sexta-feira, junho 29, 2007

Doutores e Engenheiros

Aqui há uns anos – lembram-se? – havia um concurso televisivo que passava em não sei que canal com o pomposo título Doutores e Engenheiros. Não me recordo mais nada (não tenho tempo nem quero pesquisar). Não sei que apresentador(es) o apresentava(m), nem tenho a mínima noção do seu formato e do seu conteúdo. Tenho sim a impressão de que era pró mauzinho. Que me perdoem os que não concordam comigo e têm uma memória viva do dito. Há quem afirme que gostos não se discutem. Acho que essa opinião é discutível, mas não vem agora ao caso fazê-lo. O que vem ao caso é eu considerar que existem algumas semelhanças entre o tal concurso e o actual governo, a começar pelo título.
Alguns dos seus membros não é doutor ou engenheiro? Nem um. Alguns de vós replicarão que não senhor, que isso de ser doutor ou engenheiro tem muito que se lhe diga, não é para qualquer borra-botas, lembrando talvez as recentes polémicas com as habilitações académicas do Primeiro Ministro. Ora, balelas! Deixem-se de preciosismos. Ninguém ou quase ninguém faz caso disso. Não é corrente a auxiliar educativa (sra. "Contina") chamar ao professor de ginástica – sempre gostei da expressão – sr. Doutor? Não é hábito da funcionária do bar de um instituto qualquer dizer ao licenciado em engenharia: “sr. Engenheiro, esqueceu-se do troco”? Adiante, que se faz tarde.
Dir-me-ão, no pressuposto de que não terei resposta: mas afinal que demais parecenças se poderão apresentar? Respondo com uma palavra: mauzinho. A única diferença é que os doutores e engenheiros do referido concurso não tinham consequências práticas para a coisa pública (ou teriam mínimas), ao passo que os doutores e engenheiros do governo têm-no e de que maneira. No que diz respeito ao formato governativo, respigarei apenas algumas características: arrogância, prepotência, autoritarismo, autismo e instinto pressecutório e intolerância. Para dar conteúdo a este formato basta que nos lembremos de exemplos que corporifiquem as características enunciadas. Lembremos os casos recentes da OTA, do professor punido pela piada jocosa, do nosso colega bloguista que ousou questionar por escrito as habilitações do Primeiro Ministro e, por último, a fulana exonerada por ter deixado que una cartazes insultuosos manchassem a figura política do Ministro da Saúde. Parece que alguns ministros e seus sequazes não toleram a crítica e lidam mal com a liberdade de expressão, sobretudo quando esta se reveste de um tom sarcástico e provocatório. Pobres coitados, que não sabem rir-se de si próprios! – “Ai dos mestres que não sabem rir-se de si próprios” dizia Nietzsche. Para todos eles recomendo um manguito à Zé-povinho, que tenho como uma saudação que, do túmulo, lhes envia o grande Rafael Bordalo Pinheiro. Já agora, leiam o Eça e assistam a algumas das representações vicentinas. Cultivem o riso e a ironia, mesmo quando pela manhã se enxergam ao espelho. Que bem que faria a essas personalidades crispadas! E à democracia.

domingo, junho 24, 2007

Num país de brandos costumes e de atitude indiferentista em relação a assuntos de cidadania participativa, uma questão importante seria a de saber que ideia têm os portugueses do Estado. Não confundamos as coisas. Não se trata de saber qual é a opinião que os cidadãos lusos têm, hoje por hoje, dos políticos em geral e do governo em particular. Isso sabe-se. Qualquer sondagem nos transmite com facilidade esses dados. Melhor seria ficarmos a saber o conhecimento médio que temos em matéria de política. Suponho que seja sofrível, para não dizer medíocre. Mas creio que nenhuma sondagem ou estudo de opinião nos diga, a propósito, nada de significativo.
O que é o Estado? Será o Estado sinónimo do governo? O que caracteriza um regime democrático? Que distingue democracia directa de democracia representativa? Será aquela possível na actualidade? Que outros regimes políticos existem para além da democracia? Por que razão é a democracia preferível? Quais as debilidades do regime democrático? O que distingue, no essencial, cidadania passiva de cidadania activa ou participativa? É a democracia possível para além do sistema partidário? Eis algumas questões - outras seriam igualmente importantes - com que gostaria de confrontar a maioria dos portugueses. Porquê? Para avaliar a sua consciência política. E dessa avaliação tirar ilações. Talvez venha a ser necessário introduzir nos "curricula" escolares, como obrigatória, uma disciplina de cidadania política. Lembro que após o 25 de Abril houve uma disciplina de Introdução à Política. Foi ela que me permitiu ter algumas noções básicas da matéria em questão.
Dizia Aristóteles ser o homem um animal político. Esta identidade é hoje renegada ou apenas lembrada para a aplicar a alguns políticos da nossa praça. Ao olhar para a nossa gente do presente e do amanhã, parece-me antes sermos fundamentalmente animais apolíticos, o que, na opinião de Aristóteles significaria sermos animais ou deuses. Da a impossibilidade de sermos deuses, resta-nos a animalidade.

