domingo, setembro 28, 2008

crónicas caninas I

O meu cão já não é um cachorro. É agora um ser adulto da espécie canina. Está prestes a fazer dois anos e, inevitavelmente, perdeu alguma da graça que tinha. Graça que tem tudo o que é pequenino, imaturo e desinquieto. O que perdeu em vivacidade e espontaneidade, ganhou em continência (física e psicológica). Nas perdas e ganhos do crescimento, nessa passagem quase iniciática de uma ordem do ser para outra, muitas transformações se foram operando: deixou de fazer as suas necessidades em casa (um drama mais humano que canino), deixou de olhar para os pequenos rolos de merda que acabava de depositar no chão da casa como apetitosos croquetes de carne, perdeu a mania de roer tudo o que se encontrasse à distância de um abocanhar e de carpinteirar os móveis da sala e do hall, amenizou a ânsia de perder os donos quando estes se ausentavam de casa mesmo por breves instantes; ganhou estabilidade emocional nas ausências quotidianas dos membros mais velhos da matilha (nós), ganhou algum tino na sua exigência de brincar a toda a hora, dorme mais.
As mudanças mais significativas, porém, ocorreram nos momentos imediatamente posteriores às suas estadias forçadas em canis. Por cada temporada passada nos seus campos de férias, mesmo quando não excedia dois a três dias, levava algum tempo até que recuperava a confiança. Por uma ocasião perdeu mesmo a voz: deixou de vocalizar alguns sons característicos que, por antropomorfização, interpretávamos como próximos do linguarejar humano. Hoje em dia é um cão diferente. Mas continua feliz, sobretudo quando passa temporadas numa aldeia do norte. Aí só tem por limites os territórios marcados por outros cães que ele fareja à distância, o cajado do pastor que não lhe permite aproximar-se do rebanho que pastoreia nos prados verdes, e a noite que ele sabe que é o momento de regressar ao seio da matilha. Por vezes depara-se com o inesperado de um cão hirsuto que, inopinadamente, lhe rasga o casado de pêlo preto que nunca despe. Tudo o resto é liberdade à solta. Liberdade para ladrar aos forasteiros que se avizinham da casa onde a matilha se acolhe. Liberdade para trotar pelos lameiros, saltar muros, atravessar milheirais, brincar horas a fio com outros cães que já aprenderam a vir rondar os muros do jardim como quem o vem chamar para uma ronda de circunstância. Afeiçoou-se à canzoada que o distingue como um dos seus.
Entre as demais transformações que o meu cão sofreu, a mais profunda é a de consciência (não alinho na proverbial distinção que separa os humanos racionais dos bichos irracionais). O meu cão é um cão com consciência de classe – ou da falta dela, rafeiro como é. Detesta cães classificados com pedigree: dálmatas, caniches, cockers, etc. Até parece conhecer a cartilha marxista de uma ponta à outra quando se depara com qualquer cão a passear maneirismos de nobreza de sangue ou burguesia de espírito. Quando assim acontece, o meu cão rafeiro tem a mania que é doberman ou roteweiller. Eriça a pelagem do cachaço, arreganha os dentes, espeta o rabo, e o todo o seu corpo se inteiriça e ganha tamanho, como se num repente a sua memória ancestral de lobo predatório tomasse conta de todas as células do seu ser. Nesses momentos, torna-se um problema bicudo segurá-lo, ao ponto do couro de que é feita a trela parecer que se vai desfazer em tiras. Apesar disso, continua a ser um cão lindo. O mais lindo cão do mundo.

segunda-feira, setembro 22, 2008

as explicações e a política

Cerca de 120 euros por mês é o preço, em média, que as famílias portuguesas das classes média e média alta (e as outras?) gastam com os seus filhos em explicações. Aproximadamente 1400 euros por ano e por filho. E tudo isto em virtude da legítima pretensão de garantir um futuro melhor à sua prole. Os números apresentados pelos investigadores da Universidade de Aveiro, por si só, dão que pensar. Não está em causa se as famílias, mesmo as de maiores rendimentos, gastam muito ou não em tempos de evidente crise económica. Também não se trata de especular acerca dos benefícios ou malefícios que as explicações acarretam à autonomia intelectual dos estudantes. A questão é, antes de tudo, política, e como tal deve ser formulada. Não estaremos perante uma privatização ou semi-privatização camuflada do ensino público? Se a resposta é afirmativa, impõe-se saber se, para garantir a equidade deste sistema de educação misto, não caberá ao estado distribuir pelas restantes famílias – as carenciadas – cheques-explicações no valor mensal médio de 120 euros. Ou alguém acredita que podem quaisquer outras medidas governativas acabar com os centros explicativos ou repor um mínimo de condições igualitárias de oportunidades de ensino?

