terça-feira, novembro 27, 2007

da inveja lusa

Do ponto de vista ético, a inveja é uma deficiência de carácter, no sentido em que neste existe uma ausência ou a falta de uma virtude. A virtude em falta é o amor. A inveja é o vício que se opõe ao amor, é o seu buraco negro. Ser invejoso corresponde portanto a uma falta de carácter. Uma pessoa invejosa é, eticamente, alguém sem carácter.
Enquanto sentimento, a inveja está associada à tristeza que tem origem na cobiça pelo bem alheio, do mesmo modo que o amor se associa à alegria causada pela ideia do bem que o outro vive.
“Transforma-se o amador na coisa amada”, afirmou Camões. O amor é um sentimento que nos põe em sintonia com o outro. O “ser-com” que estrutura a dinâmica de amar define o outro como próximo. Esta proximidade está bem patente na ideia de “com-paixão”.
Outro poeta recorre à fábula para expressar o sentimento de inveja. Trata-se de Esopo e d’A fábula da raposa e das uvas. Para quem a sabe ler, a inveja resulta de uma impotência que se traduz em ressentimento. Este surge como reacção a um bem pretendido que, por inacessível, o invejoso tende a diminuir, a adulterar e inverter o seu valor. O bom transforma-se em mau, por nivelamento por baixo ou rebaixamento.

Se sob o prisma da ética a inveja traduz uma falta de carácter que tem por consequência o sentimento de apoucamento das virtudes alheias, como deverá ela ser interpretada em termos do social e do político? E que tem ela que ver com o nosso “modus vivendi”? Será a tão propalada tristeza portuguesa, o nosso pessimismo endémico, apenas a outra face da moeda de uma inveja estrutural com que conjuntamente nos vamos consumindo? Será ela a principal causa da anemia nacional de que quotidianamente nos queixamos?

José Gil, no seu pequeno ensaio “Portugal, Hoje – O Medo de Existir”, publicado há três anos, faz um diagnóstico da psique nacional, o qual, fenomenologicamente, nos revela um traço estrutural do “ethos” luso marcado pela experiência salazariata, mas que persiste nos hábitos e na mentalidade do português actual. Este traço estrutural consiste na incapacidade de “inscrição”, de que o sentimento de inveja ou o “sistema de invejas” são um dos conceitos-chave, porquanto entram “perfeitamente na lógica da não-inscrição”.
Para José Gil, a inveja faz parte de um conjunto de factores “que entrevam o movimento e a dinâmica da sociedade portuguesa (…), retiram energia e forças aos indivíduos e grupos sociais.” Mesmo que não seja exclusiva do nosso código genético, ela “tem, em Portugal um terreno de eleição”, o que se traduz no “facto de esta sair de um regime de desvalorização, humilhação e mutilação das forças de vida do indivíduo”, constituindo-se “como um traço da identidade lusitana.” O binómio inveja-ressentimento ressalta de um contexto de forças poderosas de auto-aniquilamento do sujeito colectivo da nação. “Forças poderosas de ressentimento resultantes do esmagamento das forças da vida e da sua transformação em forças de morte. (…) É dentro de um banho de ressentimento que melhor se desenvolve a inveja. É no queixume implícito de se achar a si mesmo pequeno que se inveja alguém que pretende ser maior.” Enquanto potência de ressentimento, a inveja faz parte de uma estratégia que está nos antípodas de confronto directo, assumidamente crítico. Ela assume-se de modo enviesado, como “um meio indirecto de influenciar”, cujos “mecanismos são, no nosso país, duplamente, dissimulados, confundindo-se facilmente com um comportamento normalmente valorizado e aceite.” A sua generalização “é tão vasta que, tal como o medo, constitui um sistema.” Que sistema? Um sistema social em que a intriga, por um lado, e o compadrio, por outro, se sobrepõem ao confronto franco de ideias, à responsabilização da mediocridade e do mérito. Um sistema político em que a democracia só formalmente tem direitos de cidadania, encobrindo com o nevoeiro denso da retórica as fragilidades e o oportunismo de uma acção sem horizonte ético. “Que força ética resta àqueles que não param de se queixar, achando-se vítimas da sociedade e dos outros, da infância e da má sorte, e fazem disso o sentido das suas vidas? Habituados pelo ressentimento, permanentemente ressabiados, vivem efectivamente no ciclo mortífero do ressentimento → inveja → vingança indirecta. Quer dizer, julgando lutar para conquistar o pequeníssimo e ridículo poder a quem julgam que o roubou, são apanhados por um movimento obsessivo que os torna efectivamente impotentes.”
É no contexto desta patologia nacional que interpreto o actual aproveitamento político do governo socialista de José Sócrates. Conhecedores das manhas da retórica manipuladora, apetrechados de uma poderosa máquina de propaganda, jogando com o medo e com o sistema de invejas, pretendem nivelar por baixo uma classe média aburguesada, pouco dinâmica e reivindicativa, cada dia que passa menos politizada. A sua estratégia tem tudo para ser eficaz, num país de mentalidades ressentidas, de invejas cristalizadas, que insidiosamente confunde direitos com mordomias, sindicatos com confrarias de malfeitores, e que não perde a oportunidade para arrastar tudo e todos para o lodaçal e a mediocridade de uma vida que tudo justifica pelo fado da eterna pobreza.

