quarta-feira, outubro 17, 2007

uma pobreza de governo

Mais coisa menos coisa, um quinto da população portuguesa é pobre. Estes são os dados do INE para 2005. Contas feitas, 2 milhões de portugueses, mais coisa menos coisa, vivem em situação de pobreza monetária, o que significa que têm rendimentos mensais por adulto equivalente – o qual é obtido “dividindo o rendimento líquido de cada família pela sua dimensão em número de adultos equivalentes e o seu valor atribuído a cada membro da família” – inferiores a 360 euros.
O mesmo INE, para o mesmo ano, refere que Portugal é o país da Europa a 25 com maior desigualdade de distribuição de rendimentos. O valor do seu coeficiente é de 38%, numa variação de “0 (quando todos os indivíduos têm igual rendimento) e 100 (quando todo o rendimento se concentra num único indivíduo)”.
De 2005 ao presente ano, se porventura houve alterações, não terão sido para melhor. O aumento da taxa de desemprego, do emprego precário, do custo de vida, o endividamento crescente das famílias, o congelamento das carreiras da função pública, não permitem outra conclusão – a generalidade dos portugueses vive pior hoje do que se vivia há dois anos. Para além dos citados 2 milhões de pobres, mais 2 ou 3 milhões estarão próximos ou a caminho de pisar o risco da pobreza.
Entretanto, o Governo propõe um orçamento para 2008 que penaliza os pensionistas e os deficientes (a maior fatia dos pobres), enfim, os mais desprotegidos. Em termos de repartição do bolo por ministério, a saúde e a educação, ficam na mesma, mais coisa menos coisa, o que, comparativamente com outros ministérios, significa um desinvestimento. Lembram-se do refrão da canção de Sérgio Godinho dos anos setenta? Rezava assim: “a paz, o pão, saúde, educação, só há liberdade a sério quando houver…”E é este um governo socialista chefiado por um PM que apregoa as virtudes da nova esquerda! As suas prioridades falam por si. Quais são as prioridades dos portugueses cada vez mais pobres? Não serão certamente as mesmas.

quinta-feira, outubro 04, 2007

Tota o devorador de emoções

Há sete meses e pico que ele está a viver cá em casa. O mínimo que eu posso dizer é que a nossa vida mudou como da noite para o dia, ou vice-versa. Alteraram-se os hábitos e as rotinas, mudaram-se os comportamentos e os humores, o nosso pólo magnético rodou 180 º e as coordenadas da nossa existência viraram-se de tal modo do avesso que ainda hoje pergunto a mim mesmo onde pára o eixo das abcissas. O ele a quem me refiro chama-se Tota, tem dez meses, pertence à espécie canina.
O episódio que agora lembro ocorreu há mais ou menos trinta anos. Lembrá-lo hoje surpreende-me pela nitidez dos pormenores, sobretudo porque inúmeros outros vão permanecer na penumbra do esquecimento. Era ao entardecer de um dia igual a tantos outros. Num repente, ouvi o chiar dos pneus de um carro no atrito do asfalto e, de seguida, o som côncavo de um embate. Corri ao local onde se amontoava um magote de pessoas. Por entre pernas, braços, saias e calças avistei o pequeno Boneco estendido na calçada que ladeava a estrada. Contorcia-se no abraço da morte. Um fio de sangue espesso e escuro escorria-lhe do focinho e tingia o branco do calcário. Uma vizinha surgiu numa ânsia do desastre. “Quem foi atropelado?” – perguntou. “Foi o cão da vizinha Albertina” – respondeu-lhe o filho do sapateiro. “Então não foi ninguém? Foi um cão?” – tornou a interrogar desiludida. “Morreu, fodeu-se.” – Sentenciou ela categoricamente. E eu concordei em silêncio.
Menos cruamente, é certo, com um pouco mais de humanidade, sem dúvida, mas ainda assim foi esse o entendimento em relação aos bichos que me acompanhou pela vida fora. Um degrau acima das coisas, mas muitos abaixo das pessoas humanas.
Tudo mudou, no entanto, no dia em que o Tota entrou cá em casa, começando a contar, desde então, como um membro mais da família. À semelhança de um filho que, ao longo da sua meninice e adolescência, vai mudando sucessivamente o tipo de problemas que nos coloca, desafiando a nossa capacidade inventiva e persistência (e muitas vezes torrando-nos a paciência) no sentido de os resolver e tocar as coisas para a frente, o Tota porfia na invenção de situações problemáticas para as quais nenhum de nós se sentia preparado. A fase do xixi e do cocó, estrategicamente depostos pelos cantos da casa, já passou, felizmente. Aprendeu que tal género de dejectos não só não são comestíveis como têm o seu lugar natural de existência. Aprendeu também, para felicidade nossa, a sentar-se quando lho ordenam, a deitar-se ou a dar a patinha se lho exigem, e mesmo, qual número de circo, a erguer-se nas patas traseiras e tornar-se momentaneamente bípede quando ouve pronunciar a palavra “upa!” No entanto, continua muito longe de se tornar humano. Nos últimos dois meses deu-lhe para destruir os objectos mais singulares: óculos, sapatos, sandálias, chinelos, meias, calculadora, esferográficas, almofadas, a ombreira de uma porta, sofá, duas camas caninas, estantes, cadeirões, papéis e mesmo livros. Tudo lhe serve de objecto de brincadeira, sobretudo quando se apanha sozinho em casa. Esta está a transformar-se rapidamente num cenário de ataque de terrorismo. Este tem sido o nosso 11 de Setembro. E o Tota começa a parecer-se com um dos seguidores mais fiéis do Bin Laden. Democráticos como de facto somos, temos sido tolerantes. Mas a tolerância tem limites, como todos muito bem sabemos. Começamos a ponderar enviá-lo para Guantámano. O dilema está a tornar-se de tal modo agudo que quando venho a caminho de casa já sinto o coração aos sobressaltos. Este dilema formula-se assim: nem o Tota se tornou membro da família, nem nós nos tornámos membros da sua matilha. Por estas e por outras, se tivesse um pouco de fé, juro-vos que rezaria diariamente uma oração à virgem canina. Nestas situações não dá jeito nenhum ser ateu.
Termino estas linhas com o testemunho do jornalista Joaquim Fidalgo. Só tenho pena que o Tota, devorador de livros, jornais, esferográficas e resmas de papel, não o possa ler: “um cão gosta de nós e pronto. Não exige, contenta-se com tão pouquinho, com um mimo ou uma atenção, com uma velha bola de ténis, com um pauzinho apanhado na praia. E gosta de nós sem querer saber se somos ricos ou pobres, brancos ou pretos, conhecidos ou anónimos, do Porto ou do Benfica, altos ou baixos, lindos ou feios…Gosta de nós e pronto. E só quer que gostemos dele. Que não lhe façamos mal. Que o tratemos com carinho. Que lhe façamos festas. Que brinquemos com ele. Que o mimemos. Só isso.”E já agora acrescento: sabes bem, Tota, o quanto gostamos de ti.