terça-feira, julho 29, 2008

quase de volta às crónicas caninas

Volto às crónicas caninas. A razão é simples: não me apetece escrever sobre o mundo abaixo de cão em que se transformou a vida dos portugueses nos últimos meses. Sabe-se agora que que as previsões de crescimento anunciadas pelo governo, no princípio do ano, estão não passam de uma miragem, caindo vertiginosamente à razão inversa das subidas de temperatura deste Verão que promete ser tórrido. O que também sobe, à semelança do balão da canção da Manuela Bravo è a inflação. Os 2,1 % prognosticados pelo governo não passam de um efeito da miopia crescente de que sofrem estes nossos governantes. O que não parou de subir foram as notas dos exames – sobretudo as de matemática. De um ano para o outro, os nossos estudantes do básico e do secundário transformaram-se em esmerados seguidores de Pitágoras, o que dentro de uma dezena de anos nos vai deixar felicíssimos. Entretanto o governo passou a admitir a crise, mas assegura que tem causas mais externas que internas, o que para o cidadão comum deve significar muito na hora de pagar as suas contas. Anunciou também mais uma medida orwelliana, consubstanciada na ideia de intrudizir um chip obrigatório (pago evidentemente pelo utilizador) nas matrículas dos automóveis. O meu desejo é que o governo vá de férias, gozar o calor e a praia e me deixe descançado com a minha crónica canina. Em tempo de crise e de carestia de vida resolvi escrever acerca da minha última descoberta – o preço exorbitante dos canis. É que também eu vou de férias e durante uma semana sou obrigado ( o que muito me custa) a deixar o meu cão (agora já um homem, perdão, um cão e não um cachorro) num canil. Não é a primeira vez (será a quarta) e sempre paguei o montante que me pediram sem deitar contas à vida. Até que me pus a pensar e ... caramba! Trata-se de um autêntico roubo. Passo a explicar porquê. A quantia que me pedem pela diária é de 10 a 12 euros, com pensão completa mas sem duche (se o desejar pagarei pelo serviço). O espaço ocupado pelo meu cão não terá mais de quatro metros quadrados, despedido que quaisquer comodidades. Para se deitar tem apenas o mosaico de que é forrado o chão do seu compartimento. Ora, se compararmos o preço pedido pelo dono do canil com preço de uma diária num hotel de três estrelas (sejamos benevolentes) da períferia, o que constatamos é que mesmo a vida de cão está pelas horas da morte.

quinta-feira, julho 03, 2008

A crise da modernidade: tradição, autoridade e educação



A tradição já não é o que era

“Na medida em que o passado se transmite sob a forma de tradição, possui autoridade; na medida em que a autoridade se apresenta historicamente, converte-se em tradição. Walter Benjamin sabia que a ruptura com a tradição e a perda da autoridade que se verificaram no seu tempo eram irreparáveis, e concluiu daí que era preciso descobrir novas formas de relações com o passado.” Hannah Arendt, Homens em Tempos Sombrios

1. Tradição e Modernidade

O conceito tradição é tematizado por Hannah Arendt em muitos dos seus escritos. Podemos afirmar que ele percorre a sua obra, contribuíndo para a originalidade do seu pensamento político, bem patente na importância que a filósofa atribui ao povo romano. A articulação dos conceitos tradição, religião e autoridade, constitutivos da, “trindade romana”, a par da tematização da crise da modernidade, que é antes de mais uma crise que se increve na esfera política, conferem consistência à constatação reiterada do rompimento do fio da tradição.

A tradição do pensamento político nasce com Platão e tem o seu ocaso no coração da modernidade, quando a experiência do político perdeu o seu significado, como reflexo da cisão radical entre pensamento e acção.

“A nossa tradição de pensamento político teve início quando Platão descobriu que afastar-se dos assuntos humanos é algo de inerente à experiência filosófica; e terminou quando desta experiência já nada mais restava senão a oposição entre agir e pensar, oposição essa que, privando de realidade o pensamento e de sentido a acção, fez com que ambos se tornassem desprovidos de significado.” (E.P.F., p.39)

A noção de ruptura, inerente à modernidade, pressupõe a existência de um antes e um depois. O que caracteriza esse antes da modernidade? Trata-se do mundo pré-moderno em que a tradição servia de fundamento à comunidade política, garantindo a sua existência.

