terça-feira, abril 28, 2009

o alargamento da escolaridade obrigatória ou crise na educação?

O alargamento da escolaridade obrigatória para os 12 anos é, em tese, sem dúvida louvável. Por isso, a lei aprovada pelo governo, sinal de modernidade, só pode merecer o aplauso generalizado de todos nós. Ninguém o contestará, a não ser que esteja de má fé ou seja doido varrido. No entanto, o assunto deve ser objecto de reflexão cuidada e minuciosa, para que se não corra o risco de, por precipitação, se falhar a concretização do que parece à partida cumulado de virtudes. É nesse sentido que as objecções à medida governativa devem ser ponderadas, pesados os argumentos contrários, escutadas as opiniões que teimam em seguir a contra-corrente.
Alguns opositores da ideia acusam o governo de lançar mão, uma vez mais, de uma medida eleitoralista. Não se dizem contra os alunos serem obrigados a frequentar a escola uma dúzia de anos. Apenas afirmam que a medida é oportunista – sobretudo porque acompanhada do anúncio de subsídios para as famílias mais carenciadas –, visando somente arrecadar mais uns votos para alimentar a esperança da maioria absoluta. Uma pergunta impõe-se: por que razão não foi implementada em tempo oportuno (ao tempo de implementação das badaladas reformas educativas), quando se tratava de um imperativo de ordem moral e com implicações no futuro desenvolvimento económico do país? Responderão os apoiantes da medida, recorrendo ao senso comum: “mais vale tarde, que nunca”.
Outra objecção prende-se com a ideia de que a medida é cosmética e não terá outro propósito que não seja o de trabalhar para as estatísticas. Este argumento pretende evidenciar algo que tem sido prática corrente deste governo em matéria educativa, designadamente a sua preocupação excessiva em apresentar números que verifiquem o sucesso da sua política, em detrimento de preocupações com a real melhoria das aprendizagens e competências dos alunos. Apetece dizer, a propósito, o seguinte: “quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele”.
Há quem aduza outras razões: que a medida é, no fundo, improfícua e poucas alterações produzirá no tecido escolar português, quanto muito terá reflexos negativos ao transformar as escolas em depósitos de adolescentes desmotivados e em recintos de violência potencialmente explosiva; que contraria o direito de cada um escolher aquilo que considera melhor para si ou para o seu educando; que vai ao arrepio da maioria das práticas legais europeias, inclusive de países com índices de prestação escolar substancialmente melhores que as nossas; que não vai ao cerne dos problemas centrais com que se depara a educação; que vai contribuir para uma escola mais desigual, provocando uma procura acrescida do ensino privado, certamente mais imune aos inconvenientes da massificação do ensino. E por aí fora…
Um último argumento, porventura o mais consistente e sério, tem que ver com algo que já se sabe de há muito tempo. A crise na educação vai agudizar-se e acentuar os seus contornos, transformando-se num “num problema político de primeira grandeza”, como afirma Hannah Arendt em A crise na educação. A história da escola moderna não nos tem ensinado outra coisa. A democratização do ensino traduz-se necessariamente em massificação, a qual, inevitavelmente, acarreta um nivelamento por baixo dos seus padrões de exigência. É um fenómeno da modernidade que começou na América dos anos cinquenta, estendendo-se rapidamente a todos os países que a seguiram como modelo de nação, que elegeu o conceito de igualdade como regulação de costumes e de modus vivendi. Dos americanos não resultou apenas a disseminação da coca-cola e dos McDonald’s, dos heróis da banda desenhada e das estrelas de Hollywood, resultou uma crise, a da educação que, como o Toyota, veio para ficar. O alargamento da escolaridade obrigatória significa, por mais louvável que seja, o alargamento da crise na educação. Nisso o governo dá mostras de modernidade.

terça-feira, abril 21, 2009

Sócrates - o mestre de dizer o vazio com belas palavras

José Sócrates falou ao país. Na entrevista desta noite, na RTP, dirigidas pelos jornalistas Judite de Sousa e José Alberto de Carvalho, o primeiro ministro voltou a ser igual a si próprio como entrevistado - não responde às perguntas incómodas que lhe são colocadas e responde às perguntas que gostaria que lhe fizessem. No fundo, o que Sócrates quer é que os entrevistadores sejam apenas um eco da mensagem que pretende transmitir. Por isso interpela os jornalistas, inverte os papéis, e desata a desfiar o rosário da sua propaganda política. No seu discurso, o chefe do executivo repetiu, repetiu, repetiu, até à exaustão, o que tem vindo a dizer nos últimos meses. Fez a apologia do governo, entoou loas à sua acção messiânica e elegeu-se o paladino da democracia e o garante do bem estar dos pobres e necessitados. A propósito do caso Freeport uma vez mais vitimizou-se e prometeu resistir ao putativo assassinato político de que pretensamente está a ser alvo. Sobre Cavaco Silva e o fim da convergência estratégica negou desentendimentos e reafirmou a cooperação institucional. Quanto às medidas de combate à crise, com excepção do anúncio da extensão do subsídio a mais quinze mil beneficiários, pouco mais adiantou às que têm vindo a ser anunciadas semana após semana. Pouco, muito pouco para fazer face às inúmeras dificuldades que cada dia que passa crescem no seio das famílias portugueses. José Sócrates foi hoje, como tem sido no último ano, um mestre de dizer o vazio com belas palavras. Mais um animal retórico do que um animal político.

