sábado, maio 17, 2008

semana azarada

Para o Governo, esta semana não veio mesmo nada a calhar. O que calhava, era riscá-la do calendário. Afinal de contas, uma semana a menos nem aquece nem arrefece.
Numa semana em que o (super)ministro das finanças, Teixeira dos Santos, se viu obrigado, publicamente, a rever em baixa as previsões do crescimento económico – de 2,2% para 1,5% - de 2008, José Sócrates viu-se confrontado com o “lamentável” episódio da “fumaça” no avião fretado da TAP, aquando do voo de Lisboa para Caracas. É caso para dizer: “foi do caracas!”. Ou então: “foi só fumaça!”
Em relação ao primeiro episódio, apenas um comentário. A veia panglossiana dos membros do Governo, a sua profissão de fé no “melhor dos mundos possíveis”, acabou por revelar aquilo a que sempre cheirou: a esturro.
Quanto ao segundo episódio, somente uma observação. Mais lamentável do que a violação de uma lei aprovada recentemente pelo Governo, protagonizada por alguns membros do mesmo – em que se incluem o primeiro ministro e o ministro da economia – foram as desculpas esfarrapadas e as justificações inconsistentes de José Sócrates. Desta vez não lhe ocorreu evocar a célebre ética da responsabilidade, que certamente desconhece. Ou então era oportuno. Provavelmente, ambas as coisas.

terça-feira, maio 13, 2008

erros involuntários

Todos nós conhecemos pessoas assim. Pessoas que, mesmo depois de terem sido corrigidas, um sem número de vezes, a propósito do modo como pronunciam uma palavra, continuam ainda assim a usá-la na primitiva forma como a pronunciavam, porventura condicionadas por uma espécie de “a priori” mental, como se a ligação sináptica originária determinasse a aprendizagem do erro, no momento em que a palavra pela primeira vez se incrustou sonoramente nos arcanos do cérebro.
Pronunciar “monopausa”, “póssamos” ou “quaisqueres” parece que faz parte do ADN línguístico de algumas pessoas. Existe, creio, uma certa predisposição para o erro involuntário, a que nenhum de nós está imune.
Aconteceu-me descobrir, recentemente, que durante dois anos, errei sistemática e involuntariamente no emprego que fiz da expressão “a crise da educação”, quer na forma oral quer na forma escrita. Este erro talvez seja justificável, mas ainda assim incomoda. Na aparência, o erro não existe. Mas é real, tão real como os cigarros que consumo enquanto escrevo. No contexto em que usei a dita expressão, deveria ter usado outra : “a crise na educação”. Passo a explicar.
A crise na educação é um ensaio escrito pela filósofa Hannah Arendt – insisto em a rotular como tal, apesar da própria ter recusado o nome e preferir designar-se a si mesma como pensadora – em meados da década de cinquenta do século passado. Publicado pela primeira vez em 1957, com o título The crisis in Education, numa revista americana da especialidade (de que saiu, no mesmo ano, uma versão em alemão), o texto voltou ao prelo, inserido no livro intitulado Between Past and Future: Six Exercices in Political Thought, de 1961. Em 1972 saiu a tradução francesa deste livro com o título La Crise de la Culture, onde pontificava, entre os restantes, o ensaio La crise de l’éducation. A tradução portuguesa, levada a cabo pela filósofa portuguesa Olga Pombo, respeita o original, felizmente. Preto no branco, A crise na educação é o que aparece escrito na página 183 de Entre o Passado e o Futuro, título publicado pela “Relógio D’Água”, em Fevereiro de 2006. Ao longo de dois anos li este título dezenas de vezes, sem exagero. E a ele me referi outras dezenas, no mínimo, sempre a cometer o mesmo erro. Não sei porque carga de água, sempre me referi a este texto com a expressão “crise da educação”. Parace preciosismo e mesquinhez apontar a diferença. Mas não é. Nem pouco mais ou menos. Voltarei a assunto para explicar porquê.