domingo, setembro 21, 2008

as explicações e a prostituição do ensino

Uma semana depois de alguns membros do governo se terem passeado pelas escolas deste país moribundo a distribuir prémios de mérito para os melhores alunos de cada escola e a enaltecer as virtudes da sua política educativa – numa manifestação clara de marketing político –, Maria de Lurdes Rodrigues referiu-se hoje ao estudo feito por investigadores da Universidade de Aveiro sobre o fenómeno das explicações que as famílias portuguesas pagam, para assegurar o bom desempenho escolar dos seus filhos, como uma realidade própria de um país do terceiro mundo. Lamenta-se a ministra da educação que tudo isto acontece apesar de ter criado as aulas de substituição e as aulas de apoio assistido. E acrescenta que o país não se pode conformar com os factos e que se tem de exigir às escolas que cumpram o seu papel na íntegra, para assim acabarmos definitivamente com a situação de uma escola bifronte: uma escola pública de manhã e outra privada de tarde. Uma vez mais, a senhora ministra falou com a retórica do coração, o que a médio e longo prazo se traduzirá num erro político.
O estudo revela aspectos interessantes, que merecem mais do que o simples lamento ministerial e uma má disfarçada atribuição de responsabilidades às escolas e aos professores.
Em primeiro lugar, são as famílias com maior poder económico – classes média e alta – que recorrem às explicações, o que diz muito acerca do índice de democraticidade do nosso sistema de ensino, em que a igualdade de oportunidades figura apenas como letra morta da lei. Em segundo lugar, o fenómeno alterou-se em termos de mercado: se no passado era protagonizado pelo explicador doméstico, por norma um professor ou uma professora de carreira, que usava os seus tempos livres (muitos) para aumentar a renda mensal; agora predominam os centros de estudo, cuja natureza comercial é um inequívoco sinal dos tempos, estando de acordo com as leis do mercado neoliberal. Em terceiro lugar, são os professores recém-formados, que por norma ficaram de fora das vagas abertas em concurso, que recorrem aos centros para sobreviverem e potenciarem a sua carreira futura.O fenómeno das explicações, nos moldes actuais, está em expansão, garantem os investigadores, isto à revelia dos propósitos da ministra da educação que, há dois ou três anos, aumentava a carga horária dos professores para os impedir de acumular, entre outras coisas. Curiosamente, são os professores excedentários, em início de carreira, que alimentam o comércio das explicações, esses mesmos que se vêem empurrados para uma carreira paralela no privado, para uma prostituição forçada, ajudando desse modo a suprir as necessidades que o ensino público não é capaz de satisfazer. Enquanto isso, os professores, nas escolas, ocupam cada vez mais o seu tempo com questões e processos que nada têm que ver com o ensino e a pedagogia, carregando um fardo burocrático que os impede de se dedicarem de corpo e alma aos alunos. E assim anda o ensino cada vez mais prostituído.

quinta-feira, setembro 04, 2008

apontamento breve

Na ressaca do retorno aos trabalhos e aos dias do quotidiano, posso dizer que as passadas não foram as melhores férias da minha vida. Desconfio mesmo que cheguei a uma idade em que afirmar o contrário já está para lá das minhas possibilidades. Não, não se trata de pessimismo ou algum traço de carácter a puxar à melancolia. Acontece apenas que uma dose mínima de lucidez me força a olhar com realismo para a vida. Certamente vivi já mais tempo do que me resta viver. E a parte restante, convenhamos, não será a mais fácil. Se tudo correr como é normal que corra, o pior ainda está para vir. Não vale a pena, porém, desassossegar demasiado. O melhor é adoptar o epicurismo decadente de um Ricardo Reis que defende: “Melhor vida é a vida / Que dura sem medir-se.” O qual culmina numa ética da abdicação que sentencia: “Senta-te ao sol. Adbica / E sê rei de ti próprio.”