A crise da modernidade é reveladora um tipo de relação ao mundo tradicional, que deixou de existir. A análise da crise da educação revela que os valores da “trindade romana – a religião, a autoridade e a tradição” – foram progressivamente postos em dúvida, na idade moderna, tendo depois sido erradicados no mundo actual. Doravante, o sentido originário dessa relação ao mundo foi prevertido, assim como a existência política.

“O vigor desta trindade residia na força vinculadora de um começo investido de autoridade, ao qual os homens estavam unidos por laços religiosos através da tradição. A trindade romana não só sobreviveu às transformações da república num império, mas penetrou também nos locais onde a pax romana edificou sobre as bases romanas a civilização ocidental” (E.P.F., p.138)

A crise referida por Hannah Arendt é um fenómeno que resulta de um longo e continuado processo histórico, iniciado na idade moderna, com o desaparecimento do mundo romano e cristão, e que culminou no mundo moderno. Se naquela ocorre uma fractura entre o passado e o futuro, neste o fenómeno radicaliza-se ao ponto de se transformar numa ruptura sem precedentes, numa brecha por onde escoaram o senso comum, o mundo comum e as categorias políticas, e de onde emergiram, entre outros, o isolamento, a alienação do mundo, a superficialidade, a sociedade de massas, assim como a experiência totalitária do nazismo e do estalinismo.

A articulação entre tradição, senso comum e mundo comum é outra constante no pensamento de Hannah Arendt. Encontra-se no texto A crise na educação como uma das suas causas maiores, sobretudo se tivermos em conta que essa crise é manifestação de uma crise mais profunda, a dos valores gerais da modernidade que coexiste com o “eclipse do mundo comum”. Num texto intitulado A tradição do pensamento político, Arendt expõe essa articulação de modo claro:

“Historicamente, o senso comum é romano tanto de origem como em termos de tradição. Não é que os gregos e os judeus não tivessem senso comum, mas só os romanos o desenvolveram a ponto de o tornarem o critério superior na gestão dos assuntos públicos e políticos. Com os romanos, recordar o passado passou a ser uma questão de tradição, e foi no sentido da tradição que o desenvolvimento do senso comum encontrou a sua expressão politicamente mais importante. Uma vez que o senso comum se liga à tradição e é por ela alimentado, quando os modelos tradicionais deixam de fazer sentido e deixam de funcionar como regras gerais que permitem subsumir todos ou a maior parte dos casos particulares, é inevitavel que o senso comum tenda a atrofiar-se. (...) Este método ‘prático’ de remomoração do senso comum não requeria qualquer esforço, mas recebíamo-lo, num mundo comum, como herança partilhada. Por conseguinte, a sua atrofia provocou imediatamente uma atrofia também da dimensão do passado e desencadeou o movimento arrastado e irresistível de esvaziamento que estende um véu de sem-sentido sobre todas as esferas da vida moderna.” (P.P., pp. 40-41)

A ruptura definitiva com a tradição, que ocorreu apenas no séc. XX e que marca a transição da idade moderna para o mundo moderno, é pois o culminar de um processo de radicalização da dúvida, iniciada por Descartes no dealbar da modernidade.

Inserindo-se ainda no seio da tradição, Descartes é o protagonista (em parte involuntário) mais representativo de um movimento cada vez mais abrangente de suspeita em relação às verdades metafísicas que no passado eram tomadas como evidentes, quer no plano filosófico quer no plano religioso da revelação divina. Deste movimento emerge a ciência moderna que, paulatinamente, vai assumindo o lugar outrora ocupado pelos sistemas metafísicos de representação do mundo, sem contudo assumir o seu papel de assegurar a consistência ontológica da realidade.

