quarta-feira, fevereiro 27, 2008

outra vez a crise da educação

Nos tempos que correm, a educação transformou-se, em Portugal, um dos assuntos que maior controvérsia tem gerado no seio da opinião pública. O Primeiro Ministro, referindo números relativos ao programa "Novas Oportunidades", reclama os louros de uma reforma que nunca ocorreu nos últimos trinta anos. E afirma, categoricamente, que é para prosseguir. A Ministra da Educação, ainda visivelmente desgastada com a contestação de que tem sido alvo – por manifesta precipitação, falta de diálogo e não reconhecimento dos erros – cerra os dentes e diz-se pronta a levar a água ao seu moinho. Os professores (em todo este processo, acusados da responsabilidade pelo estado crítico a que chegou a aprendizagem dos nossos alunos) manifestam o seu repúdio e a sua indignação e reclamam o reconhecimento de um mérito que raramente lhes é assinalado. Os pais reclamam o poder de contribuir para as decisões em matéria edicativa. A opinião pública, que inicialmente fazia coro no julgamento da irresponsabilidade dos professores, acusando-os de incumprimento, absentismo e impreparação, estão agora mais divididos na atribuição da responsabilidade. Em traços muito gerais é este o quadro que alimenta a controvérsia.
Toda a gente reconhece a importância da escola para a formação dos nossos jovens e, consequentemente, para o futuro do país. A grande maioria das pessoas acha-se capacitada para opinar, com propriedade, em assuntos educativos, desconhecendo que esta é uma matéria de dificílima resolução em que mesmo os especialistas não afinam todos pelo mesmo diapasão. Ora, se inequivocamente educar bem é decisivo, a tarefa urgente é saber em que consiste esse “bem”. E aqui é que os problemas começam e avultam. As respostas, mesmo as que antecedidas de aturada reflexão e estudo, não são consensuais nem satisfatórias.
Tomando como ponto de partida uma evidência – a de que a escola é o reflexo da sociedade – necessariamente extraímos a conclusão de que a actual crise da educação é o efeito da crise que a sociedade de hoje atravessa, potenciada pelo facto desta mesma ser objecto de uma mudança vertiginosa. Os ritmos da mudança da sociedade são muito superiores aos ritmos de mundança da escola. É esta assimetria, cada vez mais acentuada, que faz da educação o sujeito e o objecto, simultaneamente, da crise. Se a essência da educação, a partir da modernidade, se prende com a crítica – com o ensino e a aprendizagem de um espírito crítico –, com a deificação do novo e a rejeição da tradição e da autoridade, nela alicerçada, a crise constutui-se, de ora em diante, como o seu fenómeno mais nítido e persistente.
Não é por via da diabolização dos professores (a via mais fácil) que a tarefa se torna menos árida e o caminho menos desimpedido de escolhos. Não é a precipitação das reformas políticas, sobretudo quando estas visam apenas fins economicistas e hostilizam a classe dos profissionais do ensino, que as reformas se implementam. Não se reforma o sistema educativo contra os seus profissionais, despachando decretos em catadupa. A tarefa de o reformar requer bom senso e diálogo, convocando para isso os poderes políticos, os professores e a sociedade cívil, numa articulação em que devem imperar a frontalidade e a boa fé. Todos juntos não serão demais. Lidar com a crise da educação é uma tarefa que incumbe a todos os agentes educativos – que somos todos nós em todos os momentos da nossa vida.
Assente nestes pressupostos, o primeiro passo deve ser dado no sentido de compreender o que significa educar. Perguntas simples devem merecer uma reflexão profunda, que vai muito além da assimilação do jargão pedagógico (o famigerado eduquês). As perguntas simples são: Quem? Quando? Como? Porquê?
Devemos antes de mais entender que a educação preenche todos os momentos da nossa existência, começando com a família (socialização primária), continuando na escola (socialização secundária) e persistindo ao longo de toda a vida activa (socialização cívica). O primeiro passo é decisivo, pois é ele que garante os alicerces e a solidez que as etapas seguintes tratarão de consolidar. Cabe à família a responsabilidade de iniciar o processo, passando depois o testemunho para os restantes agentes educativos (ao limite, a sociedade no seu todo). Educar é como fazer uma corrida de estafetas. A passagem defeituosa do testemunho compromete toda a prova, sobretudo na sua fase inicial. Estarão os pais aptos, nos dias de hoje, para tão importante prova? Se não estão, cabe-lhes reflectir sobre os problemas que a tarefa exige e buscar o conhecimento bastante para entregar o testemunho em boas condições. Só me resta desejar-lhes uma boa prova. Deixo entretanto um texto que pode contribuir para lhes aligeirar o peso da responsabilidade e ajudar a reflectir sobre as tais questões simples enunciadas acima. Um texto límpido como água, desses que não fazem alarde duma linguagem tão críptica que ninguém verdadeiramente entende e faria corar de vergonha os mestres do eduquês, se de facto tivessem a humildade de a sentir.