segunda-feira, abril 20, 2009

Aproxima-se a época de “ir a votos”

Aproxima-se a época de “ir a votos”. Vertiginosamente. Será em regime de sessões contínuas, com um intervalo para “silly season” ou para “ir a banhos”. A primeira sessão está agendada para 7 de Junho. As outras só lá para Outubro, na ressaca das férias, quando a lembrança do “bem-bom” se tornar insuportável e a fossa exigir consultas ao psiquiatra e doses redobradas de anti-depressivos.
Perfilam-se os candidatos para a Europa. Aguçam-se os aguilhões para as ferroadas iniciais. Afinam-se as vozes para os insultos da praxe. Sopesam-se os argumentos ou, na falta deles, ponderam-se as falácias: petições de princípio, “non sequitur”, “post hoc”, apelo à ignorância, aos preconceitos, ao povo, à autoridade, derrapagem, ataques pessoais. Vai ser um fartote, sobretudo de ruído. Os fins justificam os meios. O objectivo é vencer, custe o que custar. Nem que para isso se tenha que vender a alma ao primeiro diabo que aparece. Há que assegurar as mordomias que encosto partidário faculta. Importa jogar a cartada certa, apostar no trunfo favorável. Não se podem desperdiçar oportunidades, que o tempo não está ilusões e a crise é séria e está para lavar e durar. Nas eleições europeias, o vencedor será inevitavelmente a abstenção. Nas outras, logo se verá. Uma coisa é certa: a política transforma-se, a cada ano que passa, num circo mediático em que, no fundo, cada vez mais se escolhe o rosto da ideia e não a ideia do rosto. E depois… quem se lixa é o mexilhão.

quinta-feira, abril 02, 2009

No reino da pocilga achei uma pérola

No universo da blosgera encontra-se de tudo. A maioria das vezes esterco, esterco mental. É como se deambulássemos por uma pocilga. O odor que dela emana é nauseabundo. Um verdadeiro triunfo dos porcos. Mas também encontramos pérolas; raríssimas, convenhamos, mas que brilham em todo o seu esplendor. Por vezes, inesperadamente, deparamos com opiniões-gémeas, pensamentos que comungamos do osso ao tutano, textos que gostaríamos de ter escrito e que, por falta de talento, jamais escreveremos. Esses textos, pensamentos, opiniões, são também nossos, porque se tornaram públicos. E a blogsfera, pese embora todos os defeitos tem essa virtude única, a de nos permitir, à distância de um clic, como reza a publicidade, colher a pérola que alguém depos para ser achada. O texto de Helena Matos, publicado no Público (e que pode ser lido aqui) é uma dessas pérolas que achei numa das minhas passeatas pela pocilga da blosfera.

Exercícios de escrita (1)

