quinta-feira, novembro 20, 2008

aconteceu hoje

Depois de ter estado presente na reunião extraordinária do Conselho de Ministros – marcada pelo governo para hoje, em que certamente se discutiram um conjunto de medidas que permitissem a salvação política da ministra da educação, através da implementação de um “simplex” na avaliação dos docentes, permitindo desse modo dar um novo fôlego ao processo – Maria de Lurdes Rodrigues correu para as televisões para anunciar que o seu nado-morto sobrevivera. Pouco depois das 18 horas, na SIC, e sobretudo às 21 horas, na RTP1, no programa de Judite de Sousa, a “Grande Entrevista”, a ministra da educação, agora mais humilde e reconhecendo alguns dos erros que cometeu, anunciou recuos e cedências (a que de forma eufemística chamou normais processos de aprendizagem inerentes ao processo inédito). Tudo isto num esforço último de sobrevivência política de um modelo de avaliação que, nas últimas semanas, somou críticas e reparos em catadupa, oriundos de todos os quadrantes da sociedade, inclusivamente do seio da família socialista. A imagem dela mudou perante as câmaras da televisão. A rigidez e a crispação, o autoritarismo e o autismo, deram lugar à aparente dulcificação nos modos, à abertura e ao diálogo. No resto, no essencial, foi igual a si própria: intelectualmente débil, recorrendo excessivamente à retórica vazia de um discurso mecânico mas sem substância; politicamente inábil, evidenciando as fragilidades próprias de quem não nasceu para o cargo. Mais do que isso, porfiou, com argumentos fracos e sem consistência, na defesa do indefensável. Os responsáveis sindicais já perceberam que não só cederá mais, nas negociações que amanhã serão retomadas, como não está em condições de dizer não às exigências que lhe apresentem, desde que não seja a de deixar cair o sistema de avaliação. Pois essa é mesmo a tábua de salvação da ministra e do governo. Cabe-lhes agora a palavra decisiva. Hábeis negociadores e treinados em lutas de décadas, fortalecidos por uma classe que soube dar lições (não apenas nas salas de aula) de persistência e abnegação que o espírito da justiça confere, recai-lhes sobre os ombros uma enorme responsabilidade. É bom que não se esqueçam que a primeira responsabilidade é para com aqueles que lhe devolveram a alma – os professores.

quarta-feira, novembro 19, 2008

Já viram alguma coruja tentar ironizar?

Já viram alguma coruja tentar ironizar? Foi o que aconteceu ontem com a líder do maior partido da oposição, o PSD. A tentativa de abrilhantar, recorrendo a um efeito estilístico de alto quilate, o seu discurso traduziu-se num disparate de todo o tamanho. A mensagem saiu-lhe trôpega, incoerente e sobretudo dúbia. É certo que Manuela Ferreira Leite abomina a retórica. Tem-no dito e repetido inúmeras vezes, fazendo disso mesmo um dos pontos centrais da sua oposição ao governo, a quem acusa de estar mais preocupado com a propaganda política do que propriamente com política séria. Foi a sua imagem de seriedade, aliás, que lhe permitiu ganhar a liderança do seu partido, colmatando assim um défice de credibilidade que, desde os tempos de Santana Lopes (exceptuando o período de liderança de Marques Mendes) vinha corroendo o partido por dentro. Mas isso somente não chega para atrair a si a confiança dos putativos eleitores, sobretudo daqueles que se situam ao centro e, ainda que indecisos, são estruturalmente conservadores. É preciso mais, muito mais. Acima de tudo, a mensagem tem de passar até eles, e a retórica é, desde Corax até à modernidade, passando pelo incontornável Aristóteles, a arte da persuasão por excelência. É disso que vivem os incontáveis profissionais do marketing e da publicidade neste mundo mediático de hoje. À líder do PSD, não lhe fazia mal nenhum cuidar de aprender algumas das receitas práticas que os especialistas da oratória disponibilizam a preços variados, à semelhança dos antigos sofistas da época de Péricles. A maior tragédia que se abate hoje sobre o sistema político português prende-se fundamentalmente com a inépcia discursiva dos políticos da oposição. A mensagem, por qualquer motivo inexplicável, não chega ao eleitorado, ou chega-lhe apenas de um modo impróprio e de digestão difícil. É dessa ineficácia que aproveita a maioria socialista. José Sócrates sabe-o bem, e não descura esse aspecto que se constitui como o lubrificante indispensável ao funcionamento da máquina partidária, em particular, e da democracia contemporânea, em geral.