domingo, novembro 25, 2007

uma reflexão sobre educação

“ (…) Estaríamos a trair a confiança que o público nos dispensa se, em vez de alargar a capacidade de entendimento dos jovens entregues ao nosso cuidado e em vez de os educar de modo a que no futuro consigam adquirir uma perspectiva própria mais amadurecida, se em vez disso os enganássemos com uma filosofia alegadamente já acabada e cogitada por outras pessoas em seu benefício. Tal pretensão criaria a ilusão de ciência.”
Immanuel Kant

Na opinião pública corrente, muitos são os discursos que referem a importância ou da cultura do esforço ou da cultura do prazer, para levar a bom termo o processo de ensino-aprendizagem. Esta visão dicotómica da realidade pedagógica traduz duas perspectivas, que se pretendem antagónicas na assumpção de convicções/ideologias extremadas, as quais não é invulgar ouvir, amiúde, da boca desses protagonistas responsáveis do processo educativo que são os professores.
Por norma, os defensores da cultura do esforço escarnecem dos seus adversários, recorrendo a lugares-comuns como “aprender não é uma brincadeira” ou “a sala de aula não é um recreio”. Do binómio ensino-aprendizagem entendem que o primeiro dos termos (o professor) deve submeter o segundo (o aluno) a um exercício magistral de um saber, que se transmite e se deve reproduzir ipsis verbis. Os alunos devem sofrer a acção de uma formatação automática, que os testes/exames se encarregarão de avaliar. Sabem de ciência certa que é o objecto (saber/conteúdos/fins) que determina o sujeito (competências/meios).
Também por norma, os defensores da cultura do prazer lamentam as atrocidades a que os alunos estão sujeitos, às mãos dos mestres-escola saudosistas do antigamente. Horrorizados perante “os espaços concentracionários” que são certas escolas, refugiam-se no ideário rousseauniano e sonham com a utopia de uma escola sem normas, em que a criança, qual planta exótica e exuberante, se desenvolve, ao Deus dará, como “indivíduo todo ele sentimento”, livre das amarras de qualquer compromisso linguístico-social. Intuem que o aluno é um sujeito puro, que se constrói de si para si, num solipsismo hedonista que está para lá de qualquer princípio que não seja o do prazer.
Esta caricatura nada mais pretende ser do que um esboço, em jeito de arremedo, de posições pedagógicas que se vão tomando ao sabor de modas e de idiossincrasias, e que configuram dois “estilos de liderança” ou “modelos de professor” opostos e inconciliáveis: o “autocrático” e o “laissez-faire”. Um e outro remetem para ideologias que constituíram as mundividências predominantes com que o português se apetrechou para enfrentar os problemas da educação. Ambos se alicerçam em vivências políticas que se sucederam de um dia para o outro – a do autoritarismo policiário de outrora e a do exercício irresponsável da cidadania com que quotidianamente nos mascaramos para jogar uma democracia de Carnaval.
É o défice do autêntico exercício democrático que nos impede de tomar os problemas da educação na sua real dimensão, e nos não permite vislumbrar possíveis soluções que, havendo coragem de o experimentar de forma participada e directa, não sejam de todo impossíveis de encontrar. Se a escola é o reflexo da vida social e política, a ela que caberá porventura o papel crucial na transformação desse tecido múltiplo e complexo em que todos nós nos movemos. Talvez seja a hora de assumirmos como nossa (da escola) a tarefa de promover uma cultura verdadeiramente democrática que nos falta. Que modelo pedagógico se encaixará nesta exigência de formar para a cidadania participada e directa?
Em tese, destaca-se o modelo protagonizado pelo “Movimento da escola moderna”, o qual dá “especial relevo à construção da formação democrática na escola, através dos subsistemas de circulação dos saberes, de cooperação educativa no trabalho de aprendizagem e de participação democrática na organização social das aprendizagens curriculares.” Deste ponto de vista, a construção da formação democrática pressupõe que a orgânica da educação escolar se faça pela articulação dos subsistemas enumerados.
Dos circuitos de comunicação se exige que sejam livres do policiamento que lhes atrofia a expressão plural. A liberdade de expressão, o livre acesso à informação, a interacção com o outro, o diálogo, e a busca conjunta do saber e do saber-ser, constituem uma dinâmica e um clima capaz de estimular “os alunos a desenvolver formas variadas de representação e a constituírem, em interacção, os conhecimentos sobre o mundo e a vida.”
Das estruturas de cooperação educativa espera-se que cimentem a construção de uma dinâmica intersubjectiva, de comportamentos e processos cooperativos, lançando as bases de uma aprendizagem do que é viver numa comunidade democrática. A aquisição de competências relacionais e cooperativas reforça o sentimento de que a subordinação dos objectivos individuais aos objectivos comuns é o motor do sucesso do grupo, e desvaloriza a competitividade individual como mecanismo de desenvolvimento pessoal e intelectual.
Da participação democrática directa dos alunos, em todos os momentos/decisões da governação do barco educativo, é legítimo esperar que contribua para a formação da plena cidadania, pois só mediante a experiência quotidiana do exercício democrático se adquirem valores e “princípios universais de justiça, reciprocidade, igualdade e respeito pela dignidade dos seres humanos”
A aprendizagem do “ser-com-os-outros”, da cidadania comprometida, é uma ferramenta não apenas mental mas existencial, que cabe à escola ensinar em prol da construção de um amanhã em que se respire e transpire uma cultura democrática. Ensinar e aprender requerem esforço e prazer partilhados. É da partilha da experiência democrática que se constrói a cidadania.

