há uma percentagem muito reduzida de alunos capazes de resolver o teste na sua totalidade”. Ó santa paciência! Mas que falácia mais descabida! Que prova é essa? Prova dos nove ou quê? Respondo-lhe já, mesmo sabendo que não me ouve ou lê. Basta para isso, fazer um teste com uma ou duas questões, de quotação reduzida, de grau de dificuldade acima da mediocridade. É fácil, Sra Ministra. Ou não foi assim que procederam os professores responsáveis pela elaboração da prova, segundo indicações oriundas da tutela?

segunda-feira, junho 02, 2008

da crise e da crítica, etc.

Crise é hoje a palavra mais falada e escutada em Portugal. E aposto que a mais escrita e lida. Nos jornais e revistas não se escreve e se lê outra coisa, mesmo que a palavra lá não figure. É preciso ler nas entrelinhas. Escreve-se a propósito da crise ambiental, da crise dos combustíveis, da crise da banca, da crise imobiliária, da crise dos valores e da educação, que o serviço nacional de saúde está em crise, que a crise está para durar, crise para aqui e crise para acolá. Os noticiários televisivos, para além das desgraças alheias do sangue suor e lágrimas, afinam pelo mesmo diapasão. As conversas de ocasião, que o cidadão comum e anónimo vai mantendo para se sentir vivo, para além do tempo que não há meio de aquecer e enxugar, reproduz a ladainha: “isto é que vai uma crise!”. Sinal dos tempos ou sintoma de uma modernidade moribunda em busca dos seus sete palmos de terra. Mesmo o Governo, habitualmente formatado por um tom mais optimista e pró-activo, decidiu que era hora de introduzir no seu discurso a palavra crise. Se não podes com eles, junta-te a eles.
Ora, não há pior coisa do que encarar uma crise a partir de preconceitos e de ideias feitas. Como dizia Hannah Arendt, tal procedimento só contribui para nada compreender e para acentuar o fenómeno. E este deve ser perspectivado como uma oportunidade para o analisar criticamente. Não é por acaso que as palavras crise e crítica são etimologicamente aparentadas, como se de irmãs gémeas se tratasse, ou melhor, são as duas faces de uma mesma moeda. Pena é que pouca gente dê por isso, e se limite a repetir os mesmos lugares comuns ad nauseam. Em vez de se falar tanto de crise, se calhar melhor seria fazer uso da crítica. Mas para isso era preciso que não estivéssemos tão conformados e nos sentíssemos mais vivos.

educação: uma crise que vem de longe

Em cumprimento do que prometi, volto ao assunto de que me ocupei há uns tempos atrás. Trata-se do ensaio que Hannah Arendt publicou no final do anos cinquenta do século passado – A crise na educação. Porquê “crise na educação” e não “crise da educação”? Aparentemente, a diferença é mínima e de somenos importância. As frases apenas se distinguem pelo diferente recurso às contracções das proposições com os artigos definidos “em+a” e “de+a”. O artigo é o mesmo e define aquilo que está em questão, o objecto ou o assunto – educação. O que difere é a proposição. Esta diferença é decisiva para a compreensão do sentido da crise, no modo como esta se relaciona com a educação. Falar de crise da educação não é o mesmo que falar de crise na educação. No primeiro caso, a relação de pertença da crise à educação é imediata e essencial, isto é, esta pertence àquela como seu momento originário de manifestação, sendo a sua causa primeira e motor principal do seu processo de desenvolvimento. Ora, não é assim que Hannah Arendt relaciona os dois conceitos. Para a filósofa, é na educação que a crise se manifesta por último. Ela é o “topos” onde a crise se vai inscrever, após um longo processo disseminação, primeiro pela política e posteriormente pela área pré-política da educação. A crise só se manifesta na educação num período particularmente crítico da modernidade (no pós guerra), depois de três séculos de erosão progressiva dos pilares em que o mundo tradicional assentava – tradição, religião e autoridade. A crise tem fundamentalmente um rosto, que é o da modernidade, a qual se iniciou no período pós-renascentista, no século XVII. Descartes, o arauto da dúvida metódica, o protagonista da crítica sistemática, vai-se constituir, ainda que involuntariamente, como o propulsor de um movimento corrosivo da permanência e continuidade do mundo tradicional, minando os seus alicerces.
A crise da educação é, acima de tudo, uma crise que se manifesta na educação, pois trata-se de uma consequência da crise geral no mundo moderno, cujas primeiras manifestações surgiram sob a forma da crise da autoridade e da crise da tradição.
É este o sentido das duas passagens que escolhi do texto de Hannah Arendt – A crise na educação –, o qual faz parte de uma colectânea de artigos publicados há dois anos pela Relógio d’Água, com o título Entre o Passado e o Futuro.
"A crise de autoridade na educação está intimamente ligada com a crise da tradição, isto é, com a crise da nossa atitude face a tudo o que é passado." (p. 203)
"No mundo moderno, o problema da educação resulta pois do facto de, pela sua própria natureza, a educação não poder fazer economia nem da autoridade nem da tradição, sendo que, no entanto, essa mesma educação se deve efectuar num mundo que deixou de ser estruturado pela autoridade e unido pela tradição." (p. 205)