terça-feira, novembro 18, 2008

uma crítica da razão emperdernida

A ministra da educação continua igual a si própria, à semelhança do que sucede com o primeiro-ministro. Ser igual a si próprio é um traço de carácter e pode constituir uma virtude moral ou política, mas também um vício. Enquanto traço de carácter ser igual a si próprio tanto pode significar coerência entre princípios morais e a acção – consistência entre a teoria e a “praxis” – como a mais flagrante incoerência ética ou política, bastando para isso que, por detrás desta se oculte, ainda que mascarada por uma cosmética de ocasião, somente inflexibilidade e casmurrice. Para desmarcarar semelhantes traços só uma crítica da razão empedernida.
O primeiro-ministro é igual a si próprio, todos o reconhecemos. Muitos fazem dessa sua característica a idiossincrasia própria de um “leader”, tecendo-lhe encómios que confundem, no essencial, determinação e liderança com obstinação e despotismo. O que não se pode negar é que se trata da mesma pessoa que há uns tempos atrás foi apanhada a violar uma lei promulgada recentemente – a antitabágica, que tinha sido uma bandeira deste governo – e que agora, a propósito do eventual incumprimento do modelo de avaliação docente, venha reclamar que a lei é para cumprir.Quanto à ministra da educação, também ela igual a si própria, também ela obstinada e despótica, não se pode furtar de maneira alguma às mesmas críticas, salvaguardadas as devidas diferencias. Afirma ela que o modelo de avaliação de professores está a ser implementado em muitas escolas, o que pressupõe uma aceitação esmagadora do modelo de avaliação por parte dos professores. O que significa muitas, quando em terreiro estiveram 120 000 docentes a provar o contrário? Refere igualmente que este sistema de avaliação é um instrumento que promove o rigor na distinção entre os melhores e os piores, um instrumento rigoroso de promoção da meritocracia. Uma análise mesmo que superficial do documento não pode deixar de por a nu a arbitrariedade e a carga subjectiva que suportam, na sua implementação prática às diversas escolas e aos seus contextos educativos heterogéneos, as fichas de avaliação emanadas do ministério da educação. Rigor nunca foi sinónimo de arbitrariedade e subjectividade. Por último, no Estatuto da Carreira Docente, como sua bandeira, pontifica a seguinte frase: “a criação da categoria de professor titular tem como objectivo dotar as escolas de um corpo docente altamente qualificado, com mais experiência e formação…”. O que significa isto para qualquer pessoa dotada de bom senso? Precisamente que a alta qualificação dos professores titulares decorre dos longos anos desse “saber de experiências feito”, para citar o poeta maior das letras lusas. Mas não, estamos todos enganados. Para a tutela que implementou os mecanismos de selecção dos melhores, isto significou os últimos sete anos da carreira. A professora Elsa Cerqueira, que escreveu um texto onde evidencia estas incongruências, chama-lhes, com um rigor e exactidão de análise que caracteriza o bom profissional do ensino, “os paradoxos da política educativa”. Eu vou um pouco mais longe. Trata-se de um elementar traço de carácter que alia as características da incompetência intelectual e da cegueira ou surdez éticas. Isto num político paga-se caro, mais tarde ou mais cedo.

