quarta-feira, junho 25, 2008

Aonde já chega a crise?

Aonde já chega a crise? Fundo, muito fundo. Ela torna-se visível não tanto quando é sentida pelas pessoas dos estratos sociais economicamente mais carenciados – quem quer saber dos pobres, senão do ponto de vista das estatísticas? –, mas a partir do momento em que fustiga as classes médias. Então sim, é que ela ganha verdadeira visibilidade.
A um pobre, tudo o que ultrapasse o seu magríssimo pecúlio é demasiado, tanto faz que seja 50 ou 100 euros. Quem vive com pouco e esse pouco não lhe chega, o que lhe sobra em miséria é sempre demais. O acréscimo de miséria é ainda e sempre miséria. Não existem graduações nem quantitativos. Abaixo do limiar da pobreza, apenas há uma qualidade e condição: a de ser miserável. Ao contrário do que acontece com os imensamente ricos, em que é possível e usual graduar e quantificar o pecúlio (os cem mais ricos, os quinhentos mais ricos), nenhuma outra classe está sujeita a ordem de grandeza. É um absurdo pensar estabelecer o ranking dos mais pobres, ou dos mais remediados. Parece uma contradição nos termos. A ordenação da riqueza só faz sentido relativamente à quantificação do muitíssimo. Só a partir de uma quantia avultada se justifica graduar por ordem de grandeza. O mesmo não se passa em relação a quem vivia com o suficiente ou mesmo com mais do que o suficiente – que podiam aplicá-lo em pequenos luxos ou em pequenas poupanças – mas que agora já não chega para esconder o espectro do empobrecimento. É na classe média que a crise financeira mais se evidencia, em razão dos empréstimos acumulados em tempo de vacas gordas. Basta estar atento ao pormenores do quotidiano. É o automóvel que permanece na garagem semanas a fio, o pronto a vestir cuja visita se adia até que dias melhores venham, o arranjo e a pintura do cabelo que se disfarça como se pode (fugindo-se o espelho como o diabo da cruz), as consultas ao ginecologista ou ao dentista que se desmarcam a pretexto de qualquer impossibilidade de agenda, as viagens de férias que se transferem para o imaginário de um programa assistido pela televisão, ou, na pior das hipóteses, o bife de alcatra ou do lombo que é substituído pelo fígado de porco adornado de cebolada, as t-shirts de marca que se vêem substituídas pelas suas homólogas compradas na feira de domingo de manhã, os cêntimos recontados que se empilham disfarçadamente no balcão da pastelaria para pagar o café que nos há-de tirar o sono mais à noitinha, precisamente quando aproveitamos a insónia para conjugar os dias que faltam no mês com os magros euros que dificilmente chegarão para cobrir as despesas correntes. Um sufoco. Que o diga quem não tiver vergonha, como o vizinho empresário da construção que, por falta de empreitadas, decidiu comprar o passe de metro e juntar-se, manhã cedíssimo, aos inúmeros utentes do mesmo, engrossando o número daqueles que vêem, de dia para dia, crescer o contingente os pedintes.