sábado, maio 17, 2008

semana azarada

Para o Governo, esta semana não veio mesmo nada a calhar. O que calhava, era riscá-la do calendário. Afinal de contas, uma semana a menos nem aquece nem arrefece.
Numa semana em que o (super)ministro das finanças, Teixeira dos Santos, se viu obrigado, publicamente, a rever em baixa as previsões do crescimento económico – de 2,2% para 1,5% - de 2008, José Sócrates viu-se confrontado com o “lamentável” episódio da “fumaça” no avião fretado da TAP, aquando do voo de Lisboa para Caracas. É caso para dizer: “foi do caracas!”. Ou então: “foi só fumaça!”
Em relação ao primeiro episódio, apenas um comentário. A veia panglossiana dos membros do Governo, a sua profissão de fé no “melhor dos mundos possíveis”, acabou por revelar aquilo a que sempre cheirou: a esturro.
Quanto ao segundo episódio, somente uma observação. Mais lamentável do que a violação de uma lei aprovada recentemente pelo Governo, protagonizada por alguns membros do mesmo – em que se incluem o primeiro ministro e o ministro da economia – foram as desculpas esfarrapadas e as justificações inconsistentes de José Sócrates. Desta vez não lhe ocorreu evocar a célebre ética da responsabilidade, que certamente desconhece. Ou então era oportuno. Provavelmente, ambas as coisas.