sábado, novembro 15, 2008

a desdita da ministra

A propósito da contestação dos professores e dos alunos de que a última semana tem sido fértil, a ministra da educação mostra-se determinada e inflexível, mas não disfarça a sua desdita. Afirma que esta avaliação dos professores e este estatuto do aluno não serão suspensos nem substituídos. Diz também que “é preciso um simplex para a avaliação dos professores” e que nem lhe passa pela cabeça a desobediência por parte das escolas, que a lei é para cumprir, etc, etc.
Quanto à primeira das afirmações, uma único comentário: eu não teria assim tanta certeza, sobretudo se tivermos em conta esta política do faz de conta que hoje afirma uma coisa e amanhã o seu contrário, e ainda tem a lata de reclamar para si própria a hegemonia da coerência. À segunda afirmação pergunto o seguinte: por que não se lembrou disso antes? Foram as manifestações de desagrado suficientes para lhe iluminar a mente? À última contraponho uma citação de Henry David Thoreau, em “A Desobediência Civil”, o inspirador de Martin Luter King, Mahatma Gandhi, entre outros: “Não é desejável cultivar o respeito às leis no mesmo nível do respeito aos direitos. A única obrigação que tenho direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo que julgo certo, Costuma dizer-se, e com toda a razão, que uma corporação não tem consciência; mas uma corporação de homens conscienciosos é uma corporação com consciência. A lei nunca fez homens sequer um pouco mais justos; e o respeito reverente pela lei tem levado até mesmo os bem-intencionados a agir quotidianamente como mensageiros da injustiça.”

mais oito mil, uma semana depois

Oito mil professores manifestam-se em frente à Assembleia da República contra as políticas educativas do governo socialista. Depois da manifestação dos cento e vinte mil, precisamente há uma semana, voltaram à rua para exigir a substituição de Maria de Lurdes Rodrigues e a suspensão imediata do modelo de avaliação dos docentes. Voltaram à rua: para dizer que a sua luta não se reduz a uma defesa (legítima, num sistema democrático) de interesses corporativos; para gritar em uníssono que estão fartos da desconsideração de que sistematicamente são alvo, por parte do executivo; para dizer que não os amedrontam ameaças veladas ou explícitas; para contestar a atitude autista e despótica do governo, inadmissível num regime político pluralista; para acusar o governo de pretender uma vez mais enganar os portugueses; para mostrar que não são uma cambada de carneiros às ordens de nenhum pastor; para demonstrar que em democracia as decisões se tomam pela força dos argumentos e não por argumentos de autoridade; para expressar a sua indignação e o seu veemente repúdio pelas insinuações maldosas e irresponsáveis que alguns membros do governo proferiram na última semana, a propósito das manifestações dos estudantes do ensino secundário. Voltaram à rua para simplesmente afirmar que a luta continua, que a luta é sem tréguas e com consequências políticas, nem que mais não seja a de constatar que a democracia portuguesa está viva. Esta foi uma vez mais uma lição de democracia.

quinta-feira, novembro 13, 2008

de palavras se tece este mundo e o outro

A língua portuguesa, que como toda a gente sabe é muito traiçoeira, proporciona ainda assim – abençoada seja! – inumeráveis momentos de gozo, de puro prazer. É por isso que a amo, por ser assim tão deliciosa. E porque vivemos tempos difíceis, tempos em que os prazeres, mesmo os mais comezinhos, custam-nos os olhos da cara, recorro aos prazeres da língua e deixo-me levar pelos sentidos múltiplos das expressões ditas e escritas e pela polissemia das palavras. Mergulho nas águas desse rio caudaloso em dias de primavera tardia e refresco-me recordando as palavras sábias do sábio Heraclito: “ninguém se banha nas águas do mesmo rio”. De palavras é feita a realidade, a nossa, a humana, por não termos outra. É com as palavras que descobrimos o brilho intenso do sol nos tórridos dias de Verão, as cores suaves ou berrantes das coisas naturais, dos artefactos e dos factos, próximos ou distantes; com elas encontramos o caminho que nos leva a casa ou nos perdemos; com as palavras dizemos o amor ou o ódio, nomeamos a esperança e maldizemos a dor e o desespero; são as palavras que nos dizem o que queremos e o que quereríamos nem lembrar; de palavras é feita a matéria densa ou etérea que a imaginação amplifica e disforma a seu bel-prazer; de palavras se tecem teorias, verdades e mentiras, poemas e prosas, erros ou utopias; as palavras permitem até dizer o seu limite – o inominável. De palavras se tece o mundo, este e os outro.