terça-feira, junho 24, 2008

O segredo bem guardado de Bob Proctor

Está garantido. 350 mil portugueses compraram o livro de auto-ajuda O segredo, de Bob Proctor – em menos de um ano –, e 6 mil assistiram, no Pavilhão Atlântico, à sua palestra, no passado dia 18. A julgar pelos números, e considerando que a mensagem foi adequadamente assimilada, o nosso futuro, nas próximas décadas, só pode estar garantido. É que se trata de muita gente! Não há razões, portanto, para não estarmos optimistas. Pode o governo cair de podre (ou simplesmente por efeito da lei da gravidade política), pode o preço dos combustíveis subir para 200 dólares o barril, podem os grupos terroristas islâmicos atentar à vontade contra a integridade ideológica da civilização ocidental, pode o Benfica perder mais dez ligas consecutivas, nada disso vai certamente desviar-nos, um milímetro que seja, da desejada convergência ao pelotão da frente dos mais ricos países da Europa a 27. É tão certo como eu me chamar José. Ou mesmo mais certo ainda. Basta para isso que os recém iluminados desatem a ser bem-sucedidos naquilo que obviamente mais desejam: ser bem-sucedidos financeiramente e obter mais riqueza material. Pois o que lhes falta são euros. Euros e mais euros. O resto – o amor, a saúde ou a vida espiritual, virão por acréscimo. E se não vierem, pelo menos a cota parte mais substancial da felicidade está garantida. E isso é o que importa.
A fórmula mágica do sucesso, ancorada nas leis da vibração e da atracção (a chave do segredo), está agora ao alcance de de 3.5% da população de Portugal. É esta percentagem de portugueses que, de agora em diante, estará apta a fazer aquilo que historicamente nunca foi capaz, isto é, transformar pensamento em acção. Basta seguir o lema “peça, acredite e receba”. Até há bem pouco tempo, sabiamos apenas conjugar o primeiro dos três verbos. Acreditar estava para além das nossas forças e receber muito para lá das nossas possibilidades. Tratava-se de uma missão verdadeiramente impossível. De agora em diante, não. Teremos o mundo a nossos pés. Já não precisaremos mais de fumar o ópio do futebol, snifar a cocaína de fátima ou beber até ao fundo o cálice do fado. Bem hajas, Bob Proctor. À tua sáude! À nossa! Mil obrigados por tudo.

segunda-feira, junho 23, 2008

Dias felizes com e sem lágrimas

O pretexto pode ser um qualquer, desde que o resultado seja o de reunir um conjunto de amigos. No caso foi o de ir depositar as cinzas da dona Rita no cemitério de uma pequena aldeia da Beira-baixa – o Rosmaninhal. Situada a leste de paraíso nenhum (Castelo Branco) e a oeste de um inferno obsoleto (Espanha), a aldeia é tipicamente raiana, lusa no orgulho e na simplicidade.
Composto por catorze elementos, o grupo era homogéneo e coeso: dez adultos (cinco fêmeas e cinco machos) e quatro crianças (quatro rapazes dos dois aos dezasseis anos). Se não fosse o caso de se tratar de seres humanos, poder-se-ia designá-lo pela matilha do Rosmaninhal, tal o modo como se movimentavam e interagiam, quer por afinidades consanguíneas quer por afinidades electivas.
O grupo do Rosmaninhal – assim baptizado – assentou acampamento no hotel Astória, em Monfortinho, que se recomenda, em especial pela arquitectura ao gosto do estado novo. A vila ostenta ainda uma espécie de grandeza de antigamente, exibida sobretudo na decadência de alguns edifícios a que nem o dinheiro nem o bom gosto de restauração bafejaram com melhor sorte. As excepções são as afamadas termas e os hoteis tomados ao cuidado da exploração turística do grupo Espírito Santo.
Os três dias de estadia foram outros tantos de puro gozo dos sentidos: o cheiro da tília, da flor de laranjeira, o sabor da laranja acabada de apanhar, da limonada preparada na hora e do bolo de mel encantado; o bafo cálido da brisa pré-estival; o trinado dos “pintelheiros” e o castanholar das cegonhas; e a paisagem onde o olhar sossega e aspira à eternidade instantânea. As horas, essas passaram-se entre aperitivos tomados à beira do rio Erges ao entardecer, entre almoços e jantares a puxar à conversa fraternal, entre demoradas braçadas na piscina, entre o lanche degustado na esplanada do hotel, entre raquetadas de ping-pong e tacadas de snooker. Houve tempo ainda para uma saltada à cidade espanhola de Alcântara, alcantilada num cume que se ergue para lá da imponente ponte sobre o Tejo, mandada construir pelo imperador Trajano, nos idos da era romana. E no regresso, o fingimento de uma saudade do Portugal profundo que nos comove sem nos comover deveras.
A última nota desta viagem de amizade vai inteirinha para o Rosmaninhal. Terra circunscrita na divisão administrativa beirã, a aldeia do Rosmaninhal tem contudo uma alma alentejana, tal a vastidão da planura que se estende ao olhar alcandorado do adro da Igreja Matriz. Melhor que ninguém descreveu-a Orlando Ribeiro, em 1944. Escutemo-lo (o efeito só se capta se o trecho for lido em voz alta):

