quinta-feira, maio 28, 2009

desabafos de ocasião

Afirmou Descartes, o filósofo francês a quem a modernidade deve os seus fundamentos e referenciais lógicos, ser o bom senso a coisa mais bem distribuída do mundo. Estava enganado. Refuta-o um sem número de acontecimentos que marcavam a vida pública portuguesa nos últimos meses. O espaço público, por excelência um espaço propício à proliferação de hábitos democráticos e de um senso comum esclarecido, está cada vez mais ocupado pelo oportunismo de vistas curtas e pelo obscurantismo das ideias canhestras, que disfarçam mal os interesses privados e corporativos que nele se instalam.
Em tempos de vacas magras e de défice ideológico, aconselhava o bom senso que os gastos com as campanhas eleitorais fossem comedidos, que a ostentação se escondesse de vergonha debaixo do manto da frugalidade, que os discursos manhosos, o insulto ágil e a retórica da sedução dessem lugar à palavra substantiva e ao argumento esclarecedor. Para o bem de uma cidadania democrática autêntica. Mas nada disto se verifica. Pelo contrário, o que prova à saciedade que o bom senso não abunda. Este cantinho à beira-mar plantado é um terreno fértil para as ervas daninhas que, como infestantes que são, vão acabar por sufocar a seiva da cultura democrática que nos alimenta.

sexta-feira, maio 08, 2009

esta democracia está refém dos interesses partidários

Confesso ter uma predilecção particular por metáforas agrícolas. O meu sonho é mesmo ser hortelão. Isso explica porventura o facto de ter feito a associação, num post anterior, entre a democracia e uma planta. De qualquer modo, no nosso universo político pós 25 de Abril, a referida associação impõe-se, sobretudo se tomarmos em consideração a mitologia inerente à “revolução dos cravos”, que eu, por imperativos ideológicos, não me permito renegar. Dito isto, convém esclarecer um pormenor importante. Considero as conquistas de Abril um bem precioso, um tesouro mesmo, mas não uma relíquia. Não tenho por ele uma atitude de veneração religiosa, nenhuma hagiolatria determina a minha crença em relação aos ideais de liberdade e igualdade que, estou convicto, constituem, hoje e sempre, o mais nobre programa político – o da democracia. E esse, creio, é o bem precioso que Abril nos legou. Sei bem que os problemas de hoje não são os de ontem. Sei também que não se pode olhar a democracia como Orfeu olhou Eurydice. Daí o meu apelo à revolução democrática e – num arremedo kantiano – à urgência de uma crítica da razão democrática. Por esta entendo um aprofundamento do programa democrático, que só pode passar pela renovação da cidadania. Isso pressupõe uma mais forte participação de todos nós nos assuntos públicos, não permitindo que sejam os políticos profissionais e os aparelhos partidários apenas a decidir o que é o bem comum.
Nota Breve. Os partidos políticos, na Assembleia, votaram, por unanimidade, a nova lei do financiamento dos partidos. O acordo, quando se tratou de salvaguardar os seus interesses, não sofreu contestação de nenhum quadrante. Governo e oposição uniram-se em bloco para garantir o seu “sustento”, e a sustentação de uma política há muito refém da democracia partidária. Em nenhum outro momento, nos últimos tempos, sucedeu algo semelhante. Mesmo quando era o interesse comum e o bem público que estavam em jogo. Os debates e as decisões sobre questões de política educativa, de política de saúde ou de política económica pautaram-se sempre por discordâncias violentas e acesas polémicas. Nunca consenso. Isso prova que não é em prol do interesse comum e do bem público que os partidos políticos, hoje por hoje, se movem. Prova também que a revolução democrática a fazer se justifica. Revolução que visa ir para além da redutora democracia partidária, abrindo espaços de participação política para o cidadão comum. Para isso é necessário devolver ao cidadão as razões da sua politização. Entendo, por conseguinte, que não se trata de olhar para o passado, mas sim projectar a realização do programa da democracia no futuro que, como sabemos, nos pertence por direito próprio.