quarta-feira, novembro 12, 2008

os ovos e as omeletas de Fafe

Não há omeletas sem ovos. É um dito popular que toda a gente conhece, mesmo os mais novos. O que os adolescentes de Fafe quiseram ontem demonstrar, no seu jeito despreocupado e quiçá inconsequente, foi tão somente isso mesmo. E ninguém os pode acusar de incoerência. A ministra deslocava-se à Escola Secundária de Fafe para uma cerimónia (mais uma) de entrega de diplomas dos cursos “Novas oportunidades”. Os alunos, não vai de modas, atiraram uns poucos de ovos contra os carros da comitiva ministerial, pretendendo, com o seu gesto, mostrar que os ovos são um ingrediente necessário para se fazer omeletas, mesmo em se tratando de culinária educativa. O que eu não percebo, verdadeiramente, são essas manifestações de repúdio e de moralismo bafiento perante os gestos de duas centenas de garotos e de garotas. Ao menos há que se lhes dar o benefício da dúvida. Porventura excederam-se, na antecipação do carnaval. Talvez andem confusos com a tamanha turbulência e insatisfação que se vive hoje em dia nas escolas portuguesas. O primeiro-ministro teve apenas um comentário, com o seu ar crispado e olhar a chispar ódio: “lamentável”. Pois bem, sê-lo-á. Admito. Mas mais lamentável tem sido o comportamento do governo perante as reivindicações de professores e alunos em coisas que afectam profundamente o quotidiano das escolas. Mais sensata se revelou a ministra, ao manter o silêncio. Ela percebeu certamente que as atitudes dos estudantes de Fafe, por excessivas que fossem, estão de acordo com o que é próprio da sua faixa etária. Não os podendo acusar de inconsistência – ela que tinha comentado, há dias, as suas manifestações como naturais e próprias da sua idade, desvalorizando-as – calou-se. E fez muito bem. Ainda que apenas um poucochinho, subiu uns pontos na minha consideração.

domingo, novembro 09, 2008

crónica das reacções anunciadas

O Primeiro-Ministro e a ministra da educação reagiram de modo concertado à manifestação dos 120 mil professores e à sua exigência de pôr fim ao kafkiano modelo de avaliação de professores. Outra coisa não seria de esperar. Quem esperava outra reacção, da parte do executivo e da tutela, ou é ingénuo ou está de tal forma desesperado que não conseguia perceber o óbvio. Não quero dizer com isto que os dois políticos têm razão, longe disso. Nenhuma ou muito pouca razão lhes assiste neste diferendo. E se alguma tiveram (na consideração de que a progressão na carreira docente deveria passar obrigatoriamente por alguma espécie de prova de mérito), depressa deixaram de a ter, ao propor um modelo de avaliação assente na burocracia, na arbitrariedade, na injustiça relativa, que tudo pode promover menos o mérito. Aliás, as políticas educativas deste governo cedo evidenciaram um só rumo e uma só estratégia, a saber, reduzir custos e hostilizar a classe docente, diminuir a sua imagem junto da opinião pública ao grau zero de importância. Por isso – recordam-se – começaram por montar uma máquina de desinformação e de propaganda anti-professor. Eles eram uns “baldas” incorrigíveis, absentistas crónicos, os verdadeiros responsáveis pelo estado calamitoso das aprendizagens dos nossos estudantes. E ainda por cima formavam uma corporação ensimesmada, preocupada apenas com o seu bem-estar e orquestrada por sindicatos manipulados pelo PCP. Se a imagem do professor vinha sofrendo a erosão própria da democratização dos costumes e das ideias, sob o pressuposto do igualitarismo e do nivelamento que acompanha todo o processo histórico da modernidade, rapidamente se transformou no bode expiatório de todos os males educativos. Vilipendiada e ofendida, sofrendo ataques de todas as latitudes, e incapaz de responder eficazmente às acusações de que era alvo, porventura fruto de algum sentimento de má-consciência, a classe soçobrou animicamente e permitiu que lhe depusessem sobre a cerviz a canga da ignomínia. Aceitou a fractura mais fatal de que ainda hoje se lamenta amargamente: a divisão torpe e mesquinha de carreiras (professor e titular). A partir daí sentiu na garganta o fel e o veneno que pouco a pouco a asfixiam. Isso explica o abandono precoce de tantos professores nos últimos dois anos. Reagiram tarde, mas mais vale tarde que nunca. Em oito meses foram protagonistas de duas manifestações históricas. A última, a de ontem, teve dimensões epopeicas, e fez certamente tremer o adversário. Mas na política, há que acima de tudo salvar as aparências. Do meu ponto de vista, José Sócrates e Maria de Lurdes Rodrigues não poderiam ter reagido de outra forma. É a crónica das reacções anunciadas. Por várias razões. Primeira: não possuem uma cultura democrática suficiente para que tal fosse possível. Segunda: não seria o momento oportuno, em virtude da “realpolitik” que pauta a sua prática governativa. Terceira: aguarda que a tormenta passe e/ou que os professores joguem o jogo de "faz de conta" da avaliação, indo ao encontro daquilo que a ministra da educação preconiza. Entretanto, na semana que vem qualquer “fait divers” económico político ou outro, oportunamente passará para os tablóides mediáticos e relegará o acontecimento de ontem para o rol dos esquecidos. Pelo menos até à próxima, que pelo vistos, estará para breve.