“Desde o surgimento das ciências, cujo espírito se traduz na filosofia cartesiana da dúvida e da desconfiança, o quadro conceptual da tradição da tradição deixou de estar seguro. (...) Uma vez desaparecida a confiança em que a realidade se nos mostrava tal como é, o conceito de verdade como revelação tornou-se duvidoso, e com ele a fé inquestionável num Deus objecto de revelação. O sentido do conceito de ‘teoria’ alterou-se: já não significava um sistema de verdades racionalmente articuladas (...), passou antes a significar a teoria científica moderna, ou seja, uma hipótese de trabalho passível de ser alterada consoante os resultados que produz e cuja validade depende não daquilo que ‘revela’ mas do facto de ‘funcionar’.” (E.P.F. p.53)

Os protagonistas que por último aceleraram o referido processo de transição e de ruptura, foram, segundo Hannah Arendt: Kierkegaard, Marx e Nietzsche. Estes filósofos da suspeita “situam-se no final da tradição, justamente antes de se dar a ruptura” (E.P.F., p.41). Cada um a seu modo vai lançar o seu repto à tradição, contribuindo para a reviravolta decisiva e radical que caracteriza a modernidade.

“Kierkegaard, Marx e Nietzsche são para nós como balizas indicadoras de um passado que perdeu a sua autoridade. Foram eles os primeiros a atreverem-se a pensar sem a orientação de nenhuma autoridade. (...) Kierkegaard, ao saltar da dúvida para a fé, trouxe a dúvida para o interior da religião. (...) Marx trouxe as teorias da dialéctica para o campo da acção . (...) O platonismo invertido de Nietzsche (...) terminou naquilo a que hoje chamamos o niilismo.” (E.P.F., pp.42-44)

2. O hiato entre o passado e o futuro

No prefácio do Entre o Passado e o Futuro, intitulado “O hiato entre o passado e o futuro” (1967), encontramos uma citação do poeta René Char – “a nossa herança não foi precedida por nenhum testamento” (p. 17) – e outra de Tocqueville – “Desde que o passado deixou de projectar a sua luz sobre o futuro, a mente humana vagueia nas trevas” (p. 20). Em ambas podemos detectar, por um lado, a noção de abismo, inscrita no coração da modernidade, e por outro lado, a urgência de uma interrogação sobre o sentido dessa ausência de testamento.

“Seja como for, é ao facto de o tesouro perdido não ter nome que o poeta alude quando afirma que a nossa herança não foi precedida de nenhum testamento. O testamento, que indica ao herdeiro aquilo que legitimamente lhe pertence, transmite ao futuro os bens do passado. Sem testamento ou, para aclarar a metáfora, sem a tradição – que escolhe e nomeia, que transmite e preserva, que indica onde se encontram os tesouros e qual o seu valor – é como se não existisse continuidade no tempo e como se, por conseguinte, não houvesse nem passado nem futuro, em termos humanos, mas apenas a perpétua mudança do mundo e o ciclo biológico dos seres vivos.” (E.P.F. p.19)

O que se perdeu, na era moderna, foi o próprio espaço onde a liberdade pública se podia manifestar, o espaço que “se constitui com o agir conjunto”, porque a razão de ser da política “é a liberdade e o seu campo de experiência é a acção”.

Quando o fio da tradição se rompeu, de modo absoluto e radical, no século XX, os seres humanos confrontaram-se com situações inéditas como a desolação extrema, a atomização social e o “eclipse do mundo comum”. Qual é o significado dessa perda da tradição? Como pensar numa situação inédita, na brecha entre passado e futuro, provocada pelo desaparecimento da tradição? Como pensar num mundo em que se consumou “o divórcio existente entre pensamento e realidade, que se tornou opaca à luz do pensamento e que este, já não ligado ao acontecimento (...), está sujeito (...) a converter-se em algo totalmente esvaziado de significado”?) (E.P.F. p. 20).

“O problema, contudo, reside no facto de não parecermos estar nem equipados nem preparados para esta actividade de pensar, de nos estabelecermos nesse hiato entre passado e futuro. Durante períodos muito longos da nossa história, na verdade, durante os milhares de anos que se seguiram à fundação de Roma e que foram determinados pelos conceitos romanos, esse hiato foi vencido pela ponte daquilo que, graças aos romanos, denominámos tradição. Que esta tradição se foi desgastando mais e mais à medida que avançámos pela Idade moderna não é segredo para ninguém. Quando o fio da tradição por fim se rompeu, o hiato entre o passado e o futuro deixou de ser uma condição própria apenas da actividade de pensar e uma experiência restrita àqueles poucos que faziam do pensamento a sua actividade fundamental, para se converter numa realidade tangível e numa fonte de perplexidade comum: ou seja, tornou-se um facto de relevância política.” (E.P.F. p.27)

O que foi a autoridade?