quarta-feira, junho 13, 2007

O governo começa a ceder. A frase encerra hoje uma opinião generalizada. Comentadores, jornalistas e fazedores de opinião, quase sem excepção, afinam a voz neste coro. Apontam como sinais da cedência, fundamentalmente, a morosidade das prometidas reformas da Administração Pública e a recente hesitação quanto à localização do futuro aeroporto. Argumentam que as razões dela se devem quer à proximidade da presidência portuguesa da União Europeia, quer ao facto de termos entrado na segunda metade deste ciclo legislativo, quer ainda ao fim do estado de graça governativo. Talvez tenham razão. Mas é bom não esquecer outras evidências. O caso da licenciatura de Sócrates - terá provocado mais mossa do que o previsto? -, os dislates verbais de alguns ministros, a teimosia e a inépcia de outros, e sobretudo o tom de arrogância e de autismo democrático com que se têm procurado impor medidas impopulares. Se lhes acrescentarmos o progressivo e alargado empobrecimento do cidadão comum e a sensação de injustiça social que se adensa como nevoeiro em manhã fria e húmida, temos certamente o cenário de um desconforto que invade hoje por hoje a maioria dos portugueses.
Tenho para mim que o governo começou a ceder por dentro, não nas últimas semanas, mas a partir do momento em que começou a somar derrotas eleitorais, em que o Primeiro Ministro teimou em manter no executivo ministros sem a mínima capacidade. Quando se fechou em si próprio e não teve a sensibilidade necessária nem para dialogar com os seus parceiros negociais nem para tomar o pulso ao povo a tempo e horas (dialogar e mostrar compreensão nem sempre é sinónimo de cedência).
A força que o governo exibiu teve sempre apenas uma direcção: as populações mais pobres ou com menos poder reivindicativo: fechou maternidades e escolas no interior, aniquilou a moral de uma classe fraca e desprotegida - os professores. Nunca se mostrou capaz de confrontar os poderosos e aqueles que melhor instalados estão na vida: a banca, os grandes empresários, os juízes, etc. Ora, os mitos - como o do Robin dos Bosques - são eternos, justamente porque simbolizam a luta contra os poderosos e o legítimo anseio de justiça. O governo não soube, não quis ou não pode protagonizar essa luta e esse anseio. Pelo contrário, adoptou políticas que renegam uma esquerda que se pretendia moderna. Falhou o alvo, na sua míopia governativa. Mesmo ganhando as próximas eleições para a Câmara de Lisboa, a vitória, por escassa, soará a mais uma derrota. Assim, terá o que merece: o descrédito e a desconfiança. Pior que isso - o autodescrédito e a autodesconfiança começam a minar o espírito de um governo que se apelidou de reformista. O melhor é reformar-se. Ou então reformar a sua visão política e mudar de política, que é como quem diz mudar de vida.

quarta-feira, junho 06, 2007

Do Zé e dos outros

À excepção de Platão e do meu amigo Zé Ernesto (ex-pastor e agora camionista de longo curso) – o primeiro por considerá-los uns embusteiros e, por conseguinte, perniciosos à República; o segundo por achar que não passavam de uma corja de meliantes que se serviam do seu “métier” como mero estratagema para a boa vida –, à excepção de ambos, dizia eu, toda a gente que conheço nutre pelos artistas alta estima e apreço.
Não pretendo com isto afirmar que o meu amigo Zé seja platónico. Nem tal me passaria pela cabeça. Não violo o princípio da não-contradição por dá cá aquela palha. Aliás, violá-lo seria para mim crime tão hediondo como violar uma qualquer adolescente com formas de Afrodite apetecível, por mais que o cão do desejo se não cansasse de me ladrar à porta, como diz o poeta. O caso é outro e bem diverso. O caso é eu – que me perdoe o Zé e Platão (amigo de ambos, mas mais amigo da verdade) – alinhar noutra equipa, precisamente naquela que apregoa caber à arte, mais do que à ciência ou à filosofia, um papel determinante na justificação da existência. Nisto sou nietzscheano, confesso. Na sua obra inaugural, “O nascimento da tragédia”, publicada em 1871 sob o signo de Wagner, Nietzsche exprime a sua “metafísica de artista”, defendendo, entre outras, a seguinte tese: só a arte (trágica) justifica a existência. Tendo como adversário Platão (Sócrates), “o ponto solsticial e a coluna em torno da qual gira a dita história do mundo” (NT, 15), o filósofo do pessimismo trágico começa, na obra citada, o seu combate contra uma concepção teórica que dominou o destino da civilização ocidental, desde que o racionalismo estético de Sócrates assassinou a tragédia. Ancorado numa concepção trágica da existência (que aceita a dor e o sofrimento como condição de possibilidade de transfiguração da vida em potência), Nietzsche propõe uma inversão de valores e a aceitação do mundo sensível como o único capaz de potenciar a existência: “Temos, agora, de avançar briosamente para o terreno de uma metafísica da arte, retomando uma das nossas asserções, a saber, que a existência do mundo não parecem justificáveis a não ser como fenómeno estético: neste sentido, o mito trágico deve convencer-nos que, até mesmo o horrível e o monstruoso, são um jogo estético com que a vontade brinca na eterna plenitude da sua existência” (NT, 24). Que me dizes a isto Zé? Eu sempre disse que não eras platónico. Talvez esteja em condições para afirmar que talvez também tu sejas nietzscheano. Mesmo que o não saibas. Direi mais. Talvez sejamos hoje em dia todos um pouco nietzscheanos sem o que de tal suspeitemos. Mas seremos mesmo?