terça-feira, maio 13, 2008

erros involuntários

Todos nós conhecemos pessoas assim. Pessoas que, mesmo depois de terem sido corrigidas, um sem número de vezes, a propósito do modo como pronunciam uma palavra, continuam ainda assim a usá-la na primitiva forma como a pronunciavam, porventura condicionadas por uma espécie de “a priori” mental, como se a ligação sináptica originária determinasse a aprendizagem do erro, no momento em que a palavra pela primeira vez se incrustou sonoramente nos arcanos do cérebro.
Pronunciar “monopausa”, “póssamos” ou “quaisqueres” parece que faz parte do ADN línguístico de algumas pessoas. Existe, creio, uma certa predisposição para o erro involuntário, a que nenhum de nós está imune.
Aconteceu-me descobrir, recentemente, que durante dois anos, errei sistemática e involuntariamente no emprego que fiz da expressão “a crise da educação”, quer na forma oral quer na forma escrita. Este erro talvez seja justificável, mas ainda assim incomoda. Na aparência, o erro não existe. Mas é real, tão real como os cigarros que consumo enquanto escrevo. No contexto em que usei a dita expressão, deveria ter usado outra : “a crise na educação”. Passo a explicar.
A crise na educação é um ensaio escrito pela filósofa Hannah Arendt – insisto em a rotular como tal, apesar da própria ter recusado o nome e preferir designar-se a si mesma como pensadora – em meados da década de cinquenta do século passado. Publicado pela primeira vez em 1957, com o título The crisis in Education, numa revista americana da especialidade (de que saiu, no mesmo ano, uma versão em alemão), o texto voltou ao prelo, inserido no livro intitulado Between Past and Future: Six Exercices in Political Thought, de 1961. Em 1972 saiu a tradução francesa deste livro com o título La Crise de la Culture, onde pontificava, entre os restantes, o ensaio La crise de l’éducation. A tradução portuguesa, levada a cabo pela filósofa portuguesa Olga Pombo, respeita o original, felizmente. Preto no branco, A crise na educação é o que aparece escrito na página 183 de Entre o Passado e o Futuro, título publicado pela “Relógio D’Água”, em Fevereiro de 2006. Ao longo de dois anos li este título dezenas de vezes, sem exagero. E a ele me referi outras dezenas, no mínimo, sempre a cometer o mesmo erro. Não sei porque carga de água, sempre me referi a este texto com a expressão “crise da educação”. Parace preciosismo e mesquinhez apontar a diferença. Mas não é. Nem pouco mais ou menos. Voltarei a assunto para explicar porquê.

sábado, maio 10, 2008

Walter Benjamin revisitado por Hannah Arendt

O filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) viveu uma existência insólita, singular e profundamente marcada pelo signo da catástrofe. Hannah Arendt (1906-1975), no seu livro Homens em tempos sombrios, deixa-nos um testemunho apaixonado e uma reflexão ímpar desse “anjo da história”, ao mesmo tempo coleccionador de escombros e náufrago da modernidade. Judeu por tradição familiar – numa época em que na Europa e sobretudo na Alemanha era um risco ser judeu – Walter Benjamin foi um escritor contemplado pela “glória póstuma”. É dele a tese: “A verdadeira imagem do passado é fugidia” - Filosofia da História – ao que acrescenta a escritora, também ela judia e igualmente emigrante para fugir às garras do nazismo: “e só o flâneur, na sua errância descuidada, consegue captar a mensagem”.
Hannah Arendt traça dele um retrato único em termos de simpatia intelectual, só possível a quem compreende o outro em razão de afinidades profundas e inconfessadas. O melhor é deixá-la falar e silenciarmo-nos:
“A glória póstuma é um dos artigos mais raros e menos procurados da Fama, embora seja menos arbitrária e muitas vezes mais sólida do que as outras formas, já que raramente consagra a mercadoria pura e simples. (...) Esta glória póstuma, nem comercial nem rentável, vem agora consagrar na Alemanha o nome e a obra de Walter Benjamin, escritor judeu alemão que ficou conhecido, mas não famoso, pela sua colaboração em revistas e secções literárias de diversos jornais ao longo de um período infeliz de dez anos, antes da tomada do poder por Hitler e da sua própria emigração. (...) Para descrever adequadamente a sua obra, e para o descrever a ele próprio como autor, no nosso quadro de referência habitual, teríamos de fazer um grande número de afirmações negativas, como por exemplo: a sua erudição era grande, mas ele não foi um erudito; o seu trabalho tinha a ver com os textos e a sua interpretação, mas não era filólogo; sentia-se extremamente atrído, não pela religião, mas pela teologia e pelo tipo de interpretação teológica segundo o qual o próprio texto é sagrado, mas não era teólogo e não manifestou especial interesse pela Bíblia; era um escritor nato, mas a sua maior ambição foi criar uma obra exclusivamente composta de citações; foi o primeiro alemão a traduzir Proust (em colaboração com Franz Hessel) e Saint-John Perse, e já antes disso traduzira os Tableaux Parisiens, de Baudelaire, mas não era tradutor; fazia recensões críticas de livros e escreveu um certo número de ensaios sobre escritores vivos e mortos, mas não era crítico literário; escreveu um livro acerca do barroco alemão e deixou inacabado um enorme estudo sobre o século XIX francês, mas não era historiador nem historiador da literatura; tentarei mostrar que ele pensava poeticamente, mas não era poeta nem filósofo. (...) A 26 de Setembro de 1940, Walter Benjamin, que se preparava para emigrar para a América, suicidou-se na fronteira franco-espanhola. Várias razões o levaram a isso. A Gestapo confiscara o seu apartamento em Paris, que continha a sua biblioteca (conseguira fazer sair da Alemanha ‘a metade mais importante’) e muitos dos seus manuscritos (...). Como iria ele viver sem a sua biblioteca, como podia ganhar a vida sem a vasta colecção de citações e excertos que se encontrava entre os seus manuscritos? Além disso, nada o atría na América, onde, conforme costumava dizer, provavelmente ninguém saberia o que fazer dele além de o passearem pelo país inteiro, exibindo-o como o ‘último europeu’. Mas a causa imediata do suícidio de Benjamin foi o azar verdadeiramente excepcional. (...) Na medida em que o passado se transmite sob a forma de tradição, possui autoridade; na medida em que a autoridade se apresenta historicamente, converte-se em tradição. Walter Benjamin sabia que a ruptura com a tradição e a perda de autoridade que se verificaram no seu tempo eram irreparáveis, e concluiu daí que era preciso descobrir novas formas de relações com o passado.” Para Walter Benjamin os seres humanos são anjos da história, no sentido literal do termo. Angelos significa mensageiro de um mundo que é texto incrito no tecido da tradição e da história. A nosso essência é a de dar testemunho do passado. Enquanto herdeiros da tradição que, na modernidade em ruínas, já se não transmite numa continuidade sem rupturas, devemos transformar-nos em “pescadores de pérolas” que se cristalizaram em “citações”.