Na sua obra Entre o Passado e o Futuro, educação e autoridade são conceitos fundamentais. Este último está penhe de equivocidade.

Pode identificar-se com o conceito de poder ou então ser usado para definir uma relação hierárquica legítima, em nenhum dos casos se trata de uma relação de dominação. No seu sentido mais autêntico, a autoridade opõe-se ao autoritarismo político.

Existe poder sem autoridade, mas o inverso não é possível. O poder, sendo a condição necessária da autoridade, não é todavia a condição suficiente. Para que o poder se transforme em autoridade, é preciso que aquele sofra uma modificação.

“Assim o recurso à autoridade intervém quando um poder, por razões diversas, tem necessidade, a fim de cumprir eficazmente a função que é a sua e de obter a obediência daqueles sobre quem se exerce, de um acrescento de justificação ou de fundamentação: quando precisa, poderíamos dizer, de um ‘superpoder’ que já não pode consistir simplesmente em juntar-lhe mais poder, mas sim em modificar a natureza ou o próprio teor desse poder. (...)
Mais precisamente, graças ao superpoder que é o único a poder conferir autoridade, a submissão que o poder conseguia por si mesmo obter daqueles que ele comandava que agissem de tal ou tal maneira transforma-se numa obediência propriamente dita, numa obediência voluntária que permite à dominação não usar violância e ao comando ser incontestado. Um poder a que se acrescenta uma dimensão de autoridade é um poder que não se discute.”
Alain Renaut, O Fim da autoridade, Instituto Piaget, p.34

É no artigo O que é a autoridade? (1955), redigido antes de A crise na educação (1958), que Hannah Arendt constrói o conceito de autoridade. O seu modus operandi é sobretudo negativo, isto é, ao distinguir a autoridade de outras formas de relações humanas que com ela podem ser confundidas, vai-a definindo por aquilo que ela não é, pondo a nu o facto da autoridade já não existir. É este o modo que Hannah Arendt adopta em A crise na educação.
Apesar do artigo de Hannah Arendt se intitular O que é a autoridade?, a questão mais adequada seria “O que foi a autoridade?”, em virtude do conceito, outrora fundamental para a teoria política, ter desaparecido do mundo moderno.

“Que experiências políticas que corresponderam ao conceito de autoridade e qual a sua origem? Qual é a natureza de um mundo público político constituído pela autoridade? Será verdade que a afirmação de Platão e Aristóteles, de que qualquer comunidade bem ordenada é constituída por governantes e governados, foi sempre tida por válida no período anterior à época moderna?” (E.P.F. pp. 117-118).

1. Os Gregos

Arendt defende que a autoridade não tem lugar na experiência política grega, só a persuasão e a força preenchem aí uma função. A ausência de autoridade, na realidade política grega, teria assim conduzido Platão e Aristóteles a tentar introduzi-la na sua filosofia política.

Os Gregos apenas conheciam a tirania ou a guerra como formas de governo assentes na relação de comando e obediência. É por isso que Platão e Aristóteles se voltaram para a estrutura familiar, no seio da qual o chefe de família governava, como déspota, a família e os escravos. No entanto, a autoridade implica uma obediência na qual os homens conservam a sua liberdade.

Platão

Platão alicerça a sua “aspiração a um governo autoritário” numa concepção da razão que, mais do que autoritária, acaba por se revelar despótica. Esse despotismo da razão (protagonizado pelo filósofo-rei), por se alicerçar em exemplos e analogias retirados da esfera privada – a qual “assenta na desigualdade natural entre quem governa e quem é governado” (E.P.F. p. 122) – vai traduzir-se numa dificuldade incontornável de legitimação da sua filosofia política, sobretudo tendo em conta a indesejável ligação entre este e a tirania (Aristóteles) e entre o poder que sempre corrompe e a autonomia do pensar (Kant).