“Costumamos dar ao rendimento escolar dos nossos filhos uma importância absolutamente injustificada. O que não se deve senão ao respeito pela pequena virtude do sucesso. Deveria bastar-nos que eles não ficassem demasiado atrasados em relação aos outros, que não reprovassem nos exames; mas não nos contentamos com tão pouco; queremos deles o sucesso, queremos vê-los satisfazerem o nosso orgulho. Se vão mal na esscola, ou simplesmente não tão bem como gostaríamos, levantamos no mesmo instante entre eles e nós a barreira do descontentamento permanente; adoptamos para com eles o tom de voz irritado e queixoso de quem lamenta uma ofensa. Então, os nossos filhos, enfastiados, afastam-se de nós. Ou talvez os secundemos nos seus protestos contra os professsores que não os compreenderam, declaramo-los, fazendo coro com eles, vítimas de uma injustiça. E todos os dias lhes corrigimos os deveres, sentamo-nos ao lado deles enquanto fazem os deveres, estudamos com eles as lições. A verdade é que a escola deveria ser desde o início, para um rapaz, a primeira batalha que ele tem de enfrentar por si só, sem nós; deveria ficar, desde o início, claro que se trata do seu campo de batalha próprio, onde não poderemos dar-lhe mais que um auxílio ocasional e insignifiicante. E se, nesse campo, sofre injustiças e é incompreendido, é necessário deixá-lo compreender que essa situação nada tem de estranho, porque, ao longo da vida, teremos de esperar ser constantemente incompreendidos e mal entendidos, bem como ser vítimas da injustiça: a única coisa que importa é que nós próprios não cometamos injustiças. Os sucessos ou fracassos dos nossos filhos são coisas que compartilhamos com eles, porque lhes queremos muito, mas do mesmo modo e na mesma medida em que eles compartilharão, à medida que vão crescendo, as nossas alegrias ou preocupações. É falso que tenham para connosco o dever de ser aplicados na escola e de aí darem o melhor do seu talento. O seu dever para connosco, uma vez que lhes proporcionamos a possibilidade de estudarem, é simplesmente fazerem o seu caminho. Se não querem dedicar à escola o melhor do seu talento, mas usá-lo noutra coisa que os apaixone, seja a sua colecção de coleópteros ou o estudo da língua turca, esse assunto pertence-lhes e não temos qualquer direito a acusá-los por isso, nem a manifesstar-lhes que nos sentimos ofendidos no nosso orgulho ou frustrados na nossa satisfação. Se o melhor do seu talento, aparentemente, não quiserem, de momento, aplicá-lo em nada, e se passam os dias sentados na carteira a morder o lápis, também não é caso que nos confira o direito de os repreendermos demasiado: quem sabe se aquilo que nos parece ociosidade não serão, na realidade, fantasias e reflexões que amanhã darão fruto? Se o melhor da sua energia e do seu talento estão aparentemente a ser desperdiçados, enquanto eles se afundam numa poltrona a ler romances estúpidos ou se agitam freneticamente lá fora a jogar futebol, também nesse caso não poderemos saber se se trata de um desperdício de energia e de talento, ou se também isso, amanhã, sob uma forma que ainda ignoramos, não acabará por dar fruto. Porque as possibilidades do espírito são infinitas. Mas não devemos deixar-nos apanhar, nós, os pais, pelo pânico do fracasso. As nossas cóleras devem ser como rajadas de vento ou o sopro do temporal: violentas, mas rapidamente esquecidas; nada que possa obscurecer a natureza das nossas relações com os nossos filhos, toldando a sua limpidez ou a sua paz. Estamos presentes para consolar os nossos filhos, se um insucesso os entristece; estamos presentes para os consolar, se um insucesso os mortifica. Estamos também presentes para os chamar à terra, se um triunfo os enche de soberba. Estamos presentes para reduzir a escola aos seus limites humildes e estreitos; nada que possa hipotecar o futuro; uma simples oferta de instrumentos, de entre os quais se torna possível escolher um que amanhã será usado.
A única coisa que devemos ter em conta na educação é que nos nosssos filhos o amor pela vida nunca diminua. Trata-se de um amor que pode revestir-se de muitas formas, e as mais das vezes a um rapaz desenvolvido, solitário e esquivo, não falta amor à vida, nem está oprimido pelo pânico de viver, mas num simples estado de espera, ocupado a preparar-se a si próprio para a sua própria vocação. E que outra coisa é a vocação de um ser humano, senão a mais alta expressão do seu amor pela vida?”
Natalia Ginzburg in FERNANDO SAVATER, O Valor de Educar