domingo, junho 03, 2007

Nietzsche ou o profecta de todos os desertos

Apesar de ser talvez o filósofo mais comentado e venerado do mundo ocidental, Nietzsche não é certamente o melhor compreendido, por variadas razões, nomeadamente pelo carácter assistemático e errante do seu pensamento, pela forma aforística dos seus textos mais conhecidos e pelo tom irónico e profético da sua voz.
Obras com o título Assim falava Zaratustra, Anti-cristo, Para além do bem e do mal e O crepúsculo dos ídolos – ou conceitos do quilate dos super-homem, eterno retorno e vontade de poder constituem, nas palavras que delimitam os seus contornos, um apelo e uma sugestividade que justificam o êxito enorme que teve logo após a sua morte. Se lhe acrescentarmos a figura austera, o semblante carregado, a bigodaça farfalhuda de piaçá, bem como o facto de se ter dirigido explicitamente ao homem do porvir, com promessas de uma redenção suspeitamente envenenada, percebe-se o quanto a sua filosofia pode ter de atractivo aos olhos e ao entendimento (ou sua falta) dos biliões de pessoas que vivem hoje sob o signo do prognosticado niilismo, ainda o século XIX não se tinha cumprido de todo.
Nietszche é o filósofo que levou a crítica ao paroxismo do seu estatuto filosófico mais autêntico. Radicalizou-a, conduzindo-a às suas consequências mais extremas e perigosas – objectivamente, à suspeição dos pilares ou valores em que assenta a civilização ocidental; subjectivamente, ao trilho da loucura que o encerrou onze longos anos no silêncio da inocência. Nos escombros desse silêncio prenunciava-se o deserto que cresceu e inunda hoje os nossos dias. É o vento desse deserto que urge escutar, decifrando nele os sentidos múltiplos daquela voz que precisava de se mascarar para enunciar verdades que ferem como punhais assassinos.
Ao domingo à noite, na RTP1 e em horário nobre, o professor Marcelo continua a representar o seu papel de actor medíocre. Acompanhado pela jornalista - sua "partenaire" nesse jogo do faz de conta idiota para consumo de papalvo - não se coíbe de dar corpo e espírito a uma encenação que chega a comover pelo ridículo e pelo kitsch. Bem sei que o formato está feito para ser consumido por um incontável número de pessoas que não abona em capacidade crítica. Ou para ser passivamente absorvido à hora soporífera que antecede o sono ou o pesadelo da semana que se avizinha. Mas assim tanto também não. É de mais! Os comentários, da política ao futebol, passando pelo fait-divers, são de cair para o lado, literalmente. Lugares-comuns, preconceitos, ideias de pacotilha e observações pré-fabricadas, tudo somado dá um chorrilho de alarvidades que um dia ainda farão as delícias dos pesquisadores futuros dos pretéritos tesourinhos deprimentes .E uns maneirismos de puxar ao arremedo.É por isso, justamente por isso, que os sketches do Gato Fedorento sobre o professor Marcelo Rebelo de Sousa tem a preferência do grande público, logo a seguir aos que têm por objecto o inenarrável Paulo Bento, treinador do Sporting.
Duas observações apenas, para justificar a bílis repentina que libertei ao ver mais um episódio dessa novela chamada As escolhas de Marcelo.
Primeira: as notas que ele dá aos políticos da nossa república das bananas assemelham-se aquele professor porreiraço que encara a turma com olho de pediatra - um auditório de gente sofrida e traumatizada a quem um 9 é já um sério sintoma de perturbações sérias e inultrapassáveis; segunda: os livros e o modo como os apresenta constituem a mais infeliz tentativa de ilusionista, desse mesmo ilusionista a quem os truques saem lentos e sem jeito. A quem pretende o professor Marcelo enganar, ao simular desse modo infantil (lendo e treslendo capas e contra-capas) capacidades supersónicas de super-homem de leituras diagonais à velocidade do relâmpago? Enganar precisamente uma quantidade de iletrados funcionais que fogem dos livros como o diabo da cruz. E consegue.