quinta-feira, abril 26, 2007

25 de Abril sempre

Lembram-se daquela pergunta popularizada pelo humorista Herman José, salvo erro nos anos 90 do século passado, a imitar o inenarrável jornalista Batista Bastos? Onde é que estavas no 25 de Abril? A minha resposta é simples: em Lisboa, no bairro onde morava (Olivais Sul) e onde se situava a minha escola. Posso acrescentar que tinha 11 anos e nenhuma consciência - política ou outra - do que se estava a passar. Fui à escola como tantos outras crianças da minha idade e fiquei feliz, por me terem mandado para casa. Um feriado inesperado, numa quinta-feira, caía que nem ginjas. Mal cheguei a casa perguntei à minha mãe se podia ir para a rua. Ela anuiu mas disse-me para não sair do pé da porta de entrada do prédio. Alguma coisa não se encontrava nos eixos do costume.
O dia estava cinzento como cinzenta era a vida de todos os dias. E lá foi passando. Só pelo fim da tarde percebi que se dera um golpe de estado. Mas o que entendi foi como se visse um western a preto e branco, os bons de um lado e os maus do outro. Eu estava do lado dos bons como sempre estivera do lado dos cobóis contra os índios, sem saber que os bons afinal eram os maus. Foi a vivência da democracia que o 25 de Abril permitiu a ensinar-me, por comparação com a realidade anterior, a olhar ao coisas de outro modo, nos seus vários matizes e colorido. Foi o 25 de Abril a autêntica paideia que me formou.
Se perguntássemos hoje aos portugueses Onde é que estavas no 25 de Abril? 4 milhões e quinhentos mil responderiam em lado nenhum. Isto significa que cerca de 45% dos portugueses não eram nascidos no dia da revolução dos cravos. Por consequência, mais de 50% não tem noção vivida de outra realidade diferente daquela que a democracia de Abril possibilitou. Terão essas pessoas outra noção que não a vivida? Deu-lhes a escola o saber do que era antes, permitindo-lhes, desse modo, perceber a importância do que têm em mãos? Compreenderão o significado do grito mil vezes repetido 25 de Abril, Sempre? Tenho as minhas dúvidas. Do que não duvido é que a promessa do Abril só se cumprirá se a lembrarmos todos os dias, não a tomando como um dado adquirido ou como moeda corrente e gasta de cuja face se apagou o valor cunhado pela liberdade.

terça-feira, abril 24, 2007

Gosto de romances históricos. Esse gosto talvez venha das resmas de livros aos quadradinhos que devorei na infância. Na época, as minhas preferências recaiam sobre dois heróis, Bufalo Bill e Robin Hood, cujas aventuras me deliciavam, alimentando deste modo os neurónios da minha imaginação. Ainda me lembro (estavamos no início da década de setenta) do preço: 2 escudos e 50 centavos por um conjunto de três.
Os romances históricos satisfazem a dupla necessidade de ilusão e de evasão que por vezes sinto: a primeira, a do romance propriamente dito, chamar-lhe-ei evasão espacial, por se tratar de um território desconhecido a que acedo e onde me instalo; a segunda, a histórica, a que chamarei evasão temporal, que me transporta para um tempo a que nunca acederei fisicamente.
Nos dias de hoje o romance histórico constrói-se com base em temas e figuras de referência, porventura devido ao grande êxito comercial do famigerado Código Da Vinchi: Jesus Cristo e os apóstolos (Maria Madalena incluída), os templários, Leonardo Da Vinchi, o santo Graal, os Manuscritos do Mar Morto, etc. Dir-se-ia que é um aspecto do Romantismo revisitado.
Uns dos últimos romances do género que li intitula-se A Comenda Secreta e foi escrito por dois autores portugueses: Maria João Pardal e Ezequiel Marinho. Trata-se de um romance pretencioso (com notas e bibliografia), apresenta lacunas básicas no enredo e, parece-me, tece um urdidura forçada a partir de factos impossíveis. Bem sei que um romance histórico não é nem pretende ser uma obra de ciência. Mas do verosímil ao inverosímil ou impossível vai uma distância intransponível.
Para contrapor ao mau gosto e ao trabalho descuidado dos dois romancistas uma obra ímpar: a biografia de D. Afonso Henriques escrita pelo professor José Mattoso. Imperdível.

conversas de circunstância

Confesso que me deixa cada vez mais incomodado o poder que os media manifestam no nosso quotidiano, sobretudo quando não posso deixar de verificar o peso que têm mesmo na determinação dos assuntos de conversa de circunstância do cidadão comum. As conversas de circunstância, por mais anódinas e insignificantes que de facto sejam, versam (ou versavam) sobre a realidade vivida: o tempo que faz ou os achaques que cada um sente. Na forma, a expressão utilizada é um lugar comum, o tal dito de circunstância cunhado pelo uso corrente. O conteúdo, porém, está ancorado na vida subjectivamente experimentada, no sentir do momento. Os media, hoje em dia, tem o poder de determinar o conteúdo das conversas de circunstância. Para meter conversa, já não falamos do calor que torra ou dos bicos de papagaio que não nos dão descanço. Falamos sobretudo da contenda dirimida nos tribunais a propósito dos pais adoptivos ou biológicos da Esmeralda, trocamos frases jocosas ou maledicentes relativas ao percurso académico do Primeiro Ministro, lamentamos as carótidas do Eusébio hospitalizado, diabolizamos esse recente fenómeno do Entroncamento mais a sul que é a Ota. Tudo isto é objecto de um opinar incessante, de uma verborreia que escorre das nossas bocas como a baba dos beiços de um imbecil. E tudo isto é fruto da agenda que os media determinam como os assuntos a opinar. É esta instrumentalização da opinião comum na figura das conversas de circunstância que me incomoda. É que tudo isto é triste, não deixando de ser fado.