«É uma aldeia enorme, antiga vila, de largas ruas e casas pobres, habitada por jornaleiros e alguns senhores que, sendo grandes possuidores de terra, não renunciaram à vida primitiva da lavoura. Do alto da igreja, a vista abrange uma área enorme de seara e montado, que demora entre o Tejo e o Erges, e alcança, passado o vinco destes rios, uma Espanha igualmente desolada. Trigo, centeio, pasto, coutos, arraiais, rebanhos e, nos matagais abandonados anos a fio, caça que pulula entre estevas e giestas. Também a estes maninhos chegam os serranos da Estrela a invernar, com rebanhos chocalhantes de ovelhas negras. O aspecto da região é extremamente rústico e isolado, uma espécie de Alentejo mais arcaico onde a lavoura rotineira mal conhece as inovações que são já a regra desta província. Uma gente de temperamento franco e hospitaleiro, mas rude e altivo, criada à lei da vida solta e dos horizontes largos, uma terra infinita que guarda nas entranhas esperanças e castigos, onde se embebem os olhos que o beirão verdadeiro costuma levantar mais alto.»

Conheçamos também o hino que, mesmo não sendo da alegria, será porventura do contentamento:

HINO DO ROSMANINHAL
Ó Rosmaninhal, terra linda onde eu nasci.
Outra assim igual, tão bonita nunca vi.
O meu coração vai nesta canção,
Vai nela o amor que eu sinto por ti.

Que paz bendita este cantinho,
Terra banhada de Rosmaninho.
Aldeia querida, minha fé, meu doce lar,
tua luz na minha vida, chama eterna a brilhar.

O sol dourado teus tesouros beija.
O mundo inteiro chora de inveja.
Porque afinal, o sol é teu namorado,
Meu belo torrão natal, meu belo cantinho amado


Para saber mais sobre o Rosmaninhal, consultar o endereço:
http://rosmaninhal.no.sapo.pt/index.htm

Uma história feliz a repetir. Assim se crie a oportunidade. Aposto em como se vai repetir. Brevemente. Como diz o poeta: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. Pois então que nasça.
(Dedicado ao amigo Xico)

“A vida está pelas horas da morte”

“A vida está pelas horas da morte”, respondia minha mãe à pergunta da comadre – “Ó Idalina, como vai a vida?” Isto passava-se na segunda metade dos anos setenta do século passado, quando a crise do petróleo, desencadeada em 1973 e agudizada pelos desmandos governativos do PREC, tinha como reflexo uma inflação que a cada dia galopava desenfreadamente. A evidência da carestia de vida manifestava-se nas calças puídas, à boca de sino, que o jovem que fui usava durante toda a santa semana, mas também, entre outros pormenores, nas carcaças ressequidas e lubribicadas com margarina que a boca mastigava com saudades do fiambrino, e que o parco dinheiro não chegava para comprar. No entanto, era feliz. Ainda a cadela da mortalidade não me havia ladrado aos calcanhares.
Nunca nos refazemos da morte de um ente querido. Vamo-nos habituando à ideia, ou melhor, afastamo-la do horizonte imediato da nossa consciência, empurrando-a para os cantos mais recônditos da memória, e aí a deixamos, adormecida, na semi-obscuridade da mente. Na melhor das hipóteses, sublimamo-la, como referem os freudianos. Mas a que preço? Cada qual saberá o quanto lhe custa. Quando menos esperamos, eis que um lampejo irrompe, súbito e fulminante, vindo não se sabe nem de onde nem porquê. Simplesmente acontece. A mim acontece-me raramente por imagens. É sobretudo acusticamente que, do fundo da memória, sou presenteado por fragmentos de vozes. “A vida está pelas horas da morte.” Eis o modo privilegiado como o ser se me revela! E eu aceito-o como se de uma dádiva dos deuses se tratasse. Presto-lhes culto por isso. Para a próxima far-lhes-ei uma libação, e oferecer-lhes-ei as primícias do que lhes sacrificar. Aprendo a ser pagão e a dizer sim à vida que por vezes nos fala do passado.