sábado, maio 10, 2008

Walter Benjamin revisitado por Hannah Arendt

O filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) viveu uma existência insólita, singular e profundamente marcada pelo signo da catástrofe. Hannah Arendt (1906-1975), no seu livro Homens em tempos sombrios, deixa-nos um testemunho apaixonado e uma reflexão ímpar desse “anjo da história”, ao mesmo tempo coleccionador de escombros e náufrago da modernidade. Judeu por tradição familiar – numa época em que na Europa e sobretudo na Alemanha era um risco ser judeu – Walter Benjamin foi um escritor contemplado pela “glória póstuma”. É dele a tese: “A verdadeira imagem do passado é fugidia” - Filosofia da História – ao que acrescenta a escritora, também ela judia e igualmente emigrante para fugir às garras do nazismo: “e só o flâneur, na sua errância descuidada, consegue captar a mensagem”.
Hannah Arendt traça dele um retrato único em termos de simpatia intelectual, só possível a quem compreende o outro em razão de afinidades profundas e inconfessadas. O melhor é deixá-la falar e silenciarmo-nos:
“A glória póstuma é um dos artigos mais raros e menos procurados da Fama, embora seja menos arbitrária e muitas vezes mais sólida do que as outras formas, já que raramente consagra a mercadoria pura e simples. (...) Esta glória póstuma, nem comercial nem rentável, vem agora consagrar na Alemanha o nome e a obra de Walter Benjamin, escritor judeu alemão que ficou conhecido, mas não famoso, pela sua colaboração em revistas e secções literárias de diversos jornais ao longo de um período infeliz de dez anos, antes da tomada do poder por Hitler e da sua própria emigração. (...) Para descrever adequadamente a sua obra, e para o descrever a ele próprio como autor, no nosso quadro de referência habitual, teríamos de fazer um grande número de afirmações negativas, como por exemplo: a sua erudição era grande, mas ele não foi um erudito; o seu trabalho tinha a ver com os textos e a sua interpretação, mas não era filólogo; sentia-se extremamente atrído, não pela religião, mas pela teologia e pelo tipo de interpretação teológica segundo o qual o próprio texto é sagrado, mas não era teólogo e não manifestou especial interesse pela Bíblia; era um escritor nato, mas a sua maior ambição foi criar uma obra exclusivamente composta de citações; foi o primeiro alemão a traduzir Proust (em colaboração com Franz Hessel) e Saint-John Perse, e já antes disso traduzira os Tableaux Parisiens, de Baudelaire, mas não era tradutor; fazia recensões críticas de livros e escreveu um certo número de ensaios sobre escritores vivos e mortos, mas não era crítico literário; escreveu um livro acerca do barroco alemão e deixou inacabado um enorme estudo sobre o século XIX francês, mas não era historiador nem historiador da literatura; tentarei mostrar que ele pensava poeticamente, mas não era poeta nem filósofo. (...) A 26 de Setembro de 1940, Walter Benjamin, que se preparava para emigrar para a América, suicidou-se na fronteira franco-espanhola. Várias razões o levaram a isso. A Gestapo confiscara o seu apartamento em Paris, que continha a sua biblioteca (conseguira fazer sair da Alemanha ‘a metade mais importante’) e muitos dos seus manuscritos (...). Como iria ele viver sem a sua biblioteca, como podia ganhar a vida sem a vasta colecção de citações e excertos que se encontrava entre os seus manuscritos? Além disso, nada o atría na América, onde, conforme costumava dizer, provavelmente ninguém saberia o que fazer dele além de o passearem pelo país inteiro, exibindo-o como o ‘último europeu’. Mas a causa imediata do suícidio de Benjamin foi o azar verdadeiramente excepcional. (...) Na medida em que o passado se transmite sob a forma de tradição, possui autoridade; na medida em que a autoridade se apresenta historicamente, converte-se em tradição. Walter Benjamin sabia que a ruptura com a tradição e a perda de autoridade que se verificaram no seu tempo eram irreparáveis, e concluiu daí que era preciso descobrir novas formas de relações com o passado.” Para Walter Benjamin os seres humanos são anjos da história, no sentido literal do termo. Angelos significa mensageiro de um mundo que é texto incrito no tecido da tradição e da história. A nosso essência é a de dar testemunho do passado. Enquanto herdeiros da tradição que, na modernidade em ruínas, já se não transmite numa continuidade sem rupturas, devemos transformar-nos em “pescadores de pérolas” que se cristalizaram em “citações”.