domingo, abril 22, 2007

o seu e o seu dono

Civilização e civismo são palavras aparentadas, derivam ambas do latim e apontam ambas para um núcleo significativo comum. Ouve-se por vezes dizer que o grau de civilização de um país se mede pelo modo como os seres humanos lidam dos seus animais de estimação. Em consequência, poder-se-ia acrescentar que tal grau se mede pelo pudor com que exibimos os excrementos dos mesmos. Ora, basta andar pelas ruas de Lisboa, qualquer que seja o bairro, para constatarmos que o cidadão olissiponenese que é dono do seu canídeo não sente pudor de qualquer espécie em exibir o produto da espontaneidade artística do animal a que chama seu. As obras são tantas e os estilos que as encarnam tão variados que Lisboa é uma séria candidata a ganhar o primeiro prémio da capital da estatuária canina. Exemplares há-os para todos os gostos. A paleta de cores é alargada. As formas são múltiplas e exuberantes e consubstanciam estilos variegados: do clássico ao abstracto, passando pelo rocócó ao vanguardista. Ele há de tudo. Mas o aspecto mais sublime desta arte é o odor. Acreditem, trata-se de um deleite indizível para o mais desprevenido dos estetas. E Lisboa não é certamente uma excepção no panorama artiístico do país. Depois não digam que os portugueses não têm alma artística. Incivilizados são aqueles que sentem pudor em expor deste modo a sua arte, pois, como se sabe, esta quere-se autónoma e absolutamente liberta das amarras da moral.

sexta-feira, abril 20, 2007

choque tecnológico II

O choque tecnológico voltou a ser notícia, depois de uns meses de silêncio inquietante. A coisa parece que tinha morrido, mas quem é vivo sempre aparece. E apareceu hoje, oportuno, pela boca do Primeiro Ministro, a anunciar que mil (ele disse 1000) vagas para investigador na área da ciência estarão à disposição dos cérebros lusos, até ao final da legislatura. Para que tal se torne uma realidade, 1% da riqueza nacional vai ser investido. Ora, o problema é que quando a esmola é grande o pobre desconfia, ou, dito de outro modo, gato escaldado de água fria tem medo. Quanto é que é 1% da riqueza nacional, senhor Primeiro Ministro? Não nos pode dar o quantitativo, nem mesmo aproximado? O povo agradecia. Mas a retórica política tem destas coisas. Fica a leitura ao jeito de cada qual. A minha, confesso, é a de um leigo nesse assunto quase esotérico que são as finanças públicas. Interpreto riqueza no contexto económico do meu país no sentido corrente e leio pobreza. Afinal de contas, não é Portugal um país pobre à escala europeia? Não é isso o que nos dizem todos os relatórios e índices que a nós dizem respeito? Quanto é que é 1% da pobreza nacional, senhor Primeiro Ministro?

o engenheiro do futuro

Muito se tem opinado, nas últimas semanas, sobre o percurso académico do Primeiro Ministro. Nos jornais, na televisão, na blogosfera, nos cafés, enfim, um falatório que não tem fim. Às datas da controvérsia somam-se os papéis da incerteza. Tudo isto a marcar a agenda política do executivo e a ordem de trabalhos do nosso quotidiano mesquinho até à náusea. O tema é sem dúvida pertinente, nem sempre pelas razões evocadas. É tão ridículo pretender que o título de engenheiro seja sequer condição necessária para dirigir o destino do país como mencionar um título que não se possui. Nesta matéria, como diz o povo, estão uns para os outros. O que importa saber, desde já, é se o Primeiro Ministro alguma vez exibiu capacidades para exercer o papel de "engenheiro do futuro". Alguns apostam a cabeça que sim; outros juram a pés juntos que não. Determinação, coragem e persistência são alguns dos atributos que se colam à personalidade de José Sócrates. Mas também arrogância, temeridade e teimosia. A fronteira é ténue, indefinida, um fio de horizonte nem sempre nítido, nem sempre visível. Uma das virtudes humanas mais importantes para quem está ao leme da nau do Estado é a memória. Não se contrói o futuro sem ela. É a sua falta vício tamanho e imperdoável. Os portugueses podem perdoar muita coisa ao Primeiro Ministro. Perdoarão concerteza os pequenos pecadilhos de carácter. Mas ir-lhe-ão certamente cobrar a ausência de memória. Seria de todo conveniente que José Sócrates desperdiçasse um pouco do seu tempo a ler os grandes autores, precisamente aqueles que mais fundo mergulharam no insondável da natureza humana. Aqui vão uns aforismos, Sr. Primeiro Ministro. Leia, medite e reflicta. Uma pessoa tem de ter boa memória para ser capaz de cumprir as promessas que faz (Friedrich Nietzsche). Os vícios são frequentemente virtudes levadas ao extremo (Charles Dickens). Uma vontade, mesmo boa, deve ceder a uma melhor (Dante Alighieri). Há muito tempo que o meu axioma é de que as pequenas coisas são infinitamente as mais importantes (Arthur Conan Doyle). O mal dos que se crêem na posse da verdade é que, quando têm de o demonstrar, não acertam uma (Camilo José Cela). As pessoas podem duvidar do que dizes, mas acreditarão no que fizeres (Lewis Carroll). Aprenda enquanto é tempo. Aprender com os grandes mestres da literatura é infinitamente mais eficaz do que um título ou canudo, mesmo para um Primeiro Ministro. Sobretudo para este.