sábado, novembro 08, 2008

a manifestação dos professores e os dilemas do governo

Exactamente oito meses depois de cem mil professores se terem manifestado, em Lisboa, contra as políticas educativas que o governo socialista tem tentado implementar, nomeadamente o modelo de avaliação docente, voltámos a assistir hoje a um protesto que mobilizou, para a capital, cerca de 80 por cento dos docentes deste país – à volta de cento e vinte mil, se fizermos fé na informação divulgada pelos sindicatos, pois a PSP não se quis (ou não pode) arriscar número, ao contrário do que sucedeu com a manifestação anterior, o que não pode deixar de causar estranheza.
Perante as imediatas reacções da ministra da educação, Maria de Lurdes Rodrigues, que se desmultiplicou em directos televisivos, ainda muito antes de a manifestação ter chegado ao seu termo, nenhuma outra conclusão se pode extrair que não seja esta: trata-se de uma guerra sem fim à vista. Duas forças que se medem num braço-de-ferro que tem como oponentes professores e governo. De um lado, a força de uma classe profissional que, ainda há bem pouco tempo, nem suspeitava que a tinha. Do outro lado, uma força política que se obstina em prosseguir com uma reforma condenada, a dado momento, ao fracasso. Que momento foi este? Precisamente o momento em que o governo, enquistado no seu autismo dogmático, se recusou ponderar outras razões e sopesar outros argumentos que não fossem os seus, perdendo aí a oportunidade de congregar as únicas forças capazes de levar a efeito a pretendida reforma educativa. Não tenhamos ilusões: em democracia, nenhuma reforma séria se concretiza hostilizando aqueles que se encarregarão de a pôr em prática.
Os discursos produzidos pela ministra da educação, nos directos televisivos em que desdobrou as suas intervenções, constituem um oportuno caso de estudo e um interessante objecto de análise, precisamente porque se trata de um agente político num cenário de democrático. Sabendo-se que o vigor e a legitimidade das democracias modernas se atesta pela capacidade de diálogo, pela disponibilidade para gerar e gerir consensos, pelo respeito pelas vozes discordantes e pela capacidade de convencer racionalmente os grupos e as minorias renitentes ou conflituantes, Maria de Lurdes Rodrigues demonstrou, uma vez mais, não ter perfil democrático. Recusa-se a ver o óbvio e a entender o evidente. Acumula erros atrás de erros. O seu discurso deixou de persuadir mesmo as mentes mais destituídas de massa crítica, tal o modo como vai repetindo e repisando a mesma ladainha. Os seus argumentos perderam, por isso, solidez e consistência. Afirmar que esta manifestação constitui uma forma de intimidação e de chantagem contra os professores e as escolas que aceitam o seu modelo de avaliação só pode ser entendido como desvario e desespero. Das muitas falácias em que incorre o seu discurso, destaco uma, vulgarmente designada “falso dilema”, e que se traduz na ideia de que existem apenas duas alternativas possíveis. Dizer que só existem dois modelos de avaliação, o antigo, que nada e a ninguém avaliava, e o actual, que é fruto de dois anos de estudo e de implementação, constitui um elementar erro de raciocínio só aceitável em pessoas de menoridade intelectual parente da idiotia ou da má-fé.
Tudo isto serviu às mil maravilhas aos sindicatos e outras forças políticas da oposição. Aqueles voltaram a ter uma oportunidade para capitalizar a força do seu rebanho que, nos últimos tempos parecia tresmalhado. Num ápice, souberam pedir às suas hostes a força e a legitimidade de que há tanto tempo careciam. O trabalho que o governo teve, ao longo de toda a sua legislatura, para desacreditar os sindicatos, caiu por terra. Os anúncios de novas contestações e formas de luta, o espectro de conflitualidade que pode ter a expressão de greves gerais, é uma prova disso. Os partidos da oposição, da esquerda à direita, foram a reboque e aprontam-se para capitalizar simpatias que, nas próximas legislativas, podem valer votos, e a perda da maioria absoluta que poucos já parecem desejar.
O governo parece estar agora encostado entre a espada e a parede, num dilema que pode bem provocar uma diminuição da sua credibilidade política, da sua autoridade democrática, e ditar o seu fim. Parafraseando o Primeiro-Ministro: “é a festa da democracia”. E que festa, meu Deus!