“A semelhança fatal entre o filósofo-rei de Platão e o tirano grego, assim como o potencial prejuízo para a esfera política que esta concepção de governo implicaria, parece ter sido reconhecida por Aristótesles; mas que essa combinação de domínio e razão implicou um perigo também para a filosofia é algo que, tanto quanto sei, só foi apontado por Kant”. (E.P.F. p. 121-122)

Considerando os processos persuasivos e argumentativos insuficientes “para a condução dos homens” – rejeita-os liminarmente em virtude da condenação à morte de Sócrates – e procurando uma alternativa que não passasse pelo “recurso a meios externos de violência”, o que destruiria a vida política, Platão encontra na verdade auto-evidente à razão o meio eficaz de governar. O estabelecimento de uma “tirania da razão”, encabeçada pelo filósofo-rei, não está contudo isenta de problemas. De facto, a legislação imposta pelo filósofo, não pode deixar de ser despótica, assim como o consentimento dos cidadãos não é senão uma “servidão voluntária”.

Apesar da coerção imposta pela razão não necessitar do recurso à violência para que resulte eficaz, e ainda que a sua força seja deveras superior à da persuasão e argumentação, ela não constrange o maior número mas apenas uma minoria. A multiplicidade dos cidadãos que compõem a comunidade política, recinto das opiniões que se requerem disputadas, não é susceptível de se submeter às ordens da razão, sem alienação da sua maioridade política. Eis a principal dificuldade da filosofia política de Platão. A solução encontrada na República consiste na invenção do mito para consumo da multidão, que se traduz na afirmação de um além onde recompensas e castigos seriam distribuídos, desempenhando para aquela uma papel equivalente ao que desempenha a alegoria da caverna para o filósofo. Esta doutrina de um além com castigos e recompensas assume-se, pois, como uma doutrina de natureza política, que virá a ser recuperada pelo cristianismo.

“O ser político, o viver numa polis, significa que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força ou violência. Para os gregos, forçar alguém pela violência, ordenar em vez de persuadir, eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da polis, característicos do lar e da vida em família, na qual o chefe da casa imperava com poderes incontestados, ou da vida nos imperios bárbaros da Ásia, cujo despotismo era frequentemente comparado à organização doméstica.” (C.H. pp. 41-42)

“Uma vez que a autoridade exige sempre obediência, é muitas vezes confundida com alguma forma de poder ou violência. Mas o facto é que a autoridade exclui o uso de meios exteriores de coacção; quando se usa a força, isso significa que a autoridade falhou. Por outro lado, a autoridade é incompatível com a persuasão, já que esta pressupõe uma paridade e funciona através de um processo de argumentação. Quando se utilizam argumentos, a autoridade é deixada em suspenso. Contra a ordem paritária da persuasão, temos a ordem autoritária, que é sempre hierárquica. Assim, se temos de definir a autoridade, esta é algo que se opõe tanto à coação pela força, como à persuasão mediante argumentos. (A relação autoritária entre quem comanda e quem obedece não assenta nem numa razão comum nem no poder daquele que comanda; aquilo que ambos partilham é a hierarquia em si, cuja justiça e legitimidade ambos reconhecem e dentro das quais possuem o seu lugar fixo e prederterminado.)” (E.P.F., pp. 106-107)

O conflito entre filosofia e política, a sua radicalização, é um tema recorrente de Hannah Arendt a propósito do pensamento platónico. Trata-se de uma forma embrionária da oposição aristotélica entre “vida teórica” e “vida prática”, bem como da subordinação da segunda em relação à primeira, o que trará consequências decisivas para a desvalorização da político ao longo da tradição filosófica e política.