segunda-feira, maio 05, 2008

Segundo o Diário de Notícias, na sua edição online de hoje, Portugal está na cauda da Europa no que diz respeito à qualidade democrática. No “index da democracia quotidiana”, entre 25 países, a Demos – uma ONG – coloca-nos no 21º posto. A classificação, longe de ser honrosa, não espanta ninguém, estando mesmo ao nível dos resultados obtidos nos festivais eurovisão da canção. As conclusões do estudo são deveres interessantes. Revelam que, em termos formais (eleições regulares), estamos a meio da tabela – 14º lugar. O pior é quando se têm em conta critérios de carácter mais substantivo, como a participação cívica e a “relação familiar”. Aqui é que a porca torce o rabo. O estudo revela também que a qualidade democrática, no mapa geográfico da Europa, vai decrescendo de norte para sul. É com determinismos destes que nos safamos. Apesar de tudo, mesmo na cauda, ainda pertencemos ao universo europeu, apesar de Marrocos ser mesmo ali, ao virar da esquina.
Na semana passada, o Presidente da República criticou os jovens pelo sua falta de participação e interesse nos assuntos políticos. A responsabilidade por este afastamento – ou incultura política –, segundo Cavaco e Silva, é dos partidos políticos. Tudo isto foi dito na sessão solene comemorativa do 25 de Abril. Da ala esquerda à ala direita do espectro político, inúmeras personalidades fizeram notar – e bem – que o Presidente da República não está isento de responsabilidades. No entanto, o tom geral de desresponsabilização dos jovens, no que concerne à participação cívica e política, em nada contribui para alterar a qualidade democrática dos portugueses no futuro. O mais preocupante, do meu ponto de vista, é o clima de anestesia e de conformismo que as atitudes dos estudantes de hoje manifestam. O conformismo social é um sintoma de anemia democrática e uma posta aberta para um totalitarismo disfarçado de democracia meramente formal.Há uma semana, a ministra da educação, Maria de Lurdes Rodrigues afirmou que “os chumbos são um mecanismo retrógado e antigo” e que "os sistemas de ensino moderno tentaram substituir um sistema chamado ‘chumbo’ por outros instrumentos chamados ‘mais trabalho’”. E setenciou: "Facilitismo é chumbar. Rigor e exigência é fazer com que todos aprendam”. Uma pergunta: a que ensino moderno se refere? Não é certamente aos modelos da pedagogia moderna, alicerçados numa política eduquesa, que os “gurus” da 5 de Outubro se têm esforçado por impôr à prática educativa contemporânea, nas últimas décadas. Porque se assim é, então a senhora ministra continua a falar do que não entende, a desfiar um rosário de retórica sem consistência, e a tentar conjugar o inconjugável – o modelo finlandês com uma modelo de avaliação de professores chilena e com uma realidade social portuguesa. Ninguém nega que o modelo educativo finlandês seja óptimo. Sobretudo para os finlandeses. Como não se pode negar que o modelo de avaliação de professores, ao que parece importado do Chile, é uma farsa. Uma farsa que nenhum Gil Vicente quis assinar por baixo. E que a realidade societal do Portugal contemporâneo é uma manta de retalhos, retalhada em franjas de pobreza cada vez maiores e em pontos de cruz familiares descosidos. Há que entender duas coisas do discurso da ministra da educação: primeiro, trata-se de um recado inequívoco aos professores, que no próximo ano lectivo terão de avaliar os alunos em conjugação com a sua própria avaliação; segundo, o imperativo é economicista e a lógica á a da banal aritmética de merceeiro, conforme se pode despreender das palavras que se seguem: “Se o Estado gasta por ano três mil euros com um aluno, quando ele repete vai custar seis mil no ano seguinte”. Como dizia o outro – elementar meu caro...