terça-feira, novembro 04, 2008

o rosto da crise

A crise financeira está definitivamente instalada no seio da sociedade portuguesa. O crescimento económico, segundo a Comissão europeia, vai ser negativo nos 3º e 4º trimestres do ano (respectivamente – 0,3 e – 0,1 por cento), o que nos transportará para um universo de recessão técnica. A mesma Comissão prevê um crescimento anual de 0,5 e 0,1 por cento para 2008 e 2009, longe das previsões do governo: 0,8 e 0,6 por cento. De Bruxelas vêm-nos também más notícias no que concerne ao défice para os próximos dois anos (acima dos três por cento) e ao desemprego que sem dúvida aumentará. Provavelmente acontecerá o mesmo à inflação e a muitos outros indicadores de riqueza (melhor diria, de pobreza).
Ainda há uns meses atrás o governo negava aquilo que já toda a gente sabia: a crise está aí. No entanto, as evidências da crise impuseram-se, transformando-se num facto indesmentível. Os nossos governantes, então, não tiveram outro remédio se não aceitar o óbvio. Depressa, porém, assessorados por especialistas do marketing político, transformaram a evidência da crise numa oportunidade não apenas para se descartar uma vez mais de responsabilidades – a culpa é sempre dos outros, outrora o PSD, agora a política financeira internacional – mas também para construírem um orçamento de estado à medida dos eleitores de 2009. A novidade da crise reside no facto de ela se ter tornado endémica. Os portugueses em geral mostram-se agora mal dispostos, irritadiços, pouco tolerantes, com os nervos à flor da pele, em suma, insuportáveis. O outro tornou-se, para cada um de nós, o fantasma do inferno. À medida que o aperto do cinto se vai tornando mais forte, as suas carantonhas vão ganhando os contornos e a expressão da fatalidade de outros tempos. E que fatalidade! É o rosto da crise.

