domingo, novembro 20, 2011

Impressões de leitura - Tony Judt

Tony Judt morreu o ano passado, vítima de uma doença degenerativa – esclerose lateral amiotrópica. A doença, diagnosticada em 2008, não lhe deixava margens para prognósticos esperançosos. A curto prazo, ficaria reduzido a um estado de mobilidade mínima do pescoço para cima. Daí para baixo, sem ajuda de terceiros, a imobilidade seria absoluta. Fisicamente prisioneiro de um corpo inabilitado, restar-lhe-ia uma mente livre para reflectir sobre acontecimentos e situações que a memória armazenou e lhos devolveria então, na penumbra nocturna, nítidos e em sequências narrativas concluídas. “Já doente há uns meses, percebi que, durante a noite, escrevia histórias completas durante a noite.” (O chalet da memória) Foi já nesse estado neurovegetativo avançado que escreveu dois belos livros: Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos e O chalet da memória, ambos publicados em 2010 (em Abril e Outubro de 2011 em língua portuguesa, pelas edições 70). São livros diferentes, arquitectados a partir de distintos pontos de vista. Mais intimista este, aquele mais didáctico. Percebe-se, ao lê-los, que o propósito de um e de outro divergem. Enquanto o primeiro tem uma natureza ensaística, o segundo reveste-se de um carácter testemunhal. No entanto, o pano de fundo permanece o mesmo: as mudanças sociais e políticas que ocorreram no mundo ocidental ao longo do século XX.
É sobre os acontecimentos deste último século que interessa reflectir, antes que nos deixemos conduzir pelos perigosos caminhos da “servidão voluntária” que nos querem impor os novos arautos da ideologia da inevitabilidade. “Acima de tudo, a servidão em que uma ideologia mantém a sua gente mede-se melhor pela sua incapacidade colectiva para imaginar alternativas. Sabemos muito bem que a fé ilimitada nos mercados desregulados mata: a aplicação estrita do que até há pouco tempo, em países em desenvolvimento vulneráveis, se chamava ‘o consenso de Washington – que punha a sua tónica numa política fiscal rigorosa, privatizações, tarifas baixas e desregulamentação – destruiu milhões de meios de subsistência. Entretanto, os ‘termos comerciais’ rígidos em que estes remédios são disponibilizados reduziram drasticamente a esperança de vida em muitos locais. Mas, na expressão letal de Margaret Thatcher, ‘não há alternativa’.” (O chalet da memória)
Se há característica predominante capaz de definir significativamente esta nossa época de modernidade globalizada, é o esquecimento do passado, logo abandonado e esquecido. Para além deste esquecimento, somos prisioneiros de um presente tecido com os fios da frágil imediatez e de um futuro incerto que nos devolve o medo de existir. A conjugação destes factores coloca-nos perante a reedição de cenários que a perda de memória potencia. A descrença na democracia como eficaz sistema de liberdade política e de justiça social, e o medo perante a incerteza do amanhã, alicerçados na ideologia economicista que proclama como horizonte único o dogma da inevitabilidade, abrem espaço ao aparecimento regimes políticos musculados e de figuras autoritárias e tutelares dos totalitarismos.
Só a memória do passado nos pode preservar do erro simples que consiste em acreditar em formulações do tipo: “não há alternativa”. A atitude profiláctica certa é a desconfiança. “Deveríamos desconfiar de proclamações do género. A ‘globalização’ é uma actualização de uma intensa fé modernista na tecnologia e na gestão racional que marcaram os entusiasmos dos decénios do pós-guerra. Como estes, ela exclui implicitamente a política como um palco de escolha: os sistemas de relações económicas são, como costumavam dizer os fisiocratas do séc. XVIII, determinados pela natureza. Logo que tenham sido identificados e correctamente entendidos, resta-nos apenas viver segundo as suas leis.” (Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos) Sem memória não passamos de “mentes cativas” e de sujeitos de uma “servidão voluntária”. Acreditamos ser esta a única alternativa?


Texto publicado originalmente no blog Jerusalém.

Portugal ou o canil da Europa

Com a certeza de que quem nos governa não mora neste recanto de angústias a que chamamos Portugal, li a entrevista que Poul Thomsen deu ao Expresso (19/11/2011). Todas as minhas suspeitas se viram confirmadas, preto no branco. Mas também tive surpresas. A ilustre personagem, que tem por missão resgatar a economia portuguesa do ciclo vicioso em que caiu (espiral de deficit e desequilíbrio das contas) e conduzir-nos para o caminho da virtude, mostra ter tantas certezas quanto o cidadão comum depois de ter feito exames médicos para saber qual a estirpe do cancro que lhe foi diagnosticado: “Depende da economia”, “Penso que é possível”, “Vamos ver como a economia responde”, “Se voltarmos e virmos a economia a afundar-se mais do que o previsto (…) então poderemos reconsiderar”, “Acredito que é possível se as reformas forem feitas”. Para navegar neste mar de incertezas era preciso mais do que uma bússola avariada.
A propósito da anunciada austeridade e da percentagem expectável da queda da economia para 2012 (3, 4, 5 por cento?) a resposta do senhor FMI, como alguma comunicação social gosta de lhe chamar, merece pontificar nos anais dessa ciência a que chamamos economia: “Esperemos não chegar a esse ponto. Queremos evitar ser um cão a correr atrás da própria cauda, no sentido em que uma economia mais fraca precisa de mais austeridade, o que por sua vez agrava a recessão, etc.” A imagem não podia ser mais certeira. Não é preciso ser-se um expert em psicologia canina para saber que esse comportamento obsessivo resulta de acumulação não de capital mas de stress, frustração e ausência de estímulos causados pela falta de liberdade. Temo que em breve Portugal se venha a transformar-se num canil para animais doentes por falta desse estímulo apelidado liberdade. Talvez este país tenha futuro como canil da Europa. 




Texto publicado originalmente no blog Jerusalém.