quarta-feira, novembro 21, 2007

um governo panglossano

Em 1759, o cidadão francês François-Marie Arouet publicava, sob o pseudónimo Voltaire, um romance filosófico considerado como um texto paradigmático do iluminismo. O romance intitula-se “Cândido ou o Optimismo” e é muitas vezes lido como uma crítica ao optimismo da época. Este ataque irónico tinha como objecto a crença geral no poder decifrador da razão e, mais especificamente, a filosofia de Leibniz.
O iluminismo foi inequivocamente um período ímpar da história mundial, precursor de muitas conquistas filosóficas e científicas das quais ainda hoje somos herdeiros. Os arautos da autonomia da razão vão protagonizar a defesa de alguns dos princípios que norteiam ainda hoje o modo como nos entendemos a nós próprios e como agimos. As ideias da liberdade, da igualdade e da tolerância consubstanciam o programa ideológico da modernidade. Mas trata-se de uma época paradoxalmente marcada por atrocidades, patologias sociais, injustiças, desastres (Lisboa e o terramoto de 1755), sofrimentos e, qual caixa de Pandora, a esperança. O romance narra as desventuras do jovem Cândido e seus companheiros que, nas suas viagens, são confrontados com os inúmeros signos do mal que povoam o Mundo. São estas experiências do mal que vão contribuir para a contínua erosão da sua crença optimista e cravar um espinho numa razão especulativa e dogmática. É neste contexto que Cândido se vê forçado a reflectir sobre as bases dessa filosofia optimista na qual foi educado pelo seu preceptor Pangloss, protagonista que se apresenta a si próprio como filósofo, discípulo de Leibniz. O filósofo alemão defendia, por um lado, que na Natureza nada sucede sem razão (princípio da razão suficiente), e por outro lado, que vivemos no melhor dos mundos possíveis, regulado previamente por Deus (harmonia preestabelecida), aos olhos do qual o Mal é um instrumento para realizar o Bem.
Respiguei três citações do romance para ilustrar a concepção filosófica que nele está submetida ao espigão da sátira. Na primeira, Pangloss justifica: “Tudo isso era indispensável, e as desgraças particulares fazem o bem geral; de modo que quantas mais desgraças houver, melhor se poderá dizer que tudo está bem.” Na segunda, o preceptor responde a uma objecção do seu discípulo: “E então, meu caro Pangloss – perguntou-lhe Cândido –, quando foi enforcado, dissecado, açoitado e obrigado a remar nas galés pensou sempre que tudo neste Mundo ia o melhor possível? – Eu sou sempre da minha primeira opinião – respondeu Pangloss –, porque, enfim, sou filósofo: não devo desdizer-me, porque Leibniz não podia ter razão, e a harmonia preestabelecida era também a coisa mais bela deste Mundo, assim como o são o horror ao vácuo e a matéria subtil.” Na terceira, deparamos com a conclusão do romance: “– Todos os acontecimentos andam encadeados no melhor dos mundos possíveis; porque, enfim, se o senhor não me tivesse expulso de um belo castelo com uns poucos de pontapés no... por amor da senhora Cunegundes, se não tivesse sido encarcerado pela Inquisição, se não tivesse percorrido a América a pé, se não tivesse dado uma boa estocada no barão, se não tivesse perdido todos os seus carneiros do bom país do Eldorado não estaria aqui a comer compota de cidra e outros doces – Tudo isso é muito bem dito – respondeu Cândido –, mas vamos a cultivar o nosso jardim.”
O que mais me impressiona neste romance é a possível leitura que dele podemos fazer para interpretar a actualidade política do Portugal hodierno. O governo socialista, com o seu timoneiro José Sócrates, secundado pelo imediato Fernando Teixeira dos Santos e pelos demais marinheiros que tripulam a Nau Catrineta do nosso descontentamento, parece uma encarnação do optimismo panglossano. É capaz de justificar o empobrecimento crescente dos portugueses pela necessidade de cumprir o défice, e ainda assim pretender fazer-nos acreditar que vivemos no melhor dos mundos possíveis.
O melhor que os portugueses têm a fazer é seguir o conselho final de Cândido e tratar do jardim comum. E já agora cuidar de limpar as ervas daninhas.