Em 1957 foi publicado um texto de Hannah Arendt sobre educação. Intitulado Crise na Educação, o texto constitui, do meu ponto de vista, um marco importante para a reflexão sobre um tema que, em Portugal, pelo menos no último ano, tem sido amplamente noticiado e debatido mas pouco ou nada estudado. As notícias têm-se centrado nos aspectos múltiplos que revelam a crise, nas suas manifestações de superfície, dando conta das suas consequências mais passíveis de tratamento mediático. Os debates, sobretudo os televisivos, redundam em meras trocas de opiniões avessas ao esforço argumentativo, em que mínima preocupação de fundamentação prima pela ausência. Fala-se e escreve-se sobre os professores que não ensinam o que sabem nem sabem o que ensinam, que não têm vocação nem autoridade. Escreve-se e fala-se a propósito dos alunos que não aprendem o que devem e aprendem o que não devem, que são incapazes de apreender conteúdos, de desenvolver capacidades e de exercitar competências cognitivas, que não conseguem concentrar-se mais de um par de minutos e recusam a exigência do esforço que todo o estudo implica.
Diz-se dos pais que deseducam em vez de educar, que não transmitem valores, que não se preocupam com os filhos ou que se preocupam excessivamente. Opina-se que o ministério da educação tem razão nisto mas desatina naquilo, que manda demais ou de menos nas escolas, que sabe o que quer mas não quer o que sabe, que é prepotente ou permissivo consoante o caso e a circunstância.
Esboça-se assim uma sintomatologia da crise, fazem-se diagnósticos a torto e a direito, mas não se consegue apontar as suas causas ou as razões que a explicam cabalmente. Assim, só por milagre ou por acaso se podem achar soluções que não sejam um mero recurso de ocasião, condenadas portanto a agudizar uma crise que ao se manifestar gosta de ocultar a sua face mais sombria.
A nossa atenção, ao ler o texto, deve ser meticulosa e paciente. Devemos portanto lê-lo com vagar, não nos precipitarmos nessa cavalgada desenfreada em que se transformou o hábito de leitura contemporâneo. É preciso saboreá-lo lentamente e experimentar-lhe a doçura ou a acidez das palavras.
A actualidade do texto de Hannah Arendt é, a todos os títulos, assinalável. Velho de mais de meio século, surge-nos como uma proposta de reflexão filosófica (não assumida) sobre um tema que se transformou, nos tempos que correm, num problema de importância incontornável. Ao escrevê-lo, Arendt mergulha nas águas profundas e revoltosas onde tradição e modernidade se encontram, para onde confluem ideias que colidem entre si, deixando na tona apenas a espuma dos nossos preconceitos inquestionados.
Apesar de escrito faz mais de cinquenta anos e num contexto social e político diferente (pelo menos na aparência) do nosso, a reflexão aí produzida pode constituir-se como um importante ponto de referência para o urgente repensar das nossas actuais questões de política educativa.
Para testar a actualidade do texto, resolvi abrir ao acaso o livro (Entre o Passado e o Futuro, Relógio d’Água) no intervalo de páginas que, entre outros ensaios, aquele consta. Calhou que a página fosse a 194. Escolho um dos parágrafos. Leio-o:
“Na América, a crise actual resulta do reconhecimento do carácter destrutivo destes três pressupostos e do esforço desesperado que está a ser feito para reformar todo o sistema de educação, isto é, para o transformar completamente. Mas, ao fazer isto, o que se está efectivamente a fazer – com excepção dos planos relativos a um aumento imediato das facilidades de ensino das ciências físicas e da tecnologia – nada mais é do que uma restauração: o ensino será outra vez conduzido com autoridade, nas horas de aula deixar-se-á de jogar e far-se-á de novo trabalho sério; dar-se-á maior importância aos conhecimentos prescritos pelo ‘curriculum’ do que às actividades extra-curriculares. Fala-se mesmo em transformar o actual ‘curriculum’ de formação de professores, de forma a que os próprios professores tenham de aprender alguma coisa antes de serem colocados junto das crianças.”
Vejamos agora se é possível interpretá-lo à luz da nossa realidade de hoje. Avancemos. Tal como na América da segunda metade dos anos cinquenta, também nós hoje nos vemos confrontados com uma evidência que só agora estamos em condições de reconhecer. E qual é? A de uma crise que é o resultado: por um lado, dos pressupostos em que assentaram as nossas convicções em matéria de educação, nos últimos trinta anos, que se revelaram catastróficas; e por outro lado, do desespero que tomou conta dos agentes governativos, que elegeram a reforma educativa como uma das suas prioridades políticas, a fim de transformar este rectângulo do marasmo numa plataforma de modernidade tecnológica.
Centremos a nossa atenção nos pressupostos. Quais são e em que consistem? Hannah Arendt expõe-nas nas páginas imediatamente anteriores (191 a 193). Escutemo-la:
“A primeira é a de que existe um mundo da criança e uma sociedade formada pelas crianças; que estas são seres autónomos e que, na medida do possível, se devem deixar governar por si próprias. O papel dos adultos deve então consistir em limitar-se a assistir a esse processo. É o grupo das crianças ele mesmo que detém a autoridade que vai permitir dizer a cada criança o que ela deve e não deve fazer. (…) A segunda ideia-base a tomar em consideração na presente crise tem que ver com o ensino. Sob influência da psicologia moderna e das doutrinas pragmáticas, a pedagogia tornou-se uma ciência do ensino em geral ao ponto de se desligar completamente da matéria a ensinar. O professor – assim nos é explicado – é aquele que é capaz de ensinar qualquer coisa. A formação que recebe é em ensino e não no domínio de um assunto particular. (…) Esta ideia-base (a terceira) é a de que se não pode saber e compreender senão aquilo que se faz por si próprio. A aplicação à educação desta ideia é tão primitiva quanto evidente: substituir, tanto quanto possível, o aprender pelo fazer. Considera-se pouco importante que o professor domine a sua disciplina porque se pretende compelir o professor ao exercício de uma actividade de constante aprendizagem para que, como se diz, não transmita um ‘saber morto’ mas, ao contrário, demonstre constantemente como se adquire esse saber. A intenção confessada não é a de ensinar um saber mas a de inculcar um saber-fazer. O resultado é uma espécie de transformação das instituições de ensino geral em institutos profissionais.”
A autora refere-se a estes três pressupostos como sendo as causas imediatas da crise na educação. Não sendo as suas causas mais longínquas – as quais se prendem com o fenómeno da progressiva e irreversível erosão da tradição-autoridade-religião, que se inscreve no processo histórico da modernidade – são contudo as que explicam de forma mais significativa a crise, que tem na educação a sua expressão mais clara e a sua face mais visível. A natureza destes pressupostos revela-se no facto de constituírem ideias feitas, preconceitos que assimilámos como se de verdades irrefutáveis se tratassem e que, por conseguinte, não nos atrevemos a questionar. No seu conjunto, remetem todos para ideias que cimentaram, ao longo de mais de trinta anos, a nossa compreensão do que deveria ser não apenas a escola mas, em geral, a relação adultos-crianças, sobretudo no universo intra-familiar.
O primeiro pressuposto pode ser entendido como o da absolutização do mundo infantil, estando isso associado à ideia de que o mundo da criança é independente do mundo dos adultos, e de que a criança, tomada individualmente, vive simultaneamente “emancipada da autoridade dos adultos” e sob a alçada da autoridade do grupo. Libertos da referência dos adultos (dos seus valores e também do seu cuidado), as crianças crescem “ou entregues a si mesmas, ou à tirania do seu grupo”. Um livro de William Golding (1954) e um filme de Peter Brooks (1953) – O Deus das Moscas (Lord of the Flies) – ilustram bem como um mundo de inocência e de candura se pode transformar num mundo selvático onde impera a lei do mais forte ou o caos. Peter Pan, por seu turno, conta-nos a história de um mito, o da eterna criança que se recusa a crescer, e constitui-se outro exemplo da rejeição de um mundo regido por outros imperativos que não os da satisfação dos prazeres imediatos, ou do jogo, cuja lógica interna é a eternização de si próprio.
O segundo pode ser entendido como o da pedagogização do ensino. A escola moderna fez da pedagogia o alfa e ómega do ensino, erigindo-a à condição de rainha das aprendizagens. Todas as pessoas ligadas profissionalmente ao ensino sabem o que isto significa, quer tenham quer não tenham reflectido sobre o assunto. A desvalorização dos saberes disciplinares e dos “curricula” vai a par da prevalência absoluta da pedagogia. Em consequência, o professor ignora cada vez mais as matérias que deveria ensinar, ao mesmo tempo que se torna monitor das aprendizagens (ou mestre de coisa nenhuma). O binómio ensino-aprendizagem, equação de que deveria resultar o ponto de equilíbrio entre a transmissão e recriação dos conhecimentos (o ponto de equilíbrio entre o passado e o futuro), deu lugar ao predomínio absoluto da aprendizagem. A propósito, registe-se um facto significativo: a ladear a entrada principal do antigo liceu Camões encontra-se uma tarja alusiva à comemoração do centenário da instituição, onde se pode ler: “100 anos a aprender”. Sintomático.
O terceiro decorre do segundo e, qual cobra mordendo a sua própria cauda, reconduz ao primeiro. Pode ser entendido como a instrumentalização do ensino, pois está intimamente ligado ao pragmatismo ou à ideia de que o único critério da verdade é o da sua eficácia em termos práticos e instrumentais. Subjaz a este pressuposto a ideia peregrina, enraizada nas pedagogias progressistas de matriz rousseauniana, que impõe a primazia do “aprender fazendo” sobre o “aprender sabendo” e do lúdico sobre sério. Isto traduz-se, em termos de política de educação, na valorização do ensino profissionalizante ou mesmo informal em detrimento do ensino geral ou formal. Por isso proliferam os cursos profissionais, as novas oportunidades e os “magalhães” profícuos sobretudo em erros de lesa-língua. Traduz-se também na crescente ignorância em relação ao saber proposicional – saber que D. Afonso Henriques teve como progenitores o conde D. Henrique e a rainha D. Teresa – e na admirável mestria em manipular as teclas do telemóvel. Traduz-se igualmente no desprezo pela sabedoria e no singular apreço por esse pseudo-saber de “fast food” televisivo, que consumimos ao mesmo tempo que nos vamos tornando obesos em iliteracia funcional. Traduz-se finalmente no prolongamento indefinido da infantilidade dos nossos jovens e na infantilização dos adultos. Mas isso será assuntos para exercícios de escrita futuros.
Termino este exercício com uma citação de Eça de Queirós, esse estrangeirado involuntário que zurziu os costumes portugueses com o agulhão da sua suprema ironia: “Para ensinar há uma formalidadezinha a cumprir – saber.”