quinta-feira, junho 19, 2008

Quando a esmola é grande, o pobre desconfia

Quando a esmola é grande, o pobre desconfia

“Estamos todos de parabéns.” Foi assim que a Ministra da Educação concluiu o seu comentário aos resultados que os alunos dos 4º e 6º anos obtiveram nas provas de aferição a Matemática e a Língua Portuguesa.
De um ano para o outro, os nossos alunos que frequentaram os dois ciclos de ensino, não só inverteram a tendência de regressão, verificada no ano anterior, como apresentaram níveis de sucesso verdadeiramente dignos de pequenos campeões em matéria de aprendizagem. Em qualquer canto do mundo, resultados positivos da ordem dos 90% (respectivamente 90,8 e 89,5 por cento, nos 1º e 2º ciclos) a Matemática, e da ordem dos 80% a 90% (respectivamente 81,8 e 93,4 por cento, nos 1º e 2º ciclos) a Língua Portuguesa, é de deixar qualquer mortal embasbacado perante tal manifestação de sapiência. Mas há mais: no que diz respeito à excelência ou quase – muito bom e bom – a Matemática regista 34,5% (4º ano) e 32,9% (6º ano), enquanto a Língua Portuguesa obtém 38.9% (4º ano) e 38,8% (6º ano). Convenhamos que é de ficar embevecido com tamanha aproximação à divindade. Não será de estranhar que, no intervalo de uma geração, vejamos os nossos problemas resolvidos em matéria de atraso económico estrutural e não só. Quem disser o contrário, está certamente de má fé, ou então faz parte da geração dos estúpidos que não consegue enxergar nem sequer o óbvio. E para os incrédulos, os que farejam embustes e passes de mágica em cada milagre, descancem as meninges e deixem-se de criticismos de meia-tijela. Pois foi a própria ministra, doutíssima em estatísticas e outras ciências de rigor, quem declarou, a propósito, “não há milagres”.
Todavia, o melhor é ouvir também a sabedoria do povo, o qual, lapidarmente, sentencia: “Quando a esmola é grande, o pobre desconfia.” E não é que desconfia mesmo? Caberá na cabeça de alguém esta reviravolta nos resultados escolares, assim do pé para a mão? Não terão razão os representantes maiores das Sociedades Portuguesa de Matemática e Associação de Professores de Português ao afirmar que as provas de aferição nada mais aferem que não seja o facilitismo e o trabalho para as estatísticas?
Segundo a ministra, estes resultados são a consequência das medidas tomadas pela tutela. “É possível melhorar resultados escolares com trabalho continuado e permanentemente orientados para objectivos claros. É isso que temos andado a fazer desde 2005.” Mas será possível que, em matéria educativa, os resultados aparecem assim de um ano para o outro, sem milagres? Não é unânime a opinião dos especialistas no assunto quando afirmam que em Educação as medidas e as reformas só têm consequências a mádio e a longo prazo? E não sabem disso os pais e os professores? Tanta falta de bom senso, digo-vos eu, é não só exasperante mas começa a cheirar mal. Para terminar – que já estou a ficar indisposto com tanta cretinice exibida por parte dos responsáveis máximos do ensino em Portugal – qual a sustentabilidade argumentativa do que disse a ministra em causa, em defesa da autenticidade dos resultados? Afirmou: “A prova de que não são fáceis é que há uma percentagem muito reduzida de alunos capazes de resolver o teste na sua totalidade”. Ó santa paciência! Mas que falácia mais descabida! Que prova é essa? Prova dos nove ou quê? Respondo-lhe já, mesmo sabendo que não me ouve ou lê. Basta para isso, fazer um teste com uma ou duas questões, de quotação reduzida, de grau de dificuldade acima da mediocridade. É fácil, Sra Ministra. Ou não foi assim que procederam os professores responsáveis pela elaboração da prova, segundo indicações oriundas da tutela?

segunda-feira, junho 02, 2008

da crise e da crítica, etc.