segunda-feira, maio 05, 2008

Segundo o Diário de Notícias, na sua edição online de hoje, Portugal está na cauda da Europa no que diz respeito à qualidade democrática. No “index da democracia quotidiana”, entre 25 países, a Demos – uma ONG – coloca-nos no 21º posto. A classificação, longe de ser honrosa, não espanta ninguém, estando mesmo ao nível dos resultados obtidos nos festivais eurovisão da canção. As conclusões do estudo são deveres interessantes. Revelam que, em termos formais (eleições regulares), estamos a meio da tabela – 14º lugar. O pior é quando se têm em conta critérios de carácter mais substantivo, como a participação cívica e a “relação familiar”. Aqui é que a porca torce o rabo. O estudo revela também que a qualidade democrática, no mapa geográfico da Europa, vai decrescendo de norte para sul. É com determinismos destes que nos safamos. Apesar de tudo, mesmo na cauda, ainda pertencemos ao universo europeu, apesar de Marrocos ser mesmo ali, ao virar da esquina.
Na semana passada, o Presidente da República criticou os jovens pelo sua falta de participação e interesse nos assuntos políticos. A responsabilidade por este afastamento – ou incultura política –, segundo Cavaco e Silva, é dos partidos políticos. Tudo isto foi dito na sessão solene comemorativa do 25 de Abril. Da ala esquerda à ala direita do espectro político, inúmeras personalidades fizeram notar – e bem – que o Presidente da República não está isento de responsabilidades. No entanto, o tom geral de desresponsabilização dos jovens, no que concerne à participação cívica e política, em nada contribui para alterar a qualidade democrática dos portugueses no futuro. O mais preocupante, do meu ponto de vista, é o clima de anestesia e de conformismo que as atitudes dos estudantes de hoje manifestam. O conformismo social é um sintoma de anemia democrática e uma posta aberta para um totalitarismo disfarçado de democracia meramente formal.Há uma semana, a ministra da educação, Maria de Lurdes Rodrigues afirmou que “os chumbos são um mecanismo retrógado e antigo” e que "os sistemas de ensino moderno tentaram substituir um sistema chamado ‘chumbo’ por outros instrumentos chamados ‘mais trabalho’”. E setenciou: "Facilitismo é chumbar. Rigor e exigência é fazer com que todos aprendam”. Uma pergunta: a que ensino moderno se refere? Não é certamente aos modelos da pedagogia moderna, alicerçados numa política eduquesa, que os “gurus” da 5 de Outubro se têm esforçado por impôr à prática educativa contemporânea, nas últimas décadas. Porque se assim é, então a senhora ministra continua a falar do que não entende, a desfiar um rosário de retórica sem consistência, e a tentar conjugar o inconjugável – o modelo finlandês com uma modelo de avaliação de professores chilena e com uma realidade social portuguesa. Ninguém nega que o modelo educativo finlandês seja óptimo. Sobretudo para os finlandeses. Como não se pode negar que o modelo de avaliação de professores, ao que parece importado do Chile, é uma farsa. Uma farsa que nenhum Gil Vicente quis assinar por baixo. E que a realidade societal do Portugal contemporâneo é uma manta de retalhos, retalhada em franjas de pobreza cada vez maiores e em pontos de cruz familiares descosidos. Há que entender duas coisas do discurso da ministra da educação: primeiro, trata-se de um recado inequívoco aos professores, que no próximo ano lectivo terão de avaliar os alunos em conjugação com a sua própria avaliação; segundo, o imperativo é economicista e a lógica á a da banal aritmética de merceeiro, conforme se pode despreender das palavras que se seguem: “Se o Estado gasta por ano três mil euros com um aluno, quando ele repete vai custar seis mil no ano seguinte”. Como dizia o outro – elementar meu caro...