terça-feira, maio 05, 2009

exercícios com língua

Por vezes apetecia-me simplesmente escrever ao correr da pena, deixar-me levar pelo ritmo da língua ou pelo sabor das palavras. Escrever desligado do assunto ou do tema, alheio aos argumentos consequentes com as teses a defender ou a refutar. Escrever tão só de ouvido, escutando apenas a música das vogais e das consoantes. Escrever como aquele perdigueiro que fareja a sua presa; assim eu gostaria de perseguir metáforas e transposições metonímicas. Mas falta-me o talento ou a bovina paciência, esse ruminar lento que consiste em surpreender a palavra exacta que veste o sentimento ou a ideia. Falta-me a intuição poética das coisas. Habito outro tempo e outro lugar externo à ontologia própria da língua que amo em cada sílaba. Língua arquitectada num seu ritmo e harmonia únicos, e – há quem o garanta – que estrutura o seu modo singular de olhar o mundo, visível e invisível. Por vezes apetecia-me morrer e renascer vestindo a alma de um poeta. Ser o outro que sonhei num país longínquo de que não lembro o nome, de que recordo somente a geografia das nuvens suspensas na tarde morna, que o vento insinua quando passa e não torna.

domingo, maio 03, 2009

Poema à mãe de Eugénio de Andrade

Num dia dedicado a todas as mães, mesmo àquelas que já não percorrem os caminhos deste mundo, um poema de um poeta maior presta-lhes a mais justa homenagem.
Poema à Mãe
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"

Razões para uma política participativa

Este é um ano decisivo, dizia-me um amigo. Um ano de decisões e, por conseguinte, de oportunidades. Sobretudo oportunidades de participar na mudança que, espero, se avizinha. Sejamos, pois, protagonistas da mudança. Protagonistas menores, mas ainda assim protagonistas. Façamos de conta que este é o patamar originário de um futuro melhor a construir, ou, como dizia o Sérgio Godinho: "o primeiro dia do resto da tua vida".
Vivemos tempos de crise, não só económica. Porque somos modernos, não poderia ser de outro modo, uma vez que a crise é o rosto visível da modernidade que nos cabe cumprir. Mas não se pode falar de crise sem falar de crítica. São como dois bois aparelhados para levar para diante a mesma demanda. Só uma postura crítica fará da crise o combustível da mudança desejada. Em termos cidadania, não nos resta outra alternativa válida que não seja a de nos assumirmos como "animais políticos". Não se trata de apenas de relembrar o velho Aristóteles. Trata-se, antes do mais, de não enjeitarmos a oportunidade de cumprirmos a humanidade plena que nos percorre a existência. Sejamos por isso mesmo políticos, não nos esquecendo que a política é, acima de tudo, a arte de inventar o futuro - o nosso e o dos nossos filhos. Reneguemos pois o argumento da inevitabilidade, tantas vezes usado para nos passar um atestado de menoridade intelectual e política. Não cometamos o erro de entregar nas mãos dos políticos profissionais a tarefa de tecer as malhas de um futuro comum que mais tarde vamos lamentar. Não nos alheemos ainda mais do mundo que é também público.
Se existe alguma nota fundamental que componha o projecto da modernidade, ela não pode ser outra senão a revolução democrática. A democracia, ainda que se lance as suas raízes em solo grego, tem na modernidade a atmosfera propícia ao seu desenvolvimento. No entanto, também hoje o programa democrático - que não é outro que não seja o da realização dos ideais da liberdade e da igualdade - está em crise. É imperioso que procedamos a uma crítica da razão democrática. Esta crítica torna possível duas coisas: evidenciar as condições de possibilidade do exercício democrático, por um lado, e radicalizar a democracia, por outro. O que se pretende, com isso, não é contribuir para a descredibilização da democracia, mas tão somente cuidar dela como o mais precioso dos bens que, para nós portugueses, o 25 de Abril conquistou. Tal como uma planta, ou a alimentamos ou morre.
A propósito da reflexão política, aponto duas sugestões de leitura:
1) "A incompetência democrática", Philippe Breton, Edições Loyola, 2008 (o original é de 2006).
2) "O regresso do político", Chantal Mouffe, Gradiva, 1996 (o original é de 1993).