sábado, março 19, 2011

Mestre do desenrascanço

Mestre do desenrascanço, perito da chica-espertice, eis como o português se classificou a si próprio durante décadas a fio. Desde que me lembro, sempre o português se olhou como um artista do engenho fácil, um finório que espreita a oportunidade de pôr em prática o imperativo do “desenrasca”, por não saber proceder de outro modo, ou simplesmente por que lhe está na massa do sangue.
Expressões comuns como “vê lá se me desenrascas isso”, “estou num enrascanço que só tu me podes valer”, “eu dou-lhe um toque, pode ser que os tipos te desenrasquem essa merda”, revelam bem a importância que o verbo desenrascar assumiu na formação do nosso ethos. Poderíamos mesmo defini-lo, recorrendo à fórmula cartesiana, como o princípio ontológico e normativo da existência do português – “desenrasco-me, logo existo.”
Camões, a quem A Fortuna me traz peregrinando, / Novos trabalhos vendo e novos danos (Lusíadas, Canto VII, estância 79), é o protótipo do português que pede às Ninfas os favores necessários para se livrar do aperto em que se sente: Pois logo, em tantos males, é forçado/ Que só vosso favor me não faleça, (83) para assim poder cantar esses “engenhos de senhores” , que servirão de exemplo às gerações futuras para neles “espertar engenhos curiosos” (82).
O engenho camoniano, que é outra forma substantiva de expressar a arte do desenrascanço, por mais glorificado que mereça ser, é a razão de ser da nossa peregrinação de séculos. Não somos metódicos nem sistemáticos. Na ressaca das descobertas, passámos a viver de engenhos mesquinhos, expedientes apressados, na esperança de sobrevivermos amanhã que depois logo se verá. E assim nos vamos desenrascando nessa arte que é bem nossa.
A manifestação recente da “geração à rasca”, que mobilizou milhares de portugueses para as ruas, pela sua transversalidade etária e mesmo social, expressa bem esse sentimento que nos define. Saberemos nós recorrer a outra arte que não a do desenrascanço?

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