terça-feira, abril 22, 2008

Segundo consta, Manuela Ferreira Leite decidiu avançar como candidata à liderança de PSD e, consequentemente, a líder governativa do país, em 2009. É caso para dizer: temos homem! Não pretendo, deste modo, escarnecer a pessoa nem tão pouco apoucar os seus dotes femininos. O que pretendo defender é o seguinte: como política, o seu estilo, a sua postura e o seu perfil são inteiramente masculinos. O que dela se espera é uma política de linha dura, hirta e máscula, um pouco à semelhança, salvaguardadas as devidas diferenças e contextos, de Margaret Thatcher. Neste sentido, a concretizar-se a candidatura e a vitória nas directas do Partido Social Democrata, teremos no futuro um confronto de duas personalidades com algumas semelhanças. A ex-ministra da educação e das finanças e José Sócrates, pelo menos aos olhos da opinião pública, são ambas “personas” crispadas, teimosas e de difícil diálogo. Mas mais do que isso, teremos dois políticos que comungam de uma mesma cartilha ideológica, senão formalmente pelo menos de conteúdo.
Em está em causa, dizem os seus apoiantes, a restauração da credibilidade pública do maior partido de direita. Indiscutível. O discutível é ter a candidata competências suficientes para, por um lado, arregimentar os indispensáveis consensos do seu próprio partido, e, por outro lado, se constituir como uma alternativa viável à política do actual primeiro ministro.
Proponho um exercício de imaginação. Num cenário de condicionais ou de mundos possíveis, suponhamos que Manuela Ferreira Leite vence as legislativas de 2009. O que nos espera? Certamente, mais do mesmo, isto é, um processo de continuidade de receitas neoliberais. Contenção salarial – a repetida exigência do sacríficio em prol da sustentabilidade financeira –, emagrecimento do estado social, flexibilidade das leis laborais, privatização da saúde, desinvestimento na educação, etc. Tudo isto orquestrado sob a égide de uma comunicação social que se limita a fabricar consensos em torno do argumento da inevitabilidade e da via única. Pode ser que me engane...

