segunda-feira, dezembro 22, 2008

as metamorfoses do "ethos" natalício

Diz a canção que o Natal é quando um homem quiser. Pois sim, seja. No entanto, continua a ser celebrado em Dezembro, no dia 25. Nenhuma mudança se verificou no calendário. As mudanças ocorreram nos costumes e nos hábitos. E que mudanças! Em trinta anos, pouco mais ou menos, a celebração do Natal em Portugal transfigurou-se. Alguns traços, poucos, permanecem idênticos. A maioria deles, porém, alterou-se profundamente, obedecendo a determinismos económicos e sociais que as contingências da história da democracia mais não fizeram do que sancionar. O que ainda podemos identificar como fazendo parte da tradição natalícia reside no facto de continuar a ser uma festa de reunião familiar. A consoada (a etimologia é incerta) continua a congregar à mesma mesa o núcleo da família, mesmo quando esta vem sofrendo, nas últimas décadas, de uma desestruturação irreversível. O bacalhau, o peru, o cabrito ou o polvo pontificam ainda como os pratos consagrados para a ceia. O arroz-doce, a aletria, as rabanadas e as filhós acompanham-nos, sendo coroadas pelo bolo-rei agora higienicamente desprovido de fava e brinde. A distribuição dos presentes permanece como corolário para onde convergem atenções e interesses, sobretudo da pequenada.
Em quase tudo o que resta o Natal mudou, transformando-se numa festa de apoteose consumista. O capitalismo reinante impôs as suas leis de mercado e fez do excesso e da abundância o seu ritual de culto. O apelo ao consumo desenfreado tomou conta dos costumes e hábitos que, outrora, contidos pelo sentimento religioso eram sublimados pela aura da transcendência. O menino Jesus deu lugar ao pai natal, o presépio cedeu a sua importância, em termos representativos, à árvore repleta de luz e cor. Os embrulhos das prendas transbordaram do sapatinho e descansam debaixo da copa da árvore de natal, não sendo já revelado o seu mistério na manhã seguinte. Na paixão incontida da posse não tem lugar o mistério e a espera paciente da revelação. A paixão da satisfação imediata requer que o agora não tarde com as suas promessas de desvelação. Ao mesmo tempo que o sagrado se viu engolido pelo profano, o “ethos” natalício metamorfoseou-se e é agora outro. E nós com ele.

quarta-feira, dezembro 17, 2008

a falácia da simplificação

O ministério da educação anunciou hoje mais uma medida do seu simplex educativo. Os professores que estiverem em condições de pedir a sua reforma até 2011 estão dispensados da avaliação. Para além destes, outros docentes que tenham sido contratados para leccionar em áreas profissionais, vocacionais e artísticas, não integradas em grupos de recrutamento, estão igualmente dispensados. Serão cinco mil os professores em causa. O que está em causa é que não se trata de simplificação alguma. Trata-se de uma falácia nova – a falácia da simplificação.

O ministério de educação em destak

O desespero é grande para as bandas do ministério da educação. Torna-se por demais evidente que o sentimento que predomina hoje no ministério da educação é o desespero. E cresce. Só ele justifica um procedimento que, do ponto de vista ético, nada tem de recomendável. A prova disso é a estratégia adoptada para impor o seu modelo de avaliação, agora alcunhado de simplex. A estratégia é clara, obedecendo a um só propósito – passar a mensagem de que o remendado modelo é simples, leve, exequível e justo. Em termos retóricos, o que importa é convencer a opinião pública da credibilidade ética e argumentativa do emissor. Tal mensagem transporta em si uma outra, subliminar e insidiosa: os professores (e os sindicatos), se o não aceitam, é porque não querem ser avaliados e são pessoas de pouco ou nenhum crédito. A hostilização dos profissionais do ensino permanece, agora menos ostensiva ou mais camuflada. A Atitude dos responsáveis do ministério da educação é maquiavélica, no pior sentido. “Os fins justificam os meios”. E que meios! Tudo serve para levar a água ao seu moinho, mesmo quando se trata de água suja, cheia de detritos tóxicos. A intoxicação da opinião pública é dos mais deploráveis meios para atingir os fins desejados, em democracia. Não a serve, apenas a degrada cada vez mais. Um dos meios utilizados pelo ministério da educação pode ser testemunhado na edição de hoje de um dos jornais gratuitos – o Destak. Na página 11 deparamos com um anúncio publicitário de meia página com a chancela do ministério da educação. O título é: “as dez questões erradas sobre a avaliação de desempenho docente”. Outras perguntas se impõem. Com que legitimidade se usa o dinheiro dos contribuintes para fazer propaganda política? O uso manipulador deste meio retórico-publicitário não demonstra a ausência de argumentos sólidos? Argumentar deste modo não é passar um atestado de menoridade intelectual ao auditório a que se dirige a mensagem? A mentira e a política não coabitarão a mesma casa?

quinta-feira, dezembro 04, 2008

M.E. - "um cadáver adiado que procria"

A greve dos professores de ontem foi mais um acontecimento a marcar a agenda política do país. Pelos números de adesão (94 % e 61%, segundo números dos sindicatos e da tutela) transformou-se numa greve histórica, sobretudo se tivermos em consideração ter sido feita a meio da semana, ter mobilizado muitos professores para os seus locais de trabalho, e lhes ter saído cara esta “brincadeira”séria. Alguns argumentam que o ganho foi todo para os cofres do ministério das finanças. Feitas as contas, o governo terá encaixado qualquer coisa como cerca de 7 milhões de euros. Os mais cínicos acrescentam que dará uma preciosa ajuda para financiar os desgovernos da banca privada. De todo o modo, têm sido os professores a dar lições de democracia substantiva, pelo modo como lutam contra a ditadura de um governo que claramente já não representa uma maioria que formalmente ainda reclama. E a luta não passa apenas por exigir a suspensão deste modelo de avaliação que, por cada metamorfose kafkiana, vai exibindo a sua natureza inumana, passa por reclamar a revogação de um Estatuto da Carreira Docente indigno, substituindo-o por outro que respeite a especificidade e a importância de uma profissão que todos reconhecem como decisiva para a criação do futuro do país. Esta é sobretudo a luta por uma escola pública de qualidade, escola em que crianças e adolescentes, pobres e ricos, possam aprender a ser homens e mulheres livres e iguais, a escola que queremos para os nossos filhos e que certamente também eles quererão para os nossos netos. É por isso que esta luta é uma lição de democracia substantiva, essa democracia que não vive refém de interesses meramente economicistas e partidários, mas sabe olhar o horizonte para além do contorno da sua sombra. É uma luta contra um monstro que se olha a si próprio no espelho mágico da auto-ilusão. O ministério da educação (este) não é somente um monstro que “os seus próprios filhos devora sempre”, é cada vez mais um “cadáver adiado que procria”, para citar o grande Fernando Pessoa. Há que enterrá-lo o quanto antes, não vá a pestilência alastrar ainda mais.