domingo, novembro 12, 2006

os nossos filhos

No coração de Monsanto existe um parque, o da Serafina, que já não visitava há anos. Voltei a visitá-lo hoje, imagine-se, não para levar a petizada a espraiar os seus humores e correrias, mas para passear o meu pai, um idoso de 75 anos que vive cada vez mais mergulhado numa demência mista (parkinson, alzheimer, e outros demónios mentais). No curto período de meia hora assisti a duas cenas que nos remetem inapelavelmente para uma realidade impensada há duas décadas. Deveras preocupante, digo eu.
Primeira cena. Um casal, acompanhado por uma criança de quatro ou cinco anos, desloca-se para a entrada do restaurante do dito parque. A menina faz birra, não quer entrar. A mãe diz, polidamente: "Filha, eu e o pai touxemos-te ao parque. Agora, se fazes favor, acompanhas-nos lá dentro. Não demora nada, é só tempo de bebermos o café, e depois voltas para a brincadeira." A birra persiste. O impasse prolonga-se. A mãe entra no café e o pai, entre o contrafeito e o aliviado, pega na filha ao colo e faz-lhe a vontade.
Segunda cena. À entrada do parque uma outra criança resiste teimosamente aos apelos da mãe. "Anda lá, filha, olha que não temos o tempo todo". A miúda continua de olhos vidrados nos balões multicores e num sem número de outros objectos que são a perdição dos mais pequenos. A mãe volta a chamar e a petiz não ouve. A mãe lamenta-se, dirigindo-se ao seu companheiro: "Eles é que são culpados. Devia haver uma lei que proíbisse vender estas coisas à entrada dos parques infantis".
Vai para nove ou dez anos vi pela primeira vez um filme que, de cada vez que o revejo, dá que pensar. Três histórias. Numa delas, os adultos são vítimas da tirania malévola das crianças. O poder destas é absurdo, hilariante e inquietante. O poder de um pequeno déspota cujos caprichos se tornam leis de uma crueldade inusitada.
A semana passada li um artigo na revista Visão que me deixou atordoado, não porque não suspeitasse já da realidade retratada, mas sobretudo por dimensão dessa mesma realidade. O artigo intitula-se Reféns dos miúdos e põe a nú um drama actual vivido por muitas famílias portuguesas. O fenómeno é designado como "síndroma do imperador" e traduz um sem número de casos em que os pais são vítimas do abuso do poder e dos maltratos protagonizados pelos seus rebentos mais jovens. No artigo vem escrito: " Os filhos maltratantes são 'crianças sem consciência dos limites, que mandam na vida familiar, dão ordem aos pais e recorrem à chantagem emocional (...). Afinal, o que está a acontecer? Para a amioria dos especialistas portugueses, muitos pais criaram na prole a ideia de que têm direito a tudo e, à medida que crescem, os filhos vão forçando os limites impostos pelos prognitores, para poderem encontrar os seus, atingindo-se, por vezes, proporções dramáticas."
Afinal, o que está acontecer, pergunto. À entrada do parque, o meu pai olha indiferente em seu redor, ancorado num olhar vazio e perdido no indefinido da paisagem e da memória. Se ele me pedisse, talvez lhe comprasse um balão, a ele que carrega nos ombros o peso de muitas responsabilidades, de muitas culpas também, vítima de um destino que lhe desatinou o baú das lembranças e o reduz à condição de mero fantasma de indecisões, medos e angústias irreparáveis. Agora que ele é o filho que nunca tive, gostava de saber: vítimas ou culpados?

3 comentários:

Anônimo disse...

Espera pela pancada. A Holanda que nos leva uma volta de avanço tem já assitência aos pais vítimas de violência física por parte dos seus filhos adolescentes. Quando os rebentos se confrontam com as duras realidades da vida voltam-se contra os pais. Na Holanda é um tema de sociedade. Com a agravante que aí adolescente é um calmeirão mais depressa . Chico da Popeline

Anônimo disse...

O que se pode dizer a uma mãe que tem filhos que não a amam ? Que se aproximam só quando querem coisas ? Que dizem palavras que magoam? Que dizem: Este é o último Natal que quero passar contigo.
Que dizem: Gostava que fosses transparente, surda e muda!. Que dizem sobre a infelicidadae de uma colostomia: Mãe, agora és um esgoto ambulante!
Que dizem: Amanhã faço anos! Espero que não me apareças pela frente!
Não há palavras para exprimir quanta mágoa eu sinto. O cancro ou a colostomia comparativamente são uma pequena alegria quando alguém desconhecido nos conforta com uma palavra amiga no hospital.

jcsmadureira disse...

O comentário recebido em 27 de Dezembro deixou-me sem palavras. Ao anónimo que o escreveu desejo as melhoras possíveis e um ano de 2007 melhor que o anterior.