quarta-feira, abril 16, 2008

a minha pátria é a língua portuguesa

O Acordo Ortográfico está em discussão. O intenso debate de que tem sido objecto revela o óbvio – a existência de um desacordo profundo e insuperável. Não se esperava outra coisa.
Em nome da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), os defensores do acordo exibem argumentos de natureza política. Sustentam que o acordo é bom para difundir no mundo uma língua falada por cerca de 200 milhões de pessoas, para lhe conferir poder na luta pela sobrevivência à escala mundial, para facilitar e potenciar os negócios entre os países que se expressam na língua de Camões, contribuíndo para o enriquecimento destes puxados a reboque por essa potência emergente que dá pelo nome de Brasil. Este argumento é análogo aos que normalmente são utilizados pelos acérrimos adeptos da globalização de cariz neoliberal. A maximização da riqueza e do bem estar materiais justifica a morte dos particularismos e das idiossincrasias obsoletas e terceiro-mundistas. A tónica está no desprezo com que olham para as especificidades locais e culturais, considerando-as como minudências arcaicas que um darwinismo exacerbado não contempla no rol dos organismos mais aptos à sobrevivência. A morte de consoantes intervocálicas é celebrada como um hino ao progresso.
Confesso que me sinto mais próximo dos críticos do acordo, que comungo de grande parte dos argumentos com que justificam a sua tese, mesmo que esses argumentos se reduzam à expressão de um egoísmo pessoal, do género “como é que eu me vou adaptar?”. De resto, tenho horror a palavras como “seção”, “ótimo” e “úmido”. Abomino-as, pronto. Mas sobretudo acho este acordo vai enfraquecer de facto a língua enquanto ser vivo. Não é a biodiversidade desejável do ponto de vista da saúde planetária? Não é a multitude de formas e de espécies que contribui para a riqueza da bioesfera? Não é a diversidade orgânica que possibilita a selecção (nunca hei-de escrever seleção) natural?
“A minha pátria é a língua portuguesa”, afirmou um dia Fernando Pessoa. Quase apostava a vida em como o poeta não pretendia fazer nenhuma afirmação de índole política ou expensionista, mas tão somente afirmar a diferença e o imenso amor por esse organismo que se chama língua lusa.

há ganhar e ganhar, perder e perder

Ontem, ao fim do dia, conheceram-se os resultados. A esmagadora maioria das escolas do país ratificou, em plenário, o “memorando de entendimento” estabelecido entre a Plataforma de Sindicatos de Professores e o Ministério da Educação. Passando por cima da nomenclatura e da hipotética distinção semântica entre entendimento e acordo – que Santana Castilho refere num artigo publicado no Público de hoje -, os sindicatos voltaram a cantar vitória. As perguntas que se impõem são? Em que se traduziu e se traduzirá esta proclamada vitória? Seguramente, em derrota não assumida. O que se ganhou com o entendimento? Ninharias. E por ninharias se canta vitória, que soa a canto do cisne. O que se perdeu? Tudo, ou quase tudo. Perdeu-se a oportunidade de capitalizar a força demonstrada pelos professores, nos idos de Março. Perdeu-se o momento oportuno para reclamar a dignidade profissional longo tempo espezinhada por uma tutela sem escrúpulos. E perdeu-se sobretudo a força necessária para lutar por uma escola mais justa e de melhor qualidade. Os dados estavam lançados. A jogada era de risco, sabia-se. Mas o adversário estava de rastos, sem energia. Cabia aos sindicatos ter a coragem de assumir o risco justificado e de – lendo correctamente a situação política – não se acovardarem, jogarem a cartada decisiva e certa, não cedendo a chantagens e a interesses mesquinhos. Afinal, pouco tinham a perder e muito a ganhar. É por estas e por outras que assistimos à agonia dos sindicatos.
Mais atentemos nas palavras de quem merece ser ouvido (Santana Castilho):