segunda-feira, novembro 03, 2008

a moda do mundo bio

O mundo Bio está na moda. A crescente valorização do biológico constitui, hoje por hoje, um dos sinais dos tempos. Desde que o mistério da descodificação da estrutura do DNA do genoma humano foi resolvido, o mundo tornou-se mais bio. Apareceram saberes novos como resultados da articulação da biologia com outras áreas científicas (a bioinformática, a biotecnologia, etc.) que nos transportam para o reino da ficção científica de ontem ou para o mundo do amanhã. Os sonhos e as utopias do passado transformam-se, num ápice, na realidade do presente possível ou mesmo no “futurível” dos dias mais próximos. Nisto tudo, o que está em jogo é a definição do humano.
A moda do bio tem outras facetas menos distantes e mais comezinhas. A tal ponto assim é, que não é descabido falar de uma visão do mundo com contornos biológicos – uma “weltanschauung” bio. Se olharmos em redor, constatamos a marca bio por tudo quanto ocupa espaço e tem duração, mesmo que efémera. Efémera mas mágica. São os iogurtes que, para além dos mil e um sabores, se dizem bio, hambúrgueres bio, cereais bio, shampoos e detergentes bio, maquilhagem e roupas bio. Tudo isto e muito mais invadiu a nossa atmosfera quotidiana que de biológica pouco mais aparenta ter que o nome.A pujante moda bio é como o Toyota – veio para ficar. Em expansão parece estar também a agricultura biológica. Num repente, os consumidores com algum poder económico descobriram os benefícios da agricultura biológica. E vai daí, não só desataram a gastar os consumíveis de pretensa origem biológica como, para além disso, formaram eles próprios uma confraria com alguns contornos religiosos. Entre eles, já não é a razão que determina os usos e os costumes, os actos e os rituais, mas sobretudo a fé. Ora, nestas coisas, como em tudo o resto, a fé é adversária da sã razão. A fé é por norma maniqueísta, fundamentalista, e tudo vê a preto e branco. A falácia do falso dilema é uma constante no raciocínio dos fundamentalistas da (agri)cultura biológica: se não estás connosco, és contra nós. Ou natural ou artificial. A diabolização de tudo o que não aparenta ser biológico é uma consequência inevitável do entendimento estreito desses paladinos da vida imaculadamente bio – dos transgénicos ao papel higiénico, do “fast food” aos fármacos. Não pretendo dizer que não lhes assista razão alguma. O que não entendo é por que razão as cenouras que comprei numa loja de agricultura biológica, no último fim de semana, tem de ser apresentadas cheias de terra (dando a ilusão que foram acabadas de arrancar) e se encontravam expostas ao lado de umas couves portuguesas envolvidas num plástico, que lhes emprestavam um ar asséptico. Assim como não entendo a razão dos preços exorbitantes de muitos dos produtos, como por exemplo o dos queijos frescos (de que só tomei conhecimento na caixa quando estava prestes pagar). A não ser que a fé cega própria dos fundamentalismos tudo justifique, sobretudo a ausência de espírito crítico de muitos dos consumidores convertido à moda do mundo bio.
Os professores voltam à rua no próximo dia 8 de Novembro. Os sindicatos e os diversos movimentos autónomos de professores chegaram a acordo quanto à data da realização da marcha de protesto contra o modelo de avaliação imposto pela tutela. O primeiro-ministro e os responsáveis do ministério da educação dizem não entender a razão do protesto, e acusam os sindicatos de não respeitarem o memorando de entendimento assinado um mês e pico após a marcha dos cem mil que o ano passado impressionou o país. Os sindicatos, por seu turno, afirmam que foi o próprio ministério a não respeitar o memorando da discórdia. Neste braço de ferro entre governo e sindicatos percebe-se que a força dos braços oponentes vai fraquejando, corroída por jogos de interesses. A única força parece estar do lado dos professores. Apesar do desgaste causado por um modelo de avaliação que os penaliza – melhor diria, escraviza – e os subalterniza, que parece ter sido pensado contra eles e não a seu favor (pese embora os argumentos da tutela que só persuadem os desinformados e aqueles que sempre estiveram de má-fé, mas não convencem racionalmente ninguém), os professores, ao contrário do que amiúde se afirma, têm razões de sobra para se mostrarem insatisfeitos e para, uma vez mais, manifestarem na rua, em mais uma jornada de luta, as razões do seu descontentamento. Era bom que sindicatos e governo, de uma vez por todas, saibam capitalizar essa força da razão e a aproveitem para construir de vez um modelo de avaliação que sirva definitivamente as reformas urgentes que a escola merece e o país necessita, como pão para a boca.