domingo, fevereiro 17, 2008

é a festa da democracia

Apesar da total falta de sentido de humor, o nosso primeiro-ministro chega por vezes a ter piada. Amarela, bem entendido. Sobretudo quando – e a propósito de manifestações de protesto de que ele é o alvo visado – se refere à democracia. Afirmou ele ontem à tarde, quando foi surpreendido à porta da sede do PS, no Largo do Rato, por uma manifestação espontânea constuituída por dezenas de professores: “É inqualificável que tentem condicionar a actividade um partido. Nunca tinha visto isto em tantos anos de democracia. Isto não tem nada a ver com democracia, tem a ver com falta de educação. Mas o Partido Socialista não se deixa condicionar". É sabido que José Sócrates se irrita com muita facilidade perante manifestações desta natureza. Mas não tem razão. A democracia é justamente o sistema político que faz do pluralismo das opiniões o seu “élan vital”; sem este, a democracia perde sentido, na medida em que contraria o seu espírito e perverte a sua essência. Numa democracia parlamentar, uma das poucas formas que o cidadão comum tem de participar activamente nas decisões políticas é manifestar-se a favor ou contra elas – para além do voto. Ora, sugerir que as manifestações de protesto nada têm de democrático, que constituem acções de inqualificável falta de educação ou civismo, é um absurdo político. Das duas uma: ou o chefe do Governo nunca soube o que é o pluralismo democrático (que não se reduz ao espaço parlamentar, felizmente); ou então, esqueceu-se – porventura no momento em que o seu absolutismo político se viu forçado a conviver, devido ao solipsismo da sua postura, com a contestação social. Afinal, como o próprio afirmou não há muito tempo: é a festa da democracia. E ainda agora a procissão vai no adro...

terça-feira, fevereiro 05, 2008

Preso por ter cão e preso por não ter

Não há volta a dar-lhe. O caso dos projectos de arquitectura assinados pelo engenheiro técnico José Sócrates, alegadamente executados por si mesmo, é um daqueles casos em que se sai sempre a perder. Bem pode o primeiro-ministro bradar ao céus que se trata de mais uma tentativa de ataque pessoal ou de assassinato político. Vem dar ao mesmo. Como dizia o poeta-cantor Jim Morrison, vocalista dos “Doors” – “daqui ninguém sai vivo”. Das duas uma: ou cometeu uma ilegalidade (jurídica ou moral), assinando projectos executados por técnicos da Câmara da Guarda, os quais posteriormente se encarregavam de vistoriar e aprovar; ou foi o autor dos projectos que, concretizados em obra, deram em aberrações estéticas, conforme ficou testemunhado em inúmeros "posts" e páginas de jornal.
Em ambos os casos, nada há nisso que se possa orgulhar. Pelo contrário, ética ou esteticamente, só merece repúdio ou condenação. Nem mais, nem menos. Para quem evoca a ética da responsabilidade, está na hora de assumir as consequências dos seus actos. Se a sua moral não chega a tanto, assuma a vergonha das obras que concebeu.