“No início, portanto, não da nossa história política ou filosófica, mas da nossa tradição de filosofia política, encontra-se o desprezo de Platão pela política, a sua convicção de que ‘os assuntos e acções dos homens (ta tōn anthrōpōn pragmata) não merece atenção demasiado séria’ e de que a única razão pela qual o filósofo tem de se lhes referir consiste no infeliz facto de a filosofia – ou, como um pouco mais tarde diria Aristóteles, uma vida a ela dedicada, o bios theōrētikos – ser materialmente impossível sem uma composição pelo menos em parte razoável do conjunto dos assuntos que preocupam os homens na medida em que vivem em companhia uns dos outros. No começo da tradição, a política existe porque os homens vivem e são mortais, enquanto a filosofia se preocupa com aspectos que são eternos, como o universo.” (P.P., p. 73)
Aristóteles

Ainda que pressuponha a relação de governantes-governados, a filosofia política de Aristóteles não acompanha a de Platão num ponto essencial: não existe a figura do filósofo-rei, nem a correlativa ideia da superioridade de um especialista (o filósofo) nos assuntos relativos ao governo da cidade-estado.

Na sua obra A Política, Aristóteles justifica a diferença entre jovens e velhos e entre governantes e governados pela natureza. Esta tese naturalista é, segundo Arendt, contraditória com o ideal grego de polis.
De facto, a tese aristotélica é problemática por duas razões: a primeira prende-se com a contradição entre a esfera pré-política da ideia de governação, assente numa assimetria natural entre governantes e governados, e o princípio de igualdade que subjaz à definição da polis como “comunidade de iguais”; a segunda deve-se o facto de Aristóteles defender que “a diferença entre governantes e governados é derivada da diferença natural entre os mais novos e os mais velhos”, quando na realidade existe um desfazamento temporal entre a instrução e a política.

“A própria ideia de governação, assim como a distinção entre governantes e governados, é algo que pertence a um domínio que precede a esfera política, e aquilo que distingue esta última do domínio ‘económico’ da família é que a pólis se baseia num princípio de igualdade e desconhece qualquer diferenciação entre governantes e governados.” (E.P.F., p. 130).

“A incoerência do seu empreendimento é perceptível (porque) a diferença entre governantes e governados é derivada da diferença natural entre os mais novos e os mais velhos. (...) No terreno político lidamos sempre com adultos que, propriamente falando, deixaram para trás o tempo da instrução, e a política ou o direito de participar nos assuntos públicos começa precisamente quando a educação está terminada. (...) Na educação, pelo contrário, lidamos sempre com pessoas que não podem ainda ascender à política e à igualdade porque estão numa fase de preparação para isso.” (E.P.F., p. 132).

“Para Aristóteles, o termo politikon era um adjectivo que se aplicava à organização da pólis e não a simples designação de qualquer forma de vida em comum (...). Queria dizer, sim, que é um traço único do homem o de este poder viver numa pólis, e também que a pólis organizada é a mais alta forma de vida humana em comum.” (P.P., p. 101)

“As grandiosas tentativas da filosofia grega para encontrar um conceito de autoridade que impedisse a deterioração da pólis e preservasse a vida do filósofo fracassaram pelo facto de no âmbito da vida política grega não existir uma noção de autoridade baseada numa experiência política imediata” (E.P.F., p. 133).


2. Os Romanos

É com os Romanos, segundo Hannah Arendt, que o conceito de “autoridade pode adquirir um carácter educacional” sem perder a sua consistência política. Para eles, “os antepassados, em qualquer circunstância, representam exemplos de grandeza para cada nova geração, (...) eles são os maiores, os melhores por definição. Onde quer que o modelo de educação pela autoridade, sem esta convicção fundamental, tenha sido imposto na esfera pública (...), o seu objectivo consistiu antes de mais em obscurecer reais ou camufladas aspirações de poder, e fingir educar quando na verdade pretendia apenas submeter.” (E.P.F., p. 133).

Só os Romanos conseguiram estabelecer uma autoridade política sem recorrer ao constrangimento exterior ou a uma ordem imposta. Por isso, o termo e o conceito de autoridade são originários de Roma, reenviando para o modelo da sua fundação. A autoridade encontra o seu fundamento no passado, passado sempre presente na vida da cidade e que é necessário conservar. Conservar a sua memória é um acto de amor e de responsabilidade quer para com o mundo legado pelos antepassados, quer para com o mundo perpectuado pelas gerações futuras.

A auctoritas dos Romanos provém do verbo augere e significa aumentar a fundação do passado. É necessário distinguir autoridade e poder. A autoridade, ao contrário do poder, enraiza-se no passado e deriva da própria autoridade dos fundadores, dos auctores.