“Comecemos por uma questão semântica: entendimento e acordo são vocábulos sem difeerenças, do ponto de vista da significação, que justifiquem o esforço da Plataforma Sindical para os distinguir. Vão a um bom dicionário. No contexto que "aproximou" sindicatos e ministério, são sinónimos. Mas se essa fosse a questão, então capitular dirimia o conflito. E não estou a ser irónico. Voltem a um bom dicionário.
Posto isto, passemos ao que importa. Ministério e sindicatos acertaram, concertaram sob determinadas condições. No fim, os sindicatos cantaram vitória. Permitam-me que invoque alguns argumentos para desejar que os sindicatos não voltem a ter outra vitória como esta.
A actuação política deste Governo e desta ministra produziu diplomas (estatuto de carreira, avaliação do desempenho, gestão das escolas e estatuto do aluno) que envergonham aquisições civilizacionais mínimas da nossa sociedade. A rede propagandística que montaram procurou denegrir os professores por forma antes inimaginável. Cortar, vergar, fechar foram desígnios que os obcecaram. Reduziram salários e escravizaram com trabalho inútil. Burocratizaram criminosamente. Secaram o interior, fechando escolas aos milhares. Manipularam estatísticas. Abandalharam o ensino com a ânsia de diminuir o insucesso. Chamaram profissional a uma espécie de ensino cuja missão é reter na escola, a qualquer preço, os jovens que a abandonavam precocemente. Contrataram crianças para promover produtos inúteis. Aliciaram pais com a mistificaação da escola a tempo inteiro (que sociedade é esta em que os pais não têm tempo para estar com os filhos? Em que crianças passam 39 horas por semana encerradas numa escola e se aponta como progresso reproduzir o esquema no secundário, mas elevando a fasquia para as 50 horas?). Foram desumanos com professores nas vascas da morte e usaram e deitaram fora milhares de professores doentes (depois de garantir no Parlamento que não o fariam). Promoveram a maior iniquidade de que guardo recordação com o deplorável concurso de titulares. Enganaram miseravelmente os jovens candidatos a professores e avacalharam as instituições de ensino superior com a prova de acesso à profissão. Perseguiram. Chamaram a polícia. Incitaram e premiaram a bufaria. Desrespeitaram impunemente a lei que eles próprios produziram. Driblaram leis fundamentais do país. Com grande despudor político, passaram sem mossa por sucessivas condenações em tribunais. Fizeram da imposição norma e desrespeitaram continuadamente a negociação sindical. Reduziram a metade os gastos com a Educação, por referência ao PIB. No que era essencial, no que aumentaria a qualidade do ensino, não tocaram, a não ser, uma vez mais, para cortar e diminuir a exigência e castrar o que faz pensar e questionar.
A questão que se põe é esta: por que razão esta gente, que tanto mal tem feito ao país e à Escola, que odeia os professores, que espezinhou qualquer discussão ou concertação séria, que permaneceu irredutível na sua arrogância do quero, posso e mando, de repente, decidiu ‘aproximar-se’ dos sindicatos? A resposta é evidente: porque os 100.000 professores na rua, a 8 de Março, provocaram danos. Porque a campanha eleitoral começou a reparar os estragos para garantir mais quatro anos.
O tempo e a oportunidade política da plataforma sindical aconselhava uma firmeza que claudicou. Porque quem estava em posição de impor contemporizou. Porque de um dia para o outro se esqueceram as exigências da véspera. Porque quem demandou a lei em tribunal pactuou com uma farsa legal. Porque quem acusou de chantagem acabou a negociar com o chantagista. Porque quem teve nos braços uma unidade de professores nunca vista pensou pouco sobre os riscos de a pôr em causa.
É verdade que os sindicatos ganharam uns trocos. Mas o lance não era para trocos. Era para devolução integral: da dignidade perdida. Aqui chegados, permitam-me a achega: pior que isto é não serem capazes de superar isto. E lembrem-se de Pirro, quando agradeceu a felicitação pela vitória: ‘Mais uma vitória como esta e estou perdido’.”