falácias de um discurso político

As mais recentes declarações mediáticas da Ministra da Educação, senhora Maria de Lurdes Rodrigues de seu nome, são um exemplo claro do que é uma peça de retórica política. Em resposta à questão de hipoteticamente constituírem as medidas tomadas pela sua tutela um ataque aos professores, ou, numa linguagem mais coloquial, se o seu ministério está contra os docentes, ela respondeu com um não rotundo. O que seria de esperar, de seguida, uma vez que estamos em presença de uma “ex-prof” do ensino universitário, doutorada em Sociologia, o expectável era que ela se servisse de uma conjunto de argumentos sólidos e fortes, inatacáveis do ponto de vista lógico, capazes de sustentar a sua tese. Em suma, que proferisse um discurso consistente. Mas, o que não é de espantar, quem deu voz ao discurso foi o político (o género para o caso não interessa). E como político, usou de uma estratégia tipicamente retórica. Não respondeu directamente à questão. Limitou-se a vestir a sua visão maniqueísta da política educativa com a roupagem de argumentos persuasivos no pior sentido do termo, isto é, preocupou-se em manipular o auditório. Ora, a persuasão manipuladora visa não esclarecer e elevar intelectualmente o auditório, mas apenas fazê-lo aderir às suas teses, cativando-o pela via mais imediatista – a emotiva. Como diria um dos teóricos da argumentação, Chaïm Perelman, não cuidou de convencer mas de persuadir, que é como quem diz, não expôs razões, mas procurou dispor emoções.
Aristóteles, o primeiro grande teórico da retórica, afirmaria a pés juntos que o discurso da Ministra da Educação é um exemplo clássico de um discurso que usa um tipo específico de prova – o “pathos”. Servindo-me livremente de uma semelhança fonética, eu diria que o seu discurso foi patético, no sentido em que só os patetas de deixam persuadir por manipulação das suas emoções, que não por razões. Mas mais ainda nos ajuda o filósofo que fundou o Liceu em Atenas, no longínquo século IV a.C. Disse que os argumentos típicos do discurso retórico eram o exemplo e o entimema (argumento que não é possível avaliar em termos de validade porque contém uma ou mais premissas omitidas). Foi precisamente de argumentos desta categoria que a Ministra de educação se serviu para (não)justificar o que imperioso seria que justificasse. Para ilustrar a sua pseudo-resposta, ela exemplificou e “entimemou”, para além de “maniquear”. O seu raciocínio é de uma linearidade assustadoramente perversa. Como se realidade educativa do Portugal presente foi uma realidade a preto e branco, em que as alternativas fossem apenas um mero sim ou sopas (falácia que dá pelo nome de falso dilema). Os sindicatos (que estão contra as actuais políticas educativas que são boas) defendem os interesses dos professores. Os responsáveis pela boa política educativa deste governo (aulas de substituição, rigor, etc.) defendem os interesses dos alunos e dos encarregados de educação. Deixou, como estratégia retórica, que fosse o auditório a sacar a conclusão, que, de tão linear, só pode ser esta: os professores que estão com o sindicato são maus, os restantes, que apoiam as medidas do ministério, são bons. E isto a pouco mais de uma semana da greve marcada pelos sindicatos que representam a totalidade do espectro político. Mas não serão as premissas discutíveis? Não representarão os sindicatos, para além dos seus legítimos interesses corporativos, outros interesses? Não deveria o Ministério da sua tutela, Sra. Ministra, defender também os interesses dos professores, para além do mais? Poderão os objectivos da educação ser atingidos apenas respeitando os interesses de alunos e encarregados de educação? E já agora, outra questão: será um discurso falacioso a melhor arma para resolver os problemas graves e profundos em matéria educativa?
Termino com um texto de uma mulher, de seu nome, Hannah Arendt. Não sei se a cidadã Maria de Lurdes Rodrigues já teve oportunidade de reflectir sobre as questões que nele são colocadas:
“Nunca nin­guém duvidou que a verdade e a política sempre estiveram em bastante más relações e, tanto quanto eu saiba, também nunca ninguém incluiu a boa fé na classe das virtudes políticas. As mentiras sempre foram consideradas necessárias e justificáveis, não apenas à profissão do político e do demagogo, como até do próprio estadista. Por que será assim? O que é que isto represen­ta, por um lado, para a natureza e dignidade da esfera política e, por outro, para a natureza e dignidade do domínio da verdade e da boa fé? Será da essência da verdade ser inoperante e da essên­cia do poder ser enganador? Que género de realidade possui a verdade, se não consegue poder no domínio público, o qual, mais do que outra esfera qualquer da vida humana, confere rea­lidade à existência dos homens, que nascem e morrem, ou seja, de seres que sabem que surgiram do não-ser para a ele retoma­rem depois de uma breve passagem? E, no fim de contas, não será tão desprezível a verdade impotente quanto o poder que não se preocupa com a verdade? Estas são questões bem emba­raçosas, mas que não podem deixar de advir necessariamente das nossas convicções correntes sobre a matéria.”