Enquanto o poder pertence ao povo, é o Senado que detém a autoridade. A autoridade dos senadores provém da sua ligação ininterrupta à tradição, inaugurada pelos fundadores da cidade, ou mesmo por Rómulo, depositário da autoridade divina.

“Onde a vontade popular era considerada como susceptível de errar, como pode errar a vontade das crianças que não vivem senão no presente mais imediato, a aprovação senatorial, (...) atribuía aos actos públicos dos eleitos, detentores do poder legal, como que uma confirmação vinda dos tempos mais longínquos, que só por si lhes dava plenamente força de direito e aumentava consequentemente, decisivamente, o seu poder de acção.”
Alain Renaut, O Fim da autoridade, Instituto Piaget, p.38


Hannah Arendt apresenta-nos a imagem de pirâmide invertida, cujo topo não se situa no céu das ideias ou da transcendência divina, mas mergulha na profundidade do passado e na transcendência da tradição. A reverência para com os anciãos explica-se pelo facto de estarem mais próximos dos antepassados, cabendo-lhes pois, enquanto testemunhas da fundação sagrada, transmitir-nos os valores sagrados da tradição e servir de elo de ligação – religio, de religare, significa estar ligado ao passado – a eles.
“A religião romana, assente na fundação, tornou um dever sagrado preservar o que fora outrora transmitido pelos antepassados ou maiores. A tradição tornou-se, portanto, sagrada (...). Preservava e transmitia a sua autoridade, baseada no testemunho dos antepassados que tinham assistido à fundação sagrada. A religião, a autoridade e a tradição tornaram-se assim inseparáveis umas das outras, exprimindo a força sagrada vinculativa de um começo autorizado ao qual cada um continuava ligado graças ao vigor da tradição.” (P.P., p. 46)

É com a derrocada do Império Romano que, para Hannah Arendt, se precipita o desaparecimento da vida política, o que constitui o acontecimento mais decisivo da história política ocidental. A crise da autoridade inicia-se então com a desvalorização da trindade romana da tradição, autoridade e religião, sendo que a queda de um dos seus pilares desencadeia necessariamente a queda dos outros. Esse é já o cenário da modernidade.

3. O Cristianismo

A partir do momento em que a Igreja Cristã se romanizou, com o imperador Constantino, “a herança política e espiritual de Roma passou para as mãos do cristianismo (...), a Igreja tornou-se tão ‘romana’ e adaptou-se de tal modo ao pensamento romano em assuntos políticos, que fez da morte e ressurreição de Cristo a pedra basilar de uma nova fundação, erguendo sobre ela uma instituição humana nova e tremendamente perdurável. (...) Como testemunhas desse acontecimento, os Apóstolos puderam converter-se nos ‘pais fundadores’ da Igreja, dos quais esta derivava a sua própria autoridade enquanto pudesse continuar a transmitir de geração em geração o seu testemunho através da tradição.” (E.P.F., pp.138-139)

Paralelamente, o cristianismo, a partir do momento em que assume o papado como centro privilegiado do poder temporal (séc V), incorpora na sua estrutura conceptual a doutrina platónica de um além de recompensas e castigos , a qual, segundo Arendt, tem um horizonte político.

“Tendo incorporado a filosofia grega na estrutura das suas doutinas e credos dogmáticos, a Igreja Católica fundiu o romano conceito político de autoridade, inevitavelmente baseado num começo, com a noção grega de parâmetros e medidas transcendentes. (...) Dificilmente encontramos algo que se tenha afirmado com maior autoridade e com consequências de mais longo alcance do que esta fusão.” (E.P.F. p.141)

A consequência da incorporação da filosofia grega no edifício teórico do cristianismo traduziu-se, por um lado, na “diluição do conceito romano de autoridade” e, por outro lado, na assimilação do elemento de violência subentendido nas teorias políticas dos filósofos gregos, sobretudo de Platão.
Outra consequência, não menos importante, tem que ver com o facto do cristianismo, desenraizado agora da tradição política dos romanos, que fazia da autoridade um acrescento de legitimação do poder, abriu não só portas à tirania e ao despotismo, inerentes à fundamentação política dos gregos, como permitiu que por elas entrasse a ideia grega da subalternização da “vida activa” em relação à “vida contemplativa”.

