terça-feira, março 06, 2012

Da Europa ou uma certa maneira de ser cultura

A Europa vive hoje tempos sombrios. Não tão sombrios como os que viveu durante as duas guerras mundiais, ou outros em que foi palco de sangrentos conflitos por motivos territoriais e ideológicos – políticos, económicos ou religiosos. No entanto, depois da segunda guerra mundial, a Europa, qual fénix, renasceu das suas próprias cinzas. Ao longo de meia dúzia de décadas, parecia fadada para concretizar a utopia comunitária que lança as suas raízes no “projecto da paz perpétua” kantiano e na profecia dos Estados Unidos da Europa, de Victor Hugo. Após o período que medeia entre Março de 1957 (Tratado de Roma) e Dezembro de 2007 (Tratado de Lisboa), a Europa parece ter entrado numa espiral de entropia que a conduzirá inevitavelmente ao fracasso e fim de um sonho. Terminará o sonho em pesadelo? Quais os contornos do que se avizinha? Não o sabemos. Mas podem muito bem coincidir com os do fim de uma “ideia da Europa”, a qual, no dizer de Husserl, “designa a unidade de uma vida espiritual e uma actividade criativa”, que se identifica com a Filosofia.
A tese de Husserl, no seu texto A Filosofia e a Crise do Homem Europeu (1935), é conhecida. De tão conhecida, talvez já tenha entrado no esquecimento. E como o esquecimento das raízes pode ser perigoso! Revisitá-la pode, pois, ser uma boa terapia. Não será deste tipo de terapias que os europeus hoje mais precisam?
Segundo Husserl, a Europa origina-se em solo grego, nos séculos VII e VI a.C., e tem como protagonistas os filósofos que ousaram empreender a aventura espiritual do pensamento crítico, conduzindo-os por veredas nunca antes percorridas, as veredas do questionamento da tradição e das verdades aceites como óbvias, em virtude de uma atitude natural. A mudança de atitude em que assenta o filosofar (epoché transcendental) traduz-se numa “cultura de ideias” cujos vectores principais são a autonomia e a universalidade que configuram a “forma espiritual da Europa”. A crise desta forma de ser cultura radica no empobrecimento da essência da racionalidade europeia – originariamente filosófica – que se alienou numa racionalidade unilateral inerente ao modelo hegemónico das ciências (naturalismo e objectivismo), inscrito no projecto da modernidade. Esta crise tem apenas duas saídas; ou a decadência, que significa o triunfo do irracionalismo e da barbárie (o sono da razão já tinha criado o monstro Hitler); ou o heroísmo da razão que conduziria ao renascimento da Europa. Para que tal suceda é necessário ter a coragem de travar “um combate sem fim”. Conhecem-se os inimigos. No entanto, “o maior perigo da Europa é o grande cansaço”.
Seremos nós hoje capazes de vencer o cansaço e de lutar contra as reconfigurações do tal naturalismo e objectivismo de que falava Husserl? Que rostos novos apresentam nos dias de hoje? Estaremos à altura de, parafraseando Eduardo Lourenço, proceder à “invenção de um caminho e de uma saída que ninguém nos deu nem pode descobrir em vez de nós”? (Da Europa como Cultura, 1989) Seja como for, nunca será demais ouvir, a propósito, as palavras sensatas de George Steiner: “É entre os filhos frequentemente cansados, divididos e confundidos de Atenas e de Jerusalém que poderíamos regressar à convicção de que ‘a vida não reflectida’ não é efectivamente digna de ser vivida.” (A Ideia da Europa, 2004) Vale a pena terminar com outra questão: não conduziria o fim da Europa ao fim da Filosofia ou, evocando novamente Eduardo Lourenço, ao fim de “uma certa maneira de ser cultura”?

Publicado originalmente no blog Jerusalém

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