Crise é hoje a palavra mais falada e escutada em Portugal. E aposto que a mais escrita e lida. Nos jornais e revistas não se escreve e se lê outra coisa, mesmo que a palavra lá não figure. É preciso ler nas entrelinhas. Escreve-se a propósito da crise ambiental, da crise dos combustíveis, da crise da banca, da crise imobiliária, da crise dos valores e da educação, que o serviço nacional de saúde está em crise, que a crise está para durar, crise para aqui e crise para acolá. Os noticiários televisivos, para além das desgraças alheias do sangue suor e lágrimas, afinam pelo mesmo diapasão. As conversas de ocasião, que o cidadão comum e anónimo vai mantendo para se sentir vivo, para além do tempo que não há meio de aquecer e enxugar, reproduz a ladainha: “isto é que vai uma crise!”. Sinal dos tempos ou sintoma de uma modernidade moribunda em busca dos seus sete palmos de terra. Mesmo o Governo, habitualmente formatado por um tom mais optimista e pró-activo, decidiu que era hora de introduzir no seu discurso a palavra crise. Se não podes com eles, junta-te a eles.
Ora, não há pior coisa do que encarar uma crise a partir de preconceitos e de ideias feitas. Como dizia Hannah Arendt, tal procedimento só contribui para nada compreender e para acentuar o fenómeno. E este deve ser perspectivado como uma oportunidade para o analisar criticamente. Não é por acaso que as palavras crise e crítica são etimologicamente aparentadas, como se de irmãs gémeas se tratasse, ou melhor, são as duas faces de uma mesma moeda. Pena é que pouca gente dê por isso, e se limite a repetir os mesmos lugares comuns ad nauseam. Em vez de se falar tanto de crise, se calhar melhor seria fazer uso da crítica. Mas para isso era preciso que não estivéssemos tão conformados e nos sentíssemos mais vivos.

educação: uma crise que vem de longe

Em cumprimento do que prometi, volto ao assunto de que me ocupei há uns tempos atrás. Trata-se do ensaio que Hannah Arendt publicou no final do anos cinquenta do século passado – A crise na educação. Porquê “crise na educação” e não “crise da educação”? Aparentemente, a diferença é mínima e de somenos importância. As frases apenas se distinguem pelo diferente recurso às contracções das proposições com os artigos definidos “em+a” e “de+a”. O artigo é o mesmo e define aquilo que está em questão, o objecto ou o assunto – educação. O que difere é a proposição. Esta diferença é decisiva para a compreensão do sentido da crise, no modo como esta se relaciona com a educação. Falar de crise da educação não é o mesmo que falar de crise na educação. No primeiro caso, a relação de pertença da crise à educação é imediata e essencial, isto é, esta pertence àquela como seu momento originário de manifestação, sendo a sua causa primeira e motor principal do seu processo de desenvolvimento. Ora, não é assim que Hannah Arendt relaciona os dois conceitos. Para a filósofa, é na educação que a crise se manifesta por último. Ela é o “topos” onde a crise se vai inscrever, após um longo processo disseminação, primeiro pela política e posteriormente pela área pré-política da educação. A crise só se manifesta na educação num período particularmente crítico da modernidade (no pós guerra), depois de três séculos de erosão progressiva dos pilares em que o mundo tradicional assentava – tradição, religião e autoridade. A crise tem fundamentalmente um rosto, que é o da modernidade, a qual se iniciou no período pós-renascentista, no século XVII. Descartes, o arauto da dúvida metódica, o protagonista da crítica sistemática, vai-se constituir, ainda que involuntariamente, como o propulsor de um movimento corrosivo da permanência e continuidade do mundo tradicional, minando os seus alicerces.
A crise da educação é, acima de tudo, uma crise que se manifesta na educação, pois trata-se de uma consequência da crise geral no mundo moderno, cujas primeiras manifestações surgiram sob a forma da crise da autoridade e da crise da tradição.
É este o sentido das duas passagens que escolhi do texto de Hannah Arendt – A crise na educação –, o qual faz parte de uma colectânea de artigos publicados há dois anos pela Relógio d’Água, com o título Entre o Passado e o Futuro.
"A crise de autoridade na educação está intimamente ligada com a crise da tradição, isto é, com a crise da nossa atitude face a tudo o que é passado." (p. 203)
"No mundo moderno, o problema da educação resulta pois do facto de, pela sua própria natureza, a educação não poder fazer economia nem da autoridade nem da tradição, sendo que, no entanto, essa mesma educação se deve efectuar num mundo que deixou de ser estruturado pela autoridade e unido pela tradição." (p. 205)