“O cristianismo, com a sua crença num outro mundo cujas alegrias se pronunciam nos deleites da contemplação, conferiu sanção religiosa ao rebaixamento da vida activa à sua posição subalterna e secundária; mas a determinação dessa mesma hierarquia coincidiu com a descoberta da contemplação (theōria) como faculdade humana, acentuadamente diversa do pensamento e do raciocínio, que ocorreu na escola socrática e que, desde então, vem orientando o pensamento metafísico e político de toda a nossa tradição.” (C.H., p.28)

Contudo, a consequência decisiva prende-se sobretudo com a secularização inerente à modernidade. Esta implicou não apenas a descrença no além, onde “o medo do inferno já não se conta entre os motivos capazes de impedir ou de estimular os actos da multidão” mas, inevitavelmente, “a separação entre a esfera política e a esfera religiosa da vida; e, assim sendo, a religião não podia senão perder o seu elemento político, tal como a vida pública estava destinada a perder a sanção religiosa por parte de uma autoridade transcendente.” (E.P.F., p.148)

Assim, sem a “fonte da autoridade transcendente”, as pessoas vêem-se confrontadas “com os problemas mais elementares da convivência humana.” (E.P.F., p.154)

A romanização da Igreja cristã permitiu a longevidade de uma tradição alicerçada nas fundações da autoridade assentes na religião. A ruptura decisiva dá-se quando a Igreja Católica (universal) se vê abalada nos seus alicerces pela Reforma, contestatária da sua autoridade, assim como pelo criticismo moderno que minou as raizes da crença religiosa.

“Sem a sanção da crença religiosa, nem a autoridade nem a tradição continuam seguras. Sem o apoio dos instrumentos tradicionais de interpretação e de juízo, tanto a religião como a autoridade começaram a vacilar.” (P.P., p. 48)

Crise da educação ou crise na educação?

O sentido pedagógico do termo tradição encontra-se indissociavelmente ligado ao seu sentido político originário, que é romano: “Fazer ser novo aquilo que foi”. A modernidade recobriu e adulterou esta significação.
Hannah Arendt recupera o uso que Quintiliano fazia do conceito quando recorreu ao termo traditio para designar o ensino. Segundo Quintiliano, educar é tradere (remeter uma herança) e transmittere (remeter essa herança de tal maneira que o herdeiro a faça sua, a conserve e lhe dê vida).

A crise da educação que se manifesta na actualidade é o resultado de uma crise mais vasta e profunda, que tem as suas raizes na modernidade. Esta preenche por inteiro a brecha que se abriu entre o passado e o futuro, por onde se sumiram a tradição e a autoridade.

“A crise de autoridade na educação está intimamente ligada com a crise da tradição, isto é, com a crise da nossa atitude face a tudo o que é passado.” (E.P.F., p.203)

“No mundo moderno, o problema da educação resulta pois do facto de, pela sua própria natureza, a educação não poder fazer economia nem da autoridade nem da tradição, sendo que, no entanto, essa mesma educação se deve efectuar num mundo que deixou de ser estruturado pela autoridade e unido pela tradição.” (E.P.F., p.205)

No mundo pré-moderno, passado e futuro estavam ligados pelo fio da tradição que garantia a continuidade e a persistência do mundo. No entanto, a partir do momento em que o edifício da autoridade ruiu e o fio da tradição se rompeu, irreversivelmente, a crise irrompeu e todos os domínios da vida humana se viram por ela envolvidos. A crise da educação é, antes de mais, uma crise que se manifesta na educação, sendo portanto esta o lugar privilegiado de onde devemos retomar as questões essenciais, as quais nos poderão encaminhar para respostas já não enraizadas em preconceitos e ideias feitas no coração da modernidade.

Bibliografia

ARENDT, Hannah, Entre o Passado e o Futuro, Relógio D’Água, 2006
ARENDT, Hannah, Homens em Tempos Sombrios, Relógio D’Água, 1991
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