sábado, novembro 17, 2007

verdade e política

Apesar do Orçamento de Estado para 2008 não ter previsto crescimento algum para o Ministério da Educação, o Governo parece apostado em investir forte nos cursos profissionais. A avaliar pelos discursos e manobras de propaganda dos responsáveis governativos, nos últimos meses, com ostensivas e mediáticas entregas de diplomas e de computadores, o ensino profissional parece ser a menina dos olhos quer do Primeiro-Ministro quer da Ministra da Educação.
Hoje mesmo foi noticiado no Público mais uma medida que reforça o referido investimento. O que seria de louvar, se levarmos em linha de conta que, desde o funeral das antigas escolas industriais, o país tem visto crescer, em época de massificação e de democratização do ensino, o número de doutores e engenheiros em áreas que o mercado de trabalho não consegue absorver, atirando-os para uma situação de precariedade laboral ou de desemprego crónico.
Pode ler-se na notícia: “Os alunos que estão inscritos em cursos profissionais, tanto no ensino público como no ensino privado, vão ter direito a um subsídio de transporte e alimentação já a partir de Janeiro (…) O Governo está ainda a estudar outro tipos de auxílios, designadamente durante os estágios curriculares. A medida insere-se na política de apoio à frequência do ensino secundário, que passa ainda pelo alargamento dos limites a partir dos quais os alunos podem candidatar-se à acção social escolar.”
O problema é que, com esta medida se cria uma situação de flagrante injustiça face aos demais alunos do ensino secundário. A dita “política de apoio à frequência do ensino secundário” parece descriminar positivamente apenas um grupo restrito de alunos, penalizando todos os outros, porventura a maior parte. Uns são filhos da mãe, os outros são filhos da outra. Para além do mais, esta medida de profissionalizar a todo o preço, pode conduzir a realidades caricatas, nomeadamente a de premiar a mediocridade e desprezar o mérito. Não deve a política de ensino dar prioridade sobretudo à promoção da excelência e do mérito? Ou está o país em condições de se descartar das virtudes que melhor podem criar riqueza em matéria de recursos humanos? Ou será que esta medida tenta desesperadamente minimizar o deficit de uma política educativa que, para lá da propaganda e visibilidade mediática, poucos efeitos produzirá? Ou, como afirma Hannah Arendt no seu ensaio “Verdade e política”: “será da essência da verdade ser inoperante e da essência do poder ser enganador?”