domingo, fevereiro 03, 2008

humano, demasiado humano

A um ano e meio das eleições legislativas, o primeiro-ministro resolveu que era tempo de se preparar para o embate. O que está em jogo não é uma simples uma vitória – asseguradíssima – mas tão somente a maioria absoluta. Esta é a única que veste na perfeição o seu perfil de governante: autoritário, arrogante e avesso ao diálogo. À distância de dúzia e meia de meses do acontecimento, as sondagens publicadas no “Expresso”, de 2 de Fevereiro, colocam o PS numa situação privilegiada (42,5%), mas a perder terreno “pelo terceiro mês consecutivo”, o que é um sinal inequívoco do desgaste que as políticas impopulares e autistas têm provocado na imagem do Governo.
Terminado o seu ciclo internacional, que culminou com a assinatura do Tratado Europeu e com a recusa do referendo ao mesmo, José Sócrates não teve outra alternativa que não fosse a de se confrontar com a contestação crescente que, a nível nacional, a sua política e a de alguns dos seus ministros foram alvo.
A primeira medida eleitoralista foi remodelar o executivo, o que se traduziu num duplo sacrifício. No altar socrático foram imolados os ministros da saúde e da cultura. Nenhum deles deve ter ficado satisfeito, sobretudo porque se tinham convencido que o primeiro-ministro era feito da mesma massa que os heróis da antiguidade clássica, quase divinos, imune às vozes comuns dos mortais. Enganaram-se. Devem agora sentir-se defraudados com o homem que endeusaram. Só no “timing”, a remodelação é obra sua. No resto, as críticas oriundas da ala esquerda do seu partido – empunhando a bandeira do Serviço Nacional de Saúde – obrigaram-no a tomar as medidas que nos devolvem a imagem de um homem sujeito a pressões, permeável aos jogos de interesses intrapartidários. Esta remodelação (que não se sabe se ficará por aqui) é o reverso da medalha que, no seu cunho autêntico, revela ser uma estratégia política que visa as eleições legislativas de 2009. Com uma oposição inexistente, sobretudo à direita - o PSD, desde a saída de Marques Mendes, morre de auto-asfixia -, o adversário real situa-se na margem esquerda do seu próprio partido, liderada por Manuel Alegre. O espectro de um novo partido político, resultante do Movimento de Intervenção e Cidadania, o qual se formou aquando da candidatura de Manuel Alegre às últimas Presidenciais, não terá deixado a Sócrates margem de manobra, acabando por marcar a sua agenda política. Esta agenda orienta-se agora claramente por preocupações de natureza social.
A segunda medida eleitoralista traduz-se numa tentativa de apaziguar o descontentamento dos funcionários públicos. O ministro das finanças, baluarte da política socrática, revelou ontem estar o Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado – vulgo PRACE – “praticamente concluído”, conclusão que insidirá, porventura de forma residual, sobre a administração regional e local. É caso para dizer: a montanha pariu um rato. A tão apregoada reforma do Estado está suspensa, pelo menos até finais de 2009. Este Governo, em termos reformistas, entrou em licença sabática, tirada para montar e afinar a máquina de propaganda eleitoral. A esquerda moderna de que Sócrates se fez arauto – cujo lema era reformar e modernizar para construir o Portugal do futuro – suspendeu as suas acções vanguardistas. Valores mais altos de levantam agora. Uma vez mais, os fins justificam os meios. E a finalidade tem um nome: maioria absoluta em 2009. O único revés, de momento, é o episódio das assinaturas nos projectos de arquitectura do deputado José Sócrates, nos longínquos anos de finais de oitenta do século passado. É mais uma beliscadura ética no carácter de um homem que se arrogou de quase divino, mas que afinal se revelou “humano, demasiado humano”.