segunda-feira, junho 23, 2008

“A vida está pelas horas da morte”

“A vida está pelas horas da morte”, respondia minha mãe à pergunta da comadre – “Ó Idalina, como vai a vida?” Isto passava-se na segunda metade dos anos setenta do século passado, quando a crise do petróleo, desencadeada em 1973 e agudizada pelos desmandos governativos do PREC, tinha como reflexo uma inflação que a cada dia galopava desenfreadamente. A evidência da carestia de vida manifestava-se nas calças puídas, à boca de sino, que o jovem que fui usava durante toda a santa semana, mas também, entre outros pormenores, nas carcaças ressequidas e lubribicadas com margarina que a boca mastigava com saudades do fiambrino, e que o parco dinheiro não chegava para comprar. No entanto, era feliz. Ainda a cadela da mortalidade não me havia ladrado aos calcanhares.
Nunca nos refazemos da morte de um ente querido. Vamo-nos habituando à ideia, ou melhor, afastamo-la do horizonte imediato da nossa consciência, empurrando-a para os cantos mais recônditos da memória, e aí a deixamos, adormecida, na semi-obscuridade da mente. Na melhor das hipóteses, sublimamo-la, como referem os freudianos. Mas a que preço? Cada qual saberá o quanto lhe custa. Quando menos esperamos, eis que um lampejo irrompe, súbito e fulminante, vindo não se sabe nem de onde nem porquê. Simplesmente acontece. A mim acontece-me raramente por imagens. É sobretudo acusticamente que, do fundo da memória, sou presenteado por fragmentos de vozes. “A vida está pelas horas da morte.” Eis o modo privilegiado como o ser se me revela! E eu aceito-o como se de uma dádiva dos deuses se tratasse. Presto-lhes culto por isso. Para a próxima far-lhes-ei uma libação, e oferecer-lhes-ei as primícias do que lhes sacrificar. Aprendo a ser pagão e a dizer sim à vida que por